As profundas crispações que têm sacudido
o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e que têm
consubstanciado a delicada relação de governabilidade entre as instituições do
Estado chefiadas por figuras políticas do próprio partido dos libertadores, não
constitui um fenómeno totalmente inédito da tumultuada trajectória política desse partido, mas contém elementos novos. De início dos anos 1990 (quando se
deu a abertura democrática na Guiné-Bissau) aos dias actuais, o PAIGC tem sido
permeado por sucessivos episódios de conflitos cujas principais fontes são as
recorrentes discrepâncias relacionadas à distribuição de cargos no partido e
nos governos. Intrigas, calúnias e perfídias foram (são) apropriadas como
mecanismos de produção e nutrição de afinidades políticas intrapartidárias, que
aos seus utentes geram compensações e gratificações – especialmente nomeações
aos cargos governamentais – mesquinhas e desprezíveis, arraigando, deste modo,
esta ignóbil cultura política nas entranhas deste histórico partido idealizado
por Amílcar Cabral.
As consequências desse modus operandi da
política partidária produzem, irreversivelmente, sérios conflitos cujas
implicações podem ser imprevisíveis, a exemplo do conflito político-militar de
1998, e que podem conduzir um partido político à extinção ou a um estado
moribundo. O PAIGC seria susceptível à extinção ou pelo menos a deixar de ser um
dos dois ou três partidos protagonistas na Guiné-Bissau, em função das crises
que têm sistematicamente abalado as suas estruturas? Não, não. O PAIGC é,
paradoxalmente, um actor político que dispõe de muita legitimidade. O imaginário colectivo sobre o PAIGC não se atrela muito ao seu fracassado desempenho enquanto
partido governante, é muito lembrado pelas suas façanhas e proezas nas batalhas
de Cufar, de Komo, de Guileje e Gadamael, etc. A não extinção deste partido e
sua sobrevivência política enquanto partido proeminente se devem a esse
passado. Trata-se do partido independentista, o movimento revolucionário que
logrou a independência nacional.
Não é por acaso que conseguiu sobreviver
as derrapagens e consequências políticas da guerra civil de 1998. O PAIGC
conduziu a Guiné-Bissau a uma catastrófica guerra civil e pagou um pífio preço
por essa tragédia: derrota nas eleições gerais de 1999. Logo depois voltou a
ganhar eleições no país. Se não fosse um partido de sua dimensão histórica,
cuja própria história se confunde com o nascimento e evolução do Estado da
Guiné-Bissau, no mínimo teria ficado por muito mais anos, senão por décadas sem
vencer eleições na Guiné-Bissau. Vide o caso da Resistência da Guiné-Bissau
Movimento/Bafatá, em única profunda crise que o abalou na primeira metade da
primeira década de 2000, este histórico partido de oposição se encolheu e passa
a não se figurar mais entre as mais fortes agremiações políticas do país.
A configuração do PAIGC como ator
político central na Guiné-Bissau não é mérito dos seus dirigentes, ou seja, não
é fruto de habilidades e estratégias políticas destes, mas, sim, de sua
representação histórica e simbólica enquanto partido que libertou a
Guiné-Bissau do jugo colonial. Em contextos socioculturais como o guineense, em
que o nível cultural da população é baixíssimo, incluindo o de alguns
integrantes da própria elite social e política, o exercício de senso crítico
dos cidadãos é praticamente inexistente. Assim sendo, abre-se um terreno
desprotegido e vulnerável às autênticas e toscas demagogias dos políticos, os
quais se deparam com enormes facilidades para ludibriar o ingênuo povo da
Guiné-Bissau.
Portanto, penso que é inconcebível
cogitar sobre a possibilidade do fim do PAIGC. É praticamente inexequível, não
é factível. Correto? Ou seja, o PAIGC não vai se extinguir. Pode, em algum
momento, como no pós-guerra civil de 1998, aparentar desfalecido, mas logo
estará em pé, ainda que doentio e entorpecido. Não podemos falar em
pulverização desse partido. O PAIGC é rassa tchebén. É rassa banana, korta
nansi. A “perpetuidade” do PAIGC está vinculada à sua história, à história de
luta, à história da guerrilha, à história da Guiné-Bissau enquanto nação e
enquanto Estado.
No entanto, se é improcedente falarmos
em fim do PAIGC, é procedente falarmos em PAIGC do fim. Sim, PAIGC do fim. Qual
é a versão do PAIGC do fim? É a versão atual do PAIGC. Esta versão do PAIGC do
fim corresponde à inauguração de novos tempos do partido de Amílcar Cabral e
dos ex-combatentes da liberdade da pátria. O PAIGC do fim é um PAGC cujos protagonistas
não são combatentes da liberdade da pátria. É um PAIGC em que a construção de
consensos tende a ser um exercício muito mais complexo. O PAIGC do fim
representa o início mais evidente do esgotamento do modelo de gestão política e
de governação apoiado nos recorrentes discursos retrógrados e improdutivos de
apelo ao passado colonial, que não se traduzem em efetivos instrumentos de
reorganização do partido e muito menos do desenvolvimento do país.
O PAIGC do fim mostra que a
verticalidade que sempre predominou as relações políticas no partido está em
esgotamento, tende a ser cada vez mais difícil a centralização do poder.
Irrompe-se uma radical tendência de horizontalização de relações políticas no
partido. A explicação está no fato de estar em curso o vertiginoso e
sintomático desaparecimento no PAIGC de figuras que poderíamos chamar “políticos
consensuais ou quase politicamente incontestáveis”. No PAIGC do fim, torna-se
praticamente infactível uma boa gestão política, fazendo uso de mecanismos
políticos retrógrado e reaccionários direccionados à centralização do poder e
promoção discricionário de vontades particulares, como quase sempre ocorreu no
partido dos independentistas.
É lamentável dizer que ao longo de boa
parte da sua história (mormente a partir dos anos 1990) ao invés do
desenvolvimento da Guiné-Bissau, o PAIGC tem tido como principal desafio a
gestão política do próprio partido. Entretanto, embora historicamente o partido
tenha apresentado fissuras decorrentes de fricções internas, sempre conseguiu
se articular internamente, fazendo uso de mecanismos diversos para salvaguardar
uma relativa coesão da agremiação. Contudo, sempre a figura do líder, um líder
menos contestado e amplamente amado ou temido jogou papel crucial nessas
ocasiões. A actual crise política que assola o PAIGC (e o seu governo), cuja
manifestação transformou-se em um escandaloso espectáculo nas instituições do
Estado – só não é cómico porque é trágico, sobretudo para o já martirizado povo
guineense – revela o quanto está fragmentado o PAIGC e o quanto ele clama pela
própria reinvenção.
Não estamos a assistir o fim do PAIGC,
mas estamos a testemunhar indícios de uma radical transição de natureza de
relações políticas no partido, imposta pelos novos tempos do PAIGC, o PAIGC do
fim.
Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.
"(...) Em contextos socioculturais como o guineense, em que o nível cultural da população é baixíssimo, incluindo o de alguns integrantes da própria elite social e política, o exercício de senso crítico dos cidadãos é praticamente inexistente. Assim sendo, abre-se um terreno desprotegido e vulnerável às autênticas e toscas demagogias dos políticos, os quais se deparam com enormes facilidades para ludibriar o ingênuo povo da Guiné-Bissau." Timóteo Saba M’bunde, Mestre em Ciência Política
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