Jesus é recebido por uma grande multidão
que o aguardava após a travessia do Lago de Tiberíades. Enquanto se detém à
beira-mar, chega Jairo, chefe da sinagoga local. Vem muito aflito. A sua filha
está a morrer. Procura ajuda, a última, pois as outras não haviam resultado. Ao
ver Jesus, suplica-lhe com insistência: “Vem impor-lhe as mãos, para que se
salve e viva”. E Jesus foi com ele, acompanhado pela multidão que o apertava,
afirma a narração de Marcos.
Que cena maravilhosa! Jesus, sem
guarda-costas, completamente à vontade, no meio da multidão. A sofrer empurrões
de todos os lados. A olhar pessoalmente cada pessoa. A atender as urgências
inadiáveis. Sem pensar em si ou na sua comodidade, sem medir perigos nem
distâncias. Movia-o a paixão por aliviar o sofrimento humano, por enxugar
lágrimas sentidas, por salvaguardar a vida. Que exemplo estimulante nos deixa
como legado em herança.
No caminho, acontece o inesperado. A
surpresa vem de uma mulher que sofría de fluxos de sangue, de feridas secretas,
íntimas. Está “nas últimas”. Havia tentado tudo. Havia gasto o que possuía. E o
resultado era nulo. Mas o seu coração não dormia e uma secreta confiança lhe
advinha de Jesus de Nazaré de quem ouvira falar. Decidida, lança a aventura,
quebrando todas as barreiras: a dos discípulos que rodeavam o Mestre, a das
leis higiénicas e religiosas que proibiam o andar no meio das outras pessoas, a
comitiva de Jairo que, apressada, guiava Jesus para casa.
A mulher sofrida mostra um proceder humano
admirável. Proceder que São Gregório de Nissa, no livro sobre «a perfeição da
vida cristã» sistematiza deste modo: “Há três coisas que revelam e distinguem a
vida do cristão: a acção, a palavra e o pensamento. Entre estas, vem em
primeiro lugar o pensamento; em segundo lugar, vem a palavra, que manifesta e
exprime, por meio dos vocábulos, o pensamento concebido e impresso no espírito;
depois do pensamento e da palavra, vem a acção, que põe em prática o que o
espírito pensou”. Bela síntese que brilha na atitude desta mulher: pensa que
pode surgir uma oportunidade; dá-lhe nome pessoalizado; e, depois, age de acordo
com o “plano” gizado. É tão rica esta cena que nos vamos deter nos seus
elementos principais.
A mulher preocupa-se com a cura da fonte
do seu sofrimento. Não basta o recurso ocasional para remediar os seus efeitos.
Indica claramente um caminho a percorrer para os cuidadores de saúde,
voluntários e profissionais, para a medicina convencional ou alternativa.
Manifesta, sem alarde, que muitos tratamentos levam a consumir os bens das
pessoas sem resultado e a beneficiar quem assume o encargo de os fazer
convenientemente. Denuncia, sem o dizer, as situações desumanas que ocorrem
nesta área tão sensível de uma sociedade humanizada que quer garantir o serviço
de saúde a todos/as.
A mulher manifesta o valor da saúde
integral: a do físico e emocional, a da mente e relacional, a do ambiente e
espiritual. Saúde integral que se enraiza numa correcta compreensão do corpo
humano.
O Papa Francisco, ao falar, no dia 25 de
Junho de 2018, na «Academia para a Vida» lembra a “sabedoria que deve inspirar
a nossa atitude” chamada a considerar a qualidade ética e espiritual da vida em
todas as suas fases. E designa esta atitude por “ecologia humana”. E prossegue
referindo-se ao nosso corpo “que nos situa numa relação directa com o ambiente
e com os outros seres vivos. A aceitação do próproo corpo como dom de Deus é
necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum,
enquanto uma lógica de domínio sobre o próprio corpo se transforma numa lógica,
às vezes subtil, de domínio sobre a criação”. E, em jeito de conclusão, o Papa
adianta: “Aprender a receber o próprio corpo, a cuidar dele, e a respeitar os
seus significados, é essencial para uma verdeira ecologia humana. Também a
valoração do próprio corpo na sua femineidade ou masculinidade é necessária para
se reconhecer a si mesmo no encontro com o diferente”( Laudate Si, nº 155).
A mulher provoca o silêncio dos
acompanhantes de Jesus. Tal o inusitado. Silêncio que é indiciador do que havia
surgido: um novo olhar sobre a mulher, o corpo humano e sua condição sexuada,
sobre a pessoa como indivíduo aberta à relação de reciprocidade masculina e
feminina; um novo olhar sobre a sociedade de seres humanos iguais em dignidade,
diferentes em capacidades e complementares no desempenho de funções; um novo
olhar que emerge do olhar de Jesus que vê a multidão que o rodeia e aperta,
identifica a mulher que o tocou e, assustada, vem dizer-lhe a verdade do que
havia acontecido.
A mulher empreende a sua ousadia, após
dialogar com a sua consciência, de fazer o balanço entre a necessidade e o
risco, entre a dor da inibição e a alegria da exposição, da previsível
satisfação. Grande atitude: a cautela e a ponderação dão as mãos e aconselham a
melhor opção. Avançou e acertou. E recebeu de Jesus o reconhecimento público da
sua ousadia: “Minha filha, a tua fé te salvou”.
Marcos, o narrador, não indica nada sobre
o que teriam dito os discípulos, os amigos de Jairo, os outros acompanhantes. O
relato deixa em aberto essa atitude para as gerações seguintes poderem parar,
saborear, quebrar barreiras, mergulhar na bondade de Jesus que, prossegue,
incansavelmente nos caminhos da missão, a testemunhar um rosto diferente do
nosso Deus que se espelha no cuidado integral do corpo humano. Prossegue também
por meio de nós, como cidadãos cristãos, na Igreja e na sociedade.
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