sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

GUINÉ-BISSAU, FIM DO PAIGC OU PAIGC DO FIM?

Por: Doutorando Timóteo Saba M’bunde.

As profundas crispações que têm sacudido o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e que têm consubstanciado a delicada relação de governabilidade entre as instituições do Estado chefiadas por figuras políticas do próprio partido dos libertadores, não constitui um fenómeno totalmente inédito da tumultuada trajectória política desse partido, mas contém elementos novos. De início dos anos 1990 (quando se deu a abertura democrática na Guiné-Bissau) aos dias actuais, o PAIGC tem sido permeado por sucessivos episódios de conflitos cujas principais fontes são as recorrentes discrepâncias relacionadas à distribuição de cargos no partido e nos governos. Intrigas, calúnias e perfídias foram (são) apropriadas como mecanismos de produção e nutrição de afinidades políticas intrapartidárias, que aos seus utentes geram compensações e gratificações – especialmente nomeações aos cargos governamentais – mesquinhas e desprezíveis, arraigando, deste modo, esta ignóbil cultura política nas entranhas deste histórico partido idealizado por Amílcar Cabral.

As consequências desse modus operandi da política partidária produzem, irreversivelmente, sérios conflitos cujas implicações podem ser imprevisíveis, a exemplo do conflito político-militar de 1998, e que podem conduzir um partido político à extinção ou a um estado moribundo. O PAIGC seria susceptível à extinção ou pelo menos a deixar de ser um dos dois ou três partidos protagonistas na Guiné-Bissau, em função das crises que têm sistematicamente abalado as suas estruturas? Não, não. O PAIGC é, paradoxalmente, um actor político que dispõe de muita legitimidade. O imaginário colectivo sobre o PAIGC não se atrela muito ao seu fracassado desempenho enquanto partido governante, é muito lembrado pelas suas façanhas e proezas nas batalhas de Cufar, de Komo, de Guileje e Gadamael, etc. A não extinção deste partido e sua sobrevivência política enquanto partido proeminente se devem a esse passado. Trata-se do partido independentista, o movimento revolucionário que logrou a independência nacional.

Não é por acaso que conseguiu sobreviver as derrapagens e consequências políticas da guerra civil de 1998. O PAIGC conduziu a Guiné-Bissau a uma catastrófica guerra civil e pagou um pífio preço por essa tragédia: derrota nas eleições gerais de 1999. Logo depois voltou a ganhar eleições no país. Se não fosse um partido de sua dimensão histórica, cuja própria história se confunde com o nascimento e evolução do Estado da Guiné-Bissau, no mínimo teria ficado por muito mais anos, senão por décadas sem vencer eleições na Guiné-Bissau. Vide o caso da Resistência da Guiné-Bissau Movimento/Bafatá, em única profunda crise que o abalou na primeira metade da primeira década de 2000, este histórico partido de oposição se encolheu e passa a não se figurar mais entre as mais fortes agremiações políticas do país.

A configuração do PAIGC como ator político central na Guiné-Bissau não é mérito dos seus dirigentes, ou seja, não é fruto de habilidades e estratégias políticas destes, mas, sim, de sua representação histórica e simbólica enquanto partido que libertou a Guiné-Bissau do jugo colonial. Em contextos socioculturais como o guineense, em que o nível cultural da população é baixíssimo, incluindo o de alguns integrantes da própria elite social e política, o exercício de senso crítico dos cidadãos é praticamente inexistente. Assim sendo, abre-se um terreno desprotegido e vulnerável às autênticas e toscas demagogias dos políticos, os quais se deparam com enormes facilidades para ludibriar o ingênuo povo da Guiné-Bissau.

Portanto, penso que é inconcebível cogitar sobre a possibilidade do fim do PAIGC. É praticamente inexequível, não é factível. Correto? Ou seja, o PAIGC não vai se extinguir. Pode, em algum momento, como no pós-guerra civil de 1998, aparentar desfalecido, mas logo estará em pé, ainda que doentio e entorpecido. Não podemos falar em pulverização desse partido. O PAIGC é rassa tchebén. É rassa banana, korta nansi. A “perpetuidade” do PAIGC está vinculada à sua história, à história de luta, à história da guerrilha, à história da Guiné-Bissau enquanto nação e enquanto Estado.

No entanto, se é improcedente falarmos em fim do PAIGC, é procedente falarmos em PAIGC do fim. Sim, PAIGC do fim. Qual é a versão do PAIGC do fim? É a versão atual do PAIGC. Esta versão do PAIGC do fim corresponde à inauguração de novos tempos do partido de Amílcar Cabral e dos ex-combatentes da liberdade da pátria. O PAIGC do fim é um PAGC cujos protagonistas não são combatentes da liberdade da pátria. É um PAIGC em que a construção de consensos tende a ser um exercício muito mais complexo. O PAIGC do fim representa o início mais evidente do esgotamento do modelo de gestão política e de governação apoiado nos recorrentes discursos retrógrados e improdutivos de apelo ao passado colonial, que não se traduzem em efetivos instrumentos de reorganização do partido e muito menos do desenvolvimento do país.

O PAIGC do fim mostra que a verticalidade que sempre predominou as relações políticas no partido está em esgotamento, tende a ser cada vez mais difícil a centralização do poder. Irrompe-se uma radical tendência de horizontalização de relações políticas no partido. A explicação está no fato de estar em curso o vertiginoso e sintomático desaparecimento no PAIGC de figuras que poderíamos chamar “políticos consensuais ou quase politicamente incontestáveis”. No PAIGC do fim, torna-se praticamente infactível uma boa gestão política, fazendo uso de mecanismos políticos retrógrado e reaccionários direccionados à centralização do poder e promoção discricionário de vontades particulares, como quase sempre ocorreu no partido dos independentistas.

É lamentável dizer que ao longo de boa parte da sua história (mormente a partir dos anos 1990) ao invés do desenvolvimento da Guiné-Bissau, o PAIGC tem tido como principal desafio a gestão política do próprio partido. Entretanto, embora historicamente o partido tenha apresentado fissuras decorrentes de fricções internas, sempre conseguiu se articular internamente, fazendo uso de mecanismos diversos para salvaguardar uma relativa coesão da agremiação. Contudo, sempre a figura do líder, um líder menos contestado e amplamente amado ou temido jogou papel crucial nessas ocasiões. A actual crise política que assola o PAIGC (e o seu governo), cuja manifestação transformou-se em um escandaloso espectáculo nas instituições do Estado – só não é cómico porque é trágico, sobretudo para o já martirizado povo guineense – revela o quanto está fragmentado o PAIGC e o quanto ele clama pela própria reinvenção.


Não estamos a assistir o fim do PAIGC, mas estamos a testemunhar indícios de uma radical transição de natureza de relações políticas no partido, imposta pelos novos tempos do PAIGC, o PAIGC do fim.

Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas. 

1 comentário :

  1. "(...) Em contextos socioculturais como o guineense, em que o nível cultural da população é baixíssimo, incluindo o de alguns integrantes da própria elite social e política, o exercício de senso crítico dos cidadãos é praticamente inexistente. Assim sendo, abre-se um terreno desprotegido e vulnerável às autênticas e toscas demagogias dos políticos, os quais se deparam com enormes facilidades para ludibriar o ingênuo povo da Guiné-Bissau." Timóteo Saba M’bunde, Mestre em Ciência Política

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