"É perdendo o poder de dominar que se ganha o gosto da vida como dom, a alegria verdadeira."
Disse Jesus:” Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer produz muito fruto” (João 12.24).
Opinião de Frei Bento Domingues, no
PÚBLICO
1. Não fui eu que inventei o título
desta crónica. Vem direitinho do Evangelho segundo S. João, com paralelo em S.
Lucas, escolhido para ser proclamado na Missa deste Domingo. Quem, dentro ou
fora dessa celebração, gastar algum tempo a meditar e a confrontar a sua vida
com este texto, absolutamente espantoso, só tem a ganhar. A sua lógica é
estranha, mais acertada, porém, do que qualquer outra lógica mundana, religiosa
ou eclesiástica.
Começa numa conversa e vai acabar
noutra. O contexto já é o da Páscoa judaica: seis dias antes da Páscoa, Jesus
foi a Betânia, onde estava Lázaro que Jesus tinha arrancado da morte. Por esse
motivo, a família de Lázaro ofereceu um jantar em sua casa. Pelos vistos, os
discípulos também foram convidados.
Marta, como de costume, estava a preparar
tudo e a servir à mesa. Maria, a irmã, era mais para o louco e foi buscar o
melhor perfume para lavar os pés de Jesus. Enxugou-os com os seus cabelos. O
seu reconhecimento por ver o irmão vivo era sem medida. Toda a casa ficou
perfumada por aquela alegria.
Judas Iscariotes não gostou dessa
extravagância. Aproveitou a cena para se mostrar o defensor dos pobres e marcar
pontos aos olhos do Mestre: porque não se vendeu este perfume por trezentos
denários — eram 300 dias de trabalho normal — para os dar aos mendigos? O
narrador observa com malícia: ele disse isto, não porque se preocupasse com os
mendigos, mas porque era ladrão e, como tinha a bolsa comum, metia a mão na
massa; o “pobre” a beneficiar com a poupança seria ele próprio. Jesus cortou
essa conversa e disse algo que teve consequências dramáticas: mendigos tendes
sempre entre vós. Esta fala foi usada pelos exploradores para não se tocar nas
injustas estruturas da sociedade. Jesus teria consagrado a desordem social. Se
lermos bem, descobrimos que essa não era e não é o sentido da fatídica
sentença. Verificaremos que Judas estava numa onda e Jesus noutra totalmente
diferente. Pobres, desgraçadamente, nunca faltam. O que continua a faltar é a
vontade de acabar com as causas da pobreza imposta.
Por outro lado, o autor do IV Evangelho
não está a escrever uma reportagem jornalística, mas a fazer uma meditação
retrospectiva, seleccionando enigmas e mistérios. A sua narrativa sabe que o
fim trágico de Jesus estava a aproximar-se. Não iria morrer na cama rodeado de
familiares e amigos. Daí o seu empenho em defender a loucura de Maria, pois
escreve para destacar a solidão imensa do Mestre — até os discípulos o
abandonaram — e a paixão das mulheres por Aquele que lhes restituiu a dignidade
humana e divina de filhas de Deus. Foram elas que acompanharam Jesus até ao fim
e até depois do fim!
Isto para dizer que a situação externa
daquele jantar estava carregada de tensões. Todos queriam ver Lázaro, o
miraculado, e Jesus, o autor do acontecimento. Os sumos-sacerdotes, os que
viviam da religião oficial e do fluxo enorme de peregrinos naquela data,
sentiram a ameaça. Muitos judeus estavam a passar-se para o lado de Jesus.
Deliberaram matar os dois.
Entretanto, tudo se agravou. A multidão
que tinha vindo para a Páscoa aproveitou o momento para uma ruidosa
manifestação de apoio a Jesus, o Nazareno. Os discípulos, como sempre, não
entendiam o que se estava a passar. Os fariseus estavam desesperados com aquele
sucesso: todo o mundo vai atrás dele! [1]
2. No meio daquela multidão, havia uns
gregos simpatizantes do judaísmo (os "tementes a Deus"), intrigados
com o que estava a acontecer. Pediram, então, a um discípulo galileu, Filipe,
nada menos do que isto: queremos ver Jesus.
O evangelista, como é sempre o seu
costume, apresenta a resposta como se Jesus não tivesse percebido.
De facto, tinha chegado o momento sobre
o qual já nenhuma ilusão era permitida. Jesus, no meio daquela confusão toda,
talvez se interrogasse acerca do sentido do caminho percorrido com os
discípulos, com as multidões e com os adversários cada vez mais agressivos e
ameaçadores.
Dada a sua teologia, S. João apresenta
Jesus angustiado, mas não vencido. É chegada a hora em que o Filho do Homem
será glorificado.
A partir desse instante já não era
possível recuar sem trair todo o sentido da sua vida e o Deus da sua paixão.
“Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não
morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida
perdê-la-á; e quem a perder neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se
alguém me quiser servir, que me siga. Onde eu estiver, estará também o meu
servo. Se alguém me servir, meu Pai o honrará. Agora a minha alma está
perturbada. E que hei-de dizer? Pai salva-me desta hora? Mas por causa disto é
que eu cheguei a esta hora. Pai glorifica o teu nome.”
S. João não está longe da versão de S.
Lucas quanto à exigência libertadora no seguimento de Cristo: Aquele que quiser
salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por causa de mim,
esse a salvará? [2] Realça: que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se ele
se perder ou arruinar a sua humanidade?
3. Chegamos ao ponto essencial. Os
discípulos de Jesus passaram o tempo a perguntar-lhe: que ganhamos nós em te
seguir? A resposta foi sempre a mesma: a capacidade de servir alegria, de
gastar a vida pela vida verdadeira de todos, a começar pelos mais abandonados.
É por esse caminho que nos tornamos verdadeiramente humanos.
Durante os tempos de Cristandade,
perderam-se, na Igreja, muitas energias para conseguir e defender o poder de
dominar. No entanto, em todos os momentos de verdadeira reforma, a referência
incontornável continuou a mesma: é perdendo o poder de dominar que se ganha o
gosto da vida como dom, a alegria verdadeira [3].
Os Actos dos Apóstolos recolhem um
aforismo de Jesus que não se encontra em mais lado nenhum. É referido por S.
Paulo ao despedir-se dos anciãos de Éfeso: “Não desejei prata, ouro, nem o
vestuário de ninguém. Vós próprios sabeis que às minhas necessidades e às dos
meus companheiros valeram-me estas mãos. Mostrei-vos, de todos os modos, que trabalhando
assim, devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus:
Há mais felicidade em dar do que em receber?" [4]
Dir-se-á que tudo isto está muito
datado. Hoje, a economia, a política, as religiões já superaram essa
ingenuidade e as suas ideologias globalizaram sistemas de dominação
imperialista e de confronto bélico. Não valeria a pena interrogar as famílias,
as instituições católicas de ensino a todos os níveis, a pastoral da Igreja nas
suas diversas expressões, com a seguinte questão: será que nesses nichos
católicos crescem pessoas com as “manias” de Jesus Cristo?
[1] Jo 12, 1-19
[2] Jo 12, 20-33; Lc 9, 23-26
[3] Yves Congar, O.P., Igreja serva e
pobre, Logos, Lisboa, 1964; Javier Elzo, Quién manda en la Iglesia?, PPC,
Madrid, 2016
[4] Act 20, 32-38
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