no DN
1. Uma vez, uma jovem estudante pediu-me
para fazer um trabalho sobre o riso. Porquê? Queria entender porque é que a
mãe, entrando na igreja para a celebração da missa de corpo presente da avó, ao
deparar-se com o cadáver, começou a rir.
Diferença essencial entre o ser humano e
os outros animais é o riso e o sorriso. Eles são manifestação da inteligência
superior e de transcendência.
Perante o cadáver, seja ele de quem for,
mas sobretudo de um ente próximo e querido, íntimo, há um choque de emoção e
razão, sobrepondo-se a razão. De um modo ou outro, acabamos por nos rever no
cadáver, a nossa posição futura está ali, desabando então, frente àquela figura
coisificada, toda a vaidade e todo o ridículo da soberba e grandeza imaginada,
que vão ser pó ou cinza. E aí está a tensão que obriga a transcender. Por outro
lado, antes ainda, depois ou em concomitância, está aí a revolta: a minha mãe
não foi nem é esta coisa cadavérica aí em frente. No limite do trágico,
sobrevém o riso, clamando transcendência. É a explosão do conflito entre o
intolerável do que se mostra e uma transcendência para que se aponta.
2. Afinal, nós não rimos tanto com o
engraçado, o que aparentemente tem graça, como com o imensamente sério ou o que
consideramos tal. Uma vez, na Alemanha, ofereceram-me um livro de anedotas e
pude constatar que a maior parte delas têm algo de universal e dizem respeito
ao sexo, à morte, à política, à religião, ao Além.
A quem se escandaliza muito com o pôr a
nu o ridículo da religião chamo a atenção, por exemplo, para A Relíquia, de Eça
de Queirós, que recentemente prefaciei. Anda o rapaz na Terra Santa a gozar a
vida e ao mesmo tempo a arrecadar relíquias: uma palhinha do presépio, uma
tabuinha aplainada por S. José, caroços de azeitonas do monte das Oliveiras, pedacinhos
da arca de Noé... E como não explodir de riso quando, na expectativa da
recompensa pela relíquia da coroa de espinhos, percebe que se enganou, pois,
desdobrando o embrulho, apareceu uma brancura de linho, que a titi repuxou,
espalhando-se, com laços e rendas, a camisinha de dormir da Mary a feder a
pecado... Na altura, foi terrível a crítica dos crentes quando o que era
preciso era assumir, em riso, a vergonha do ridículo da superstição religiosa e
da hipocrisia, que Eça acidamente expunha.
Ah! E há a Festa dos Loucos, sobre a
qual se pronunciou a Faculdade de Teologia de Paris em 1444, justificando-a:
"Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria
ela de ser-nos interdita? Os tonéis de vinho rebentariam, se de vez em quando
se não abrisse o batoque para arejá-los. Ora, nós somos velhos tonéis mal
ajustados que o vinho da sabedoria rebentaria, se o deixássemos ferver numa
devoção contínua ao serviço divino. É por isso que dedicamos alguns dias aos
jogos e à palhaçada, a fim de voltarmos em seguida com mais alegria e fervor ao
estudo e aos exercícios da religião."
Há testemunhos da Festas dos Loucos
desde finais do século XII e era promovida pelo baixo clero. Elegia-se, entre
os subdiáconos, um senhor da festa, designado por "bispo". Na
transmissão simbólica do "báculo", entoava-se os versículos do
Magnificat: "Depôs os poderosos dos seus tronos e exaltou os
humildes", em crítica demolidora aos altos hierarcas e apontando para o
Evangelho e a realização do Reino de Deus na irmandade universal. Chegava-se a
colocar o clérigo feito "bispo" sobre um burro, avançando para o
altar com o rosto voltado para a cauda e, durante a liturgia, em momentos
fundamentais, o celebrante e os assistentes zurravam.
Neste descalabro burlesco, dever-se-ia
ver, no limite, a urgência de não confundir o sagrado em si mesmo com as mais
variadas formas idolátricas com que os crentes se lhe dirigem. Quem pode
imaginar o ridículo de certa imagens de Deus, que é necessário desmascarar e
zurzir?
3. Há muitos tipos de riso e sorriso: os
da exultação, da alegria, da indiferença, do escárnio... É diferente sorrirem
para mim e rirem de mim.
Na Bíblia, refiro dois desses tipos: um
no Génesis, o outro no Evangelho. O Senhor prometeu um filho a Sara quando, já
velha e Abraão também, não podia conceber. "Sara riu-se de si para
consigo: "Agora é que há-de haver fecundidade para mim?"." Cá
está a transcendência do riso: o choque entre a impossibilidade humana e a
promessa divina. Mas ela concebeu um filho e deu-lhe o nome de Isaac (o que
ri). O outro é do Evangelho: Condenado à morte, os soldados "despiram
Jesus e colocaram-lhe aos ombros um manto de púrpura, na cabeça uma coroa de
espinhos e na mão direita uma cana; depois, dobraram o joelho diante dele e,
rindo, disseram por escárnio: "Salve, ó rei dos judeus!" De novo o
conflito: ser rei naquela figura e estado.
No caso de Isaac, é um riso criador. No
caso de Jesus, é o riso da humilhação intolerável, que desperta compaixão.
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