1. «Eis que faço novas todas as coisas»
(Apocalipse 21,5), diz Deus. De tal modo novas, diz Deus, que ninguém pode
dizer: «Já o sabia» (Isaías 48,7).
2. É assim também o Evangelho deste
Domingo IV do Tempo Comum (Marcos 1,21-28). Eis Jesus a entrar com os seus
discípulos em Cafarnaum, na sinagoga deles, e ensinava e ordenava tudo de forma
nova. Tão nova que inutilizava todas as comparações e catalogações (Marcos
1,22). Não era membro de nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional
ou instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma autoridade.
Nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o precedia. A sua autoridade
começava ali, no próprio acto de dizer ou de fazer. E as pessoas de Cafarnaum
foram tomadas de tanto espanto, que tiveram de constatar logo ali que saía dos
seus lábios e das suas mãos um mundo novo, belo e bom, ordenado segundo as
pautas da Criação (Marcos 1,22 e 27). Um vendaval manso de graça e de bondade
encheu Cafarnaum, e transvazava como um perfume novo de amor e de louvor por
toda a região da Galileia e da missão (Marcos 1,28). Saltava à vista que
Cafarnaum não podia conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo.
3. As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o
que diziam os escribas, e como diziam os escribas. Não eram senão repetidores,
talvez mesmo apenas repetentes de pesadas e cansadas doutrinas que se
arrastavam na torrente de uma velha e gasta tradição. Os escribas diziam,
diziam, diziam, recitavam o vazio (Salmo 2,1), compraziam-se na sua própria
boca, nas suas próprias palavras (Salmo 49,14), e nada, nada, nada acontecia:
nenhum calafrio na alma, nenhum rio nascia no deserto, ninguém estremecia ou
renascia. Mas Jesus começou a falar, e as pessoas de Cafarnaum sentem um
frémito, um estremecimento novo (Isaías 66,2 e 5), assalta-as uma comovida
emoção, uma lágrima de alegria lhes acaricia o coração. Era como se acabassem
de escutar aquela palavra única que há tanto tempo se procura, palavra criadora
que nos vai direitinha ao coração, a ternura e a surpresa permanente de quem
leva uma criança pela mão!
4. As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o
que eram os exorcismos, e como se faziam os exorcismos. Estavam muito em voga
naquele tempo. Eram longos, estranhos, complicados, cheios de fórmulas mágicas
e ritos esotéricos. Mas Jesus diz uma palavra criadora: «Cala-te e sai desse
homem», e tudo fica de imediato resolvido! (Marcos 1,25-26).
5. Abre-se um debate. O primeiro de
muitos que o Evangelho de Marcos vai abrir. «O que é isto?» (Marcos 1,27),
perguntam as pessoas de Cafarnaum, que nunca tinham visto tanto e tão novo e
tão prodigioso ensinamento.
6. Mas é apenas o começo da jornada
deste maravilhoso ANUNCIADOR do Evangelho de Deus (Marcos 1,14). Logo a abrir o
seu Evangelho, Marcos ensina-nos que a jornada iniciada naquele primeiro sábado
em Cafarnaum salta os clichés habituais, e vai de madrugada a madrugada, de
modo a deixar já bem à vista aquela outra sempre primeira madrugada da
Ressurreição! Jesus começa de manhã na sinagoga (Marcos 1,21); caminha depois
30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da febre
para o serviço do Evangelho a sogra de Pedro (Marcos 1,29-31); à tardinha, já
sol-posto, primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante
da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes
(Marcos 1,32-34); de madrugada, muito cedo, Jesus sai sozinho para rezar
(Marcos 1,35), e os discípulos correm a procurá-lo para o trazer de volta a
Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter (Marcos
1,36-37). Ninguém o quer perder.
7. Desconcertante reviravolta. Jesus diz
aos seus discípulos atónitos: «VAMOS a outros lugares, às aldeias vizinhas,
para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho»
(Marcos 1,38). Com este grávido dizer, Jesus deixa claro que ANUNCIAR o
Evangelho enche por completo o seu programa e o seu caminho. Com aquele vamos
[«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos
para este trabalho de ANÚNCIO do Evangelho seja a quem for, seja onde for. Com
aquele também inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»], Jesus
classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira jornada de
Cafarnaum: ensinar, libertar, acolher, curar, recriar: é esta a toada do
ANÚNCIO do Evangelho.
