A exemplo de decretos presidenciais que
destituíram outros governos e respectivos chefes, o Presidente da República da
Guiné-Bissau, José Mário Vaz, lançou mão do dispositivo constitucional do ponto
2 do artigo 104 para derrubar Domingos Simões Pereira e o seu Executivo. De
acordo com esse dispositivo da nossa Carta Magna, “o Presidente da República
pode demitir o Governo em caso de grave crise política que ponha em causa o
normal funcionamento das instituições da República, ouvidos o Conselho de
Estado e os partidos políticos com assento parlamentar”.
Realmente, quase que naturalmente o
nosso modelo político faz convite a um duelo entre o Primeiro-Ministro e o
Presidente da República. Ambos tendem a figurar-se na esfera de governação como
dois actores políticos que buscam permanentemente fortalecer sua agenda política
e impor suas convicções políticas de governação. Ademais, a nossa Carta Magna
deixa muito nebulosa a precisa fronteira entre as prerrogativas e atribuições
do Presidente e do Primeiro-Ministro no âmbito do Governo, como mostram os
pontos 2 e 3 do artigo 97. No caso em análise, as dissonâncias eram insofismável e as divergências eram recorrentes em praticamente todos os grandes
assuntos do Estado, a exemplo de controvérsias em torno de exploração dos
recursos naturais.
À luz do artigo supracitado, a demissão
do Governo pelo Presidente da República encontra enquadramento legal e jurídico
no sistema constitucional da Guiné-Bissau. Desta feita, esse decreto
presidencial não pode ser questionado em termos de sua legalidade. Digo
legalidade. O fato de tanto o Presidente da República quanto o demitido
Primeiro-Ministro reconhecerem a existência de crise interinstitucional no país,
a legalidade do ato presidencial se fortalece.
Entretanto, em uma democracia (ainda que
débil como a nossa), ato político de destituição de um poder da soberania
requer muito mais que a mera legalidade. A deliberação política dessa
envergadura precisa ser provida de suficiente legitimidade, especialmente a
popular, para evitar eventuais externalidades e repercussões que podem
comprometer, paradoxalmente, os actores políticos que o expediram. Na política,
a legalidade e a legitimidade tendem a ser instrumentos complementares e
interdependentes. Portanto, constituem dispositivos cuja conjugação visa buscar
equilíbrio nas decisões políticas de grande impacto. A Política não é Direito, vice-versa.
Na Política, não se deve basear exclusivamente na legalidade para tomar grandes
decisões de um país. A legitimidade é imprescindível.
Há um pouco mais de três meses, chamei
atenção que uma eventual demissão do Governo poderia gerar profundos desgastantes
políticos do Presidente. Ele tenderia a ser muito criticado ou até hostilizado
pelo povo. Não foi primeira, segunda, nem terceira vez que um Presidente da
República da Guiné-Bissau destituiu um governo e seu Primeiro-Ministro – o
nosso sistema político dá margem para isso acontecer e os nossos estadistas têm
dado provas de que não “se adaptaram ao semipresidencialismo” – entretanto, as destituições
precedentes ocorreram em contextos sociopolíticos completamente distintos.
O Governo que acaba de ser deposto foi
produto de últimas eleições (eleições decorrentes de dois críticos anos de
transição política), cujos 12 meses de governação tiveram uma avaliação popular
de razoável para boa. Além de contar com considerável confiança da comunidade
internacional, era um governo que gozava de enorme legitimidade popular. Se
esse enorme capital político popular era fruto de um marketing político bem
feito, se era mero produto de populismo, se era evidência de uma boa governação
ou se essa legitimidade era soma de todos esses elementos, é outro debate. O
fato é que o destituído Executivo aparentava ter bastante respaldo do povo,
cuja maior expressão resumia-se no slogan “Terra Ranka”.
Penso que o Presidente da República (e o
seu círculo politico, em alguma medida) tem consciência do que significa a
força da legitimidade popular. Então por que ele destitui o Governo? Por que
não deu ouvido às vozes de vários sectores públicos e segmentos sociais? Acredito que ele deve ter questionado a propalada legitimidade do Governo
deposto, achando que toda a euforia popular que existia e os protestos que
vinham sendo realizados contra a possível destituição do Governo teriam sido
lobby governamental e que não tardariam a se remeter ao silêncio, assim que ele
derrubasse o Executivo. Outro elemento talvez seja a percepção de que ele tenha
sido rodeado por um círculo político também influente, especialmente a ala
política derrotada no último congresso do PAIGC, em Cacheu. Portanto ele
acreditou que em nenhuma hipótese estaria politicamente isolado. É provável que
esse grupo político, também do PAIGC, tenha influenciado a decisão presidencial
que pós fim ao Executivo de Domingos Simões Pereira.
Será que o Chefe de Estado simplesmente
subestimou ou ignorou a real demanda popular pela continuidade de Simões
Pereira a frente do Governo? Veja bem, em países (de baixíssimo nível de
democracia e de consciência cidadã) como a República da Guiné-Bissau, infelizmente
a legitimidade popular tende a não interferir muito nos cálculos políticos e
processos decisórios dos estadistas, pois o povo é geralmente concebido como um actor quase que nulo no tabuleiro político. Desde que haja margem jurídico-legal
para os governantes agirem em prol de sua agenda política própria, eles o fazem
sem hesitação, mesmo que suas acções carecem de legitimidade do povo.
A deposição do Governo se deu dentro da
lógica da democracia schumpteriana, segundo qual o povo e a sociedade apenas
participam de decisões públicas através das eleições, exercendo o voto, não
influenciando cenários e processos políticos decisórios. Os políticos
guineenses (excepto uma ínfima minoria, se é que existe) concebem a democracia
como um domínio de conflito e disputa restrito às elites políticas e
partidárias. Enquanto permanecer essa concepção retrógada e contraproducente do
espírito da democracia e não for feito nada para mudá-la, as grandes decisões
políticas tenderão a não contemplar muito as legítimas aspirações e
necessidades populares.
Penso que a questão não se limita apenas
à pessoa do Presidente da República. Nesse caso, o Chefe de Estado não deve ser
objeto de “demonização”. É muito mais um problema de cunho estrutural, o qual
está arraigado no nosso desfasado sistema político e constitucional. Se não
houver profundo debate em torno desse recorrente transtorno
político-institucional e nada for feito, a sua reedição não tardará.
Nota:
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