A narração da morte de Jesus está
recheada de elementos convergentes no diálogo do bom ladrão, nos sentimentos
que expressa e na garantia que recebe. Alguns desses elementos, como bem
descreve Lucas, o médico evangelista, dizem respeito a atitude do povo, dos
chefes, dos soldados e do malfeitor injurioso. O povo observa, sente e cala. É
quase sempre assim, infelizmente.
As autoridades zombam e provocam. Os
soldados troçam e, fingindo piedade, têm gestos de compaixão. O malfeitor
exasperado lança insultos e faz interpelações. Todos em coro, cada um com o seu
tom, invocam a mesma razão: descer da cruz, ser o rei dos judeus, o messias
salvador. E, então sim, acreditamos na sua palavra, reconhecemos a sua realeza,
constatamos que é o eleito de Deus.
Mas Jesus não desce da cruz. Responde
com o silêncio total. Não cede às provocações injuriosas, embora aliciantes.
Mantém a verticalidade de toda a sua vida: por amor, servir o projecto de
salvação com liberdade plena, arrostando com as consequências decorrentes. E
elas estão à-vista. Não desce da cruz, como outrora não cede à tentação
diabólica no deserto, nem à proposta acomodatícia de Pedro aquando da
transfiguração ou à agonia profunda no Jardim das Oliveiras. Jesus percorre o
caminho da Galileia para Jerusalém com o propósito declarado de chegar à cidade
santa e dar o testemunho final: Sou rei, mas o meu reino não é deste mundo, diz
a Pilatos, o inquiridor que sentencia a morte de cruz.
Os companheiros de crucificação são
condenados por rebeldia política, acusados de subversão contra o poder romano.
Só este tem autoridade para decretar a morte de cruz. Jesus, ao ser sentenciado
por Pilatos, entra na lista dos revoltosos contra a ordem reinante em que
sobressai o culto ao imperador. Mas os evangelhos não contam nada que permita
tal decisão: Jesus não promoveu nenhum motim político, não falou contra Roma
nem contra a ocupação romana ou a crueldade que exerciam os legionários contra
a população, nem contra os abusos fiscais ou a repressão militar.
Por isso, há certamente outras razões
para ser condenado como subversivo político. O título de Rei faz parte da
inscrição posta na cruz e dá, segundo Pilatos, a razão principal da sentença de
morte. Ele tinha pretensões de realeza. E, de facto, assim é. Simplesmente o
seu reino pauta-se pela verdade nas relações humanos, pela justiça na atenção a
todos, pela paz nas consciências e entre os povos, pelo cuidado responsável da
“casa comum” – a criação e suas múltiplas manifestações -, pelo amor
incondicional a todo o ser humano possuidor de uma dignidade inalienável, pela
confiança inquebrantável na solidariedade, pela misericórdia solícita,
sobretudo para com os “feridos” da vida. Reino visualizado no diálogo do bom
ladrão com Jesus. Lucas, o evangelista médico, apresenta-o de forma
emblemática.
A confiança entre as pessoas e as
instituições constitui ~uma urgência do nosso tempo. Acontecimentos recentes
atestam o alcance desta afirmação. Jorge Sampaio, ex-presidente da república
portuguesa, em notável e recente artigo de opinião sobre a «questão europeia»,
afirma: “A mim, parece-me que a confiança hoje está abalada de forma sistémica
e sistemática — e, no fundo, a questão que se coloca é se esta desconfiança
está já demasiado cimentada para ser reversível e evitar o alastramento dos
populismos de toda a sorte”. E prossegue chamando a atenção para a necessidade
de “reconstruir a confiança (que) constitui, a meu ver, um desafio grande,
moroso, complexo, mas incontornável. Não há economia nem mercado nem política
nem democracia sem esse cimento de base, a confiança. Não há paz duradoura se a
desconfiança minar as relações entre comunidades, povos e nações, se o pacto
social for rompido”. E a partir do evangelho podemos dizer: nem manifestação do
reino de Deus, da salvação prometida ao bom ladrão, da confiança filial de
Jesus na sua oração derradeira: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
O diálogo, garante da salvação,
constitui uma excelente referência para o Ano Jubilar da Misericórdia que,
hoje, em Roma, se encerra. E o Papa Francisco, desde o início, quer ver
alargado a todo o mundo esta força transformadora. Diz ele: “Confiaremos a vida
da Igreja, a humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para
que derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma
história fecunda com o compromisso de todos no futuro próximo. Quanto desejo
que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de
todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e
afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus
já presente no meio de nós”.
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