Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias
1- Devemos a vida a uma mulher, à mãe.
Claro que também ao pai, mas a nossa mãe poderia ter-nos rejeitado e não
nasceríamos. Se alguém se sacrificou e nos amou e ama é a mãe. Dá, pois, que
pensar o modo como as mulheres são tratadas ao longo da história e, nessa
história, também as religiões são acusadas, pois, com excepção do taoísmo,
tendem para a misoginia. Ficam aí alguns textos universais significativos.
"A mulher deve adorar o homem como a um deus" (Zaratustra). Um texto
antigo budista diz que "a filha deve obedecer ao pai; a esposa, ao marido;
por morte deste, a mãe deve obedecer ao filho". "A natureza só faz
mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem
falhado" (Aristóteles). "Toda a malícia é leve, comparada com a
malícia da mulher" (Bíblia, Ben Sira). "Dou-te graças, Senhor, por
não ter nascido mulher" (oração dos judeus ortodoxos). "As mulheres
estão essencialmente feitas para satisfazer a luxúria dos homens. Não permito à
mulher ensinar nem ter autoridade frente ao homem, mas estar em silêncio"
(São João Crisóstomo). "A ordem justa só se dá quando o homem manda e a
mulher obedece" (Santo Agostinho). "Nada mais impuro do que uma
mulher com a menstruação. Tudo o que toca fica impuro" (São Jerónimo).
"No que se refere à natureza do indivíduo, a mulher é defeituosa e mal
nascida, porque o poder activo da semente masculina tende a produzir um ser
perfeito parecido, do sexo masculino, enquanto que a produção de uma mulher
provém de uma falta do poder activo " (Santo Tomás de Aquino). "Os
homens têm autoridade sobre as mulheres em virtude da preferência que Deus deu
a uns sobre outros" (Alcorão, que permite desposar duas, três ou quatro
mulheres e também bater nas que se rebelem).
2- Razões para esta situação? As primeiras
figurações da divindade foram femininas, mas, depois, com a sedentarização,
seguiu-se, também no domínio religioso, o modelo predominantemente patriarcal,
com as mulheres no lar e sob a tutela dos homens. Haverá inconscientemente por
parte dos homens inveja do prazer feminino, e da vida quem percebe são as
mulheres. Embora elas sejam mais resistentes, os homens têm mais força física.
As mulheres estavam sujeitas à impureza ritual e eram consideradas passivas
também na geração, pois o óvulo feminino só foi descoberto em 1827; dada esta
passividade, a mulher não poderia ser imagem de Deus e, embora Deus esteja para
lá da determinação sexual, nunca se poderia recitar o Credo, dizendo:
"Creio em Deus, Mãe todo-poderosa, criadora dos céus e da terra." Ela
não poderia pregar. Foi um escândalo quando o Papa João Paulo I disse que Deus
também é Mãe. Mas o Papa Francisco disse recentemente que "Deus é Pai e é
Mãe". E há outra razão: quem escreveu os textos eram homens, a educação
era para os rapazes...
3- E Jesus? Escandalosamente, tinha
discípulos e discípulas. Segundo o Evangelho de São Lucas,
"acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres", ensinava tanto homens
como mulheres, ficando em casa, por exemplo, de Marta e Maria. Deixou-se tocar
e acarinhar publicamente por uma prostituta, louvando o seu gesto de o perfumar
e perdoou-lhe os pecados. Seguiram-no até à morte, como se lê no Evangelho
segundo São Mateus: "Junto à cruz havia muitas mulheres que tinham seguido
Jesus desde a Galileia, entre elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e José, e
a mãe dos filhos de Zebedeu." Contra a Lei, defendeu a adúltera e curou a
filha de uma estrangeira, a cananeia, bem como a mulher com um fluxo de sangue,
que o tocou. Contra os preceitos da época, que impediam normalmente as mulheres
de se dirigir aos homens em público, foi à samaritana - tinha tudo contra ela:
outro povo, herética, ia no sexto marido... - que Jesus se revelou como o
Messias. As primeiras testemunhas da ressurreição, da fé em que Jesus, na
morte, não caiu no nada, mas está vivo em Deus para sempre, foram mulheres, a
começar por Maria Madalena, chamada por Rábano Mauro e Tomás de Aquino a
"Apóstola dos Apóstolos".
4- São Paulo era misógino? Há textos
temíveis: "As mulheres estejam caladas nas assembleias, porque não lhes é permitido
tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submissas" (Primeira
Carta aos Coríntios). "A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a
submissão. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o
homem, mas que se mantenha em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão,
depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, deixando-se
seduzir, incorreu na transgressão" (Primeira Carta a Timóteo). Hoje, os
exegetas sabem que estes textos não pertencem a São Paulo, são posteriores e
interpolações indevidas. Como poderiam ser de São Paulo, que está na base da
tomada de consciência da igual dignidade de todos, ao proclamar, na Carta ao
Gálatas: "Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem
nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus"? E não chamou
"apóstola" a Júnia?
5- Teólogos eminentes, como Karl Rahner,
Yves Congar, o cardeal Martini, o cardeal José Policarpo, o cardeal Karl
Lehmann, mostraram que não há nenhuma razão teológica que se oponha à ordenação
sacerdotal de mulheres. Para lá de tudo: Deus não se pode opor aos direitos
humanos.
6- Entretanto, revolução maior na história
a caminho - as francesas votaram pela primeira vez em 1945 e as suíças só em
1971 - é a emancipação feminina e o acesso das mulheres ao poder, com
consequências à vista: transformação das relações sociais, na família, na
educação, no domínio sexual, no trabalho... Elemento decisivo: a educação.
Depois, como escreve J.-L. Servan--Schreiber, "o politicamente correcto
tende a minimizar as diferenças entre os sexos; mas a biologia resiste."
Portanto, igualdade na diferença. Mas igualdade, sem discriminação.
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