Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias
Falei com ele uma vez, era ainda o
cardeal Josef Ratzinger. A impressão que me ficou foi a de alguém muito afável,
tímido e com um objectivo fundamental: conciliar a fé e a razão. Ao ler agora
Letzte Gespräche (Últimas Conversas), e são mesmo as últimas, pois não pensa
publicar mais nada e quer destruir notas dispersas, confirmei essa primeira
impressão. Estas conversas do Papa emérito com Peter Seewald constituem uma
espécie de balanço de uma vida e de um pontificado, sendo esta a primeira vez
que um papa o faz. Impressiona a sua dignidade na humildade, reconhecendo os
seus limites e fragilidades, procurando ser fiel à verdade, inevitavelmente na
perspectiva dele, e sabendo que a última palavra pertence a Deus, de quem
espera um juízo misericordioso e para o qual se prepara com serena confiança.
Diz: "Crer não é senão, na noite do mundo, tocar a mão de Deus e assim -
no silêncio - ouvir a Palavra, ver o Amor." Qual é "o verdadeiro
problema deste nosso momento da história? Deus desaparece do horizonte dos homens
e, com a extinção da luz que vem de Deus", a humanidade é apanhada pela
falta de orientação, "cujos efeitos se manifestam cada vez mais".
Nasceu de uma família modesta,
profundamente enraizada na fé da Igreja Católica. O pai era polícia, mas
crítico e capaz de pensar pela sua própria cabeça, a mãe era muito cordial.
Teve uma infância feliz, com muito afecto. "Para nós era claro que uma
pessoa religiosa devia ser antinazi." Foi um miúdo vivaço e algo
irrequieto e até "rebelde". O nazismo e a guerra complicaram tudo.
Com o tempo, tornou-se "mais reflexivo e menos alegre". Manifestou
desde sempre interesse pelas questões religiosas.
Aos 17 anos foi chamado para o serviço
militar do Reich. Foi desertor e prisioneiro dos americanos. Essa experiência
tê-lo-á marcado definitivamente. De facto, quando já Papa, visitou Auschwitz e
fez um discurso deveras dramático e emocionante. "Tomar a palavra neste
lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na
história, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um
cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as
palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um
grito interior para Deus: porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto?
Onde estava Deus nesses dias? Porque é que se calou? Não podemos perscrutar o
segredo e o mistério de Deus, só fragmentos, e enganamo-nos quando queremos
converter-nos em juízes de Deus e da história. O nosso grito dirigido a Deus
tem de ser ao mesmo tempo um grito que penetra no nosso próprio coração para
que desperte em nós a presença oculta de Deus, para que o poder que depositou
nos nossos corações não fique coberto ou sufocado em nós pelo egoísmo, pelo
medo dos homens, pela indiferença e pelo oportunismo." É necessário elevar
esse grito até Deus particularmente no momento actual, "no qual parecem
surgir novamente nos corações dos homens todas as forças obscuras: por um lado,
o abuso do nome de Deus para justificar uma violência cega contra pessoas
inocentes e, por outro, o cinismo que não reconhece Deus e que ridiculariza a
fé nele. Gritamos a Deus para que leve os homens a arrepender-se e a reconhecer
que a violência não cria paz, mas suscita mais violência, um círculo de
destruição no qual, no final de contas, todos perdem".
Foi sempre excelente nos estudos e fez
uma carreira académica brilhante, sendo reconhecido como um dos mais lúcidos
intelectuais contemporâneos. Agostiniano na sua orientação teológica - Deus é
"o Deus da fé, que toca o coração do homem, que me conhece e me ama, mas,
de algum modo, Deus deve ser também acessível à razão" -, conservador,
também quis, concretamente a seguir à guerra, renovar a Igreja: "Éramos
progressistas. Queríamos renovar a teologia e com ela a Igreja, tornando-a mais
viva. Queríamos que a Igreja progredisse e estávamos convencidos de que deste
modo seria rejuvenescida." Não ousaria alguma vez apresentar-se como
"reverendo". Nós, sacerdotes, "não somos patrões, mas
servos". Em 1958, era capelão, escreveu um texto intitulado: "Os
novos pagãos e a Igreja", em relação ao qual se chegou a dizer que
"continha afirmações heréticas". Ajudou financeiramente estudantes.
Foi "fã" de João XXIII. "Tínhamos uma certa reserva interior
face à teologia de Roma." Participou com entusiasmo na renovação da Igreja
com o Concílio Vaticano II, assessorando concretamente o cardeal Josef Frings,
de Colónia, e dando contributos decisivos para o documento sobre a Revelação.
Partidário de mais "colegialidade" no governo da Igreja, assinou um
texto de Karl Rahner - é certo que "mais por amizade" -, para debater
e até abolir a lei do celibato. Pôs reservas à encíclica Humanae Vitae: "O
que dizia era válido na substância", mas "eu procurava uma
aproximação antropológica mais ampla".
Como se deu a viragem? Temeu a
fragmentação da Igreja, pois havia interpretações indevidas do Concílio, a
liturgia parecia à deriva, as pessoas já não tinham uma orientação clara para a
fé, estava a impor-se "a ditadura do relativismo". O Concílio
terminou em 1965 e já em 1967, numa aula em Tubinga, chamou a atenção para que
a fé cristã estava agora, "como nunca antes na história", circundada
"pela névoa da incerteza". Por isso, eu penso que a zona mais negra
ou, pelo menos, mais problemática da sua vida, que foi a da condenação de
tantos teólogos durante o tempo da sua presidência da Congregação para a Doutrina
da Fé, tem neste temor a sua explicação: "Vi que a teologia já não era a
interpretação da fé da Igreja Católica." Exemplo típico de desvio
teológico, segundo Ratzinger: Hans Küng, de quem foi amigo e colega e com quem
não é meigo na crítica, embora "nunca tenha aconselhado tomar medidas
contra ele".
Por decisão pessoal, o autor do texto
não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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