8. ANUNCIAR (kêrýssô) é então o afazer
de Jesus. E qual é a primeira nota que soa quando Jesus se diz com o verbo
ANUNCIAR? É, sem dúvida, a sua completa vinculação ao Pai, de quem é o arauto, o
mensageiro, o ANUNCIADOR. Pura transparência do Pai, de quem diz e faz o que
ouviu dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e viu fazer (João 5,19;
17,4). Recebendo todo o amor fontal do Pai, bebendo da torrente cristalina do
amor fontal do Pai (Salmo 110,7; cf. 1 Reis 17,4), Jesus, o Filho, é pura
transparência do Pai, e pode, com toda a verdade dizer a Filipe: Filipe, «quem
me vê, vê o Pai» (João 14,9). É mesmo aqui que reside a sua verdadeira
AUTORIDADE e a verdadeira NOVIDADE do seu MODO novo de dizer e de fazer, que se
chama ANUNCIAR.
9. A primeira nota de todo o ANUNCIADOR
ou Arauto ou Mensageiro não assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade
Àquele que lhe confia a mensagem que deve anunciar. É em Seu nome que diz o que
diz, que diz como diz. No Enviado é o Rosto do Enviante que se deve ver em
contra-luz ou filigrana pura. No Enviado ou Mensageiro ou Anunciador é
verdadeiramente Deus que visita o seu povo.
10. Pertinho de Deus, cheio de Deus,
Jesus leva Deus aos seus irmãos. É esta a Autoridade de Jesus. Ele é o profeta
«como Moisés», mais do que Moisés, com a boca repleta das palavras de Deus
(Deuteronómio 18,18). E não só a boca, mas também as mãos e o coração. Bem
diferente dos escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde no deserto.
Estes dispensam a Palavra de Deus. O que querem ter na boca é pão e carne. O
que recolheu menos, no deserto, diz-nos o extraordinário relato do Livro dos
Números 11,31-35, recolheu 4500 kg de carne de codorniz (Números 11,32). E
começaram a meter a carne à boca com tamanha avidez, que morreram de náusea!
Foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes, por mastigar
(Números 11,33). Vê-se que é urgente libertar o coração, as mãos, a boca.
Vive-se da Palavra. Morre-se de náusea.
11. Numa página sublime do Livro dos
Números (17,17-26), Deus ordena a Moisés que recolha as varas de comando dos
chefes das doze tribos de Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o
sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respetiva tribo. Por
ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas
foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do Encontro. Na
manhã seguinte, todos puderam ver que da vara de Aarão tinham desabrochado
folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros (Números
17,23). Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira em flor e fruto,
que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença, diante do
Propiciatório (cf. Hebreus 9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado
do povo chegue a Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já
ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia,/ ardia/
na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Êxodo
25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica
tardia refira que a vara do Messias havia de ser de madeira… de amendoeira.
12. Aí estão as coordenadas exatas do
lugar do sacerdote e do bispo: entre Deus e o povo. Mais concretamente:
pertinho de Deus, mas de um Deus que faz carícias ao seu povo, um Deus que ama
e que perdoa; pertinho do povo, o suficiente para lhe entregar esta carícia de
Deus.
13. Face a esta urgência, esta grandeza,
esta beleza Primeira e Última, Novíssima, tudo o resto deve ser relativizado.
Uma única grande devoção, dedicação, amor, deve nortear a nossa vida. Grande
ensinamento de S. Paulo na sua Primeira Carta aos Coríntios 7,32-35.
14. Sim, não nos é permitido adormecer
ou entorpecer, de modo a ficarmos inactivos, infecundos, insensíveis, tipo
«tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a
oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol),
e para nós, cristãos, o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais
quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos
deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da
música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É
necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de
graça e de bondade que um dia Jesus desencadeou em Cafarnaum.
António Couto
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