Na sua loucura lúcida, Nietzsche escreveu que
cristão só houve um, Jesus, mas morreu na cruz, e o Evangelho tornou-se um
Disangelho. Evangelho é palavra grega que quer dizer notícia boa, feliz e
felicitante. Essa foi a mensagem de Jesus, que arrastou multidões em busca de
saúde, libertação, vida expandida, salvação. Depois, tornou-se, tantas vezes e
para muitos, uma má notícia, uma notícia de desgraça, um Disangelho. Só quem
anda distraído ou não pode ou não quer saber é que não sabe disso.
O Papa Francisco pugna pelo regresso ao Evangelho do
Jesus da vida, como notícia felicitante, por palavras e obras. Também na
família. Ele sabe que, no meio das transformações culturais profundas, a
sociedade e a Igreja continuam a precisar de "famílias felizes". E o
contributo da Igreja é fundamental.
Assim, quis que, no Sínodo, com bispos de todo o
mundo, casais, peritos e observadores, se falasse com liberdade e sem tabus. No
relatório-síntese da primeira semana, é já possível antever o essencial dos
novos caminhos, que, apesar das oposições, estão na linha pastoral de
Francisco, que é a do Evangelho da alegria, antepondo a pessoa e a misericórdia
ao dogma e à lei.
Claro que o ideal de família enquanto "escola
de humanidade" continua a ser a união de amor fiel entre um homem e uma
mulher por toda a vida e aberta à procriação. Mas a vida é o que é. E a Igreja
reconhece a "urgência de novas opções pastorais" para as "famílias
feridas". Haverá, pois, uma nova atitude face aos divorciados que voltaram
a casar-se civilmente. O cardeal W. Kasper acaba aliás de declarar que uma
"maioria crescente" do Sínodo é favorável à sua proposta de poderem
aceder à comunhão. Por outro lado, entre as consequências da separação e do
divórcio, sublinha-se, com razão, a necessidade de pensar nos filhos, que devem
crescer do modo mais humano possível, não podendo, portanto, ser transformados
num "objeto de contenda".
Há a valorização do casamento civil e da coabitação:
"Uma nova dimensão da pastoral familiar atual consiste em captar a
realidade dos casamentos civis e, com as devidas diferenças, também da
coabitação ou uniões de facto. Na realidade, quando a união alcança uma notável
estabilidade através de um vínculo público, está marcada por um afeto profundo,
pela responsabilidade em relação aos filhos, com a capacidade de resistir às
provas, podem ser vistos como um gérmen para acompanhar o desenvolvimento para
o sacramento do matrimónio." Aliás, numa das intervenções, o geral dos
jesuítas, Adolfo Nicolás, afirmou que "pode haver mais amor cristão numa
união canonicamente irregular do que num casal casado pela Igreja"; assim,
"a nossa tarefa é aproximar as pessoas da graça e não rejeitá-las com
preceitos". Já antes, o Papa Francisco, constatando que "a juventude
não se casa; é uma cultura da época; muitíssimos jovens preferem coabitar sem
se casar", tinha perguntado: "Que deve a Igreja fazer? Expulsá-los do
seu seio?"
Põe-se, inevitavelmente, a questão da contraceção
dita artificial. Afinal, o que é natural e o que é artificial? Não pode o ser
humano intervir racional e razoavelmente na natureza, que não é estática nem
fixa?
Também a linguagem em relação à homossexualidade
muda. "As pessoas homossexuais têm dons e qualidades para oferecer à
comunidade cristã. Estamos em condições de receber estas pessoas,
garantindo-lhes um espaço de fraternidade nas nossas comunidades?" E
continua o documento: "A questão homossexual interpela-nos para uma reflexão
séria sobre como elaborar caminhos realistas de crescimento afetivo e de
maturidade humana e evangélica integrando a dimensão sexual: portanto,
apresenta-se como um importante desafio educativo." Mas, por outro lado,
"a Igreja afirma que as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser
equiparadas ao matrimónio entre um homem e uma mulher". Faço notar que, na
terminologia eclesiástica, não se fala em casamento, que vem de casa, mas
matrimónio, cujo étimo é matris, que é o genitivo de mater, mãe, o que quer
dizer que, para a Igreja, o casamento está intimamente vinculado à
possibilidade da procriação. No entanto, o texto refere que "a Igreja tem
atenção especial para com as crianças que vivem com casais do mesmo sexo,
reiterando que se deve pôr sempre em primeiro lugar as exigências e direitos
dos mais pequenos".
Há ainda um longo caminho até à Exortação do Papa,
com as decisões finais, em princípios de 2016. Entretanto, hoje ser-lhe-á
entregue um relatório de trabalho desta assembleia, para o debate que
continuará nas dioceses do mundo inteiro - outra vez W. Kasper: "Vivemos
num mundo globalizado e não se pode governar tudo a partir da Cúria" -,
até à nova assembleia sinodal, de 4 a 25 de outubro de 2015.
//DN
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