Reflexão do Anselmo Borges no Diário de Notícias
«"Será com os descartados desta
humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, Deus plasmará a sua última obra
de arte." "Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que
vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de
comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me, estive na
prisão e fostes ter comigo. Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes."»
O que é que verdadeiramente queremos? A
realização plena de todas as dimensões do ser humano, a plenitude, a
felicidade. O Papa Francisco sabe disso e escreveu a exortação Alegrai-vos e
Exultai, para indicar o caminho dessa realização, na convicção de que Deus,
"aquele que pede tudo, também dá tudo, e não quer entrar em nós para
mutilar ou enfraquecer, mas para levar à perfeição". Sempre sob o desígnio
da alegria. Francisco lembra o livro da Bíblia, Ben Sirá: "Meu filho, se
tens com quê, trata-te bem. Não te prives da felicidade presente" e também
São Francisco de Assis, "capaz de se comover de gratidão perante um pedaço
de pão duro ou de louvar, feliz, a Deus, só pela brisa que acariciava o seu
rosto". Não se trata, portanto, da "alegria consumista e
individualista. Com efeito, o consumismo só atravanca o coração; pode
proporcionar prazeres ocasionais e passageiros, mas não alegria". A
verdadeira alegria é aquela que "se vive em comunhão, que se partilha e
comunica", porque, segundo uma palavra de Jesus, "a felicidade está
mais em dar do que em receber". Não será por acaso que na cultura de hoje
se manifestam alguns riscos e limites, a evitar: "a ansiedade nervosa e
violenta que nos dispersa e enfraquece, o negativismo e a tristeza, a acédia
cómoda, consumista e egoísta, o individualismo e tantas formas de falsa
espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso
actual". "O consumismo hedonista pode enganar-nos, porque, na
obsessão de nos divertirmos, acabamos por estar excessivamente concentrados em
nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar
a vida..., acabando por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem
provar. O próprio consumo de informação superficial e as formas de comunicação
rápida e virtual podem ser um factor de estonteamento que ocupa todo o nosso
tempo e nos afasta da carne sofredora dos irmãos. No meio deste turbilhão
actual, volta a ressoar o Evangelho para nos oferecer uma vida diferente, mais
saudável e mais feliz", adoptando cada um o seu caminho e discernindo segundo
os tempos e as circunstâncias, sem, por outro lado, ficar sujeito a um zapping
constante. Deus é eterna novidade e não se pode cair na sedução da habituação,
do "sempre foi assim": a Igreja não é "uma peça de museu nem uma
propriedade de poucos".
"O que é que tem real valor na vida?
Quais são as riquezas que não desaparecem? Seguramente duas: Deus e o próximo.
Estas duas riquezas não desaparecem." E as duas são inseparáveis. Jesus,
mais do que muitas fórmulas e preceitos, entregou-nos "dois rostos, ou
melhor, um só: o de Deus que se reflecte em muitos, porque em cada irmão,
especialmente no mais pequeno, frágil, inerme e necessitado, está presente a
própria imagem de Deus". Assim, a santidade é feita de abertura habitual à
transcendência, que se expressa na oração e na adoração. "O santo é uma
pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com Deus. É alguém
que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo e, no meio dos
seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo louvores e
alarga os seus confins na contemplação do Senhor." Há dois erros nocivos.
O daqueles que transformam o cristianismo numa "espécie de ONG",
privando-o daquela espiritualidade irradiante que o caracteriza. Mas "é
nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do
compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano,
secularizado, imanentista, comunista, populista". Sagrada é a vida dos
pobres que "se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de
pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas
novas formas de escravatura e em todas as formas de descarte. Não podemos
propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde
alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do
consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua
vida passa e termina miseravelmente".
O que é ser santo? Jesus explicou-o nas
"bem-aventuranças", que são "como que o bilhete de identidade do
cristão". "A palavra 'feliz' ou 'bem-aventurado' torna-se sinónimo de
'santo', porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra
alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade." As bem-aventuranças
implicam outro estilo de vida e são contracorrente. "Felizes os pobres em
espírito": "as riquezas não te dão segurança alguma"; no coração
dos que têm o coração pobre, "Deus pode entrar com a sua incessante
novidade". "Felizes os mansos": "a mansidão é outra
expressão do desapego interior". "Felizes os que choram":
compreendem a angústia alheia e aliviam os outros. "Felizes os que têm
fome e sede de justiça": a realidade mostra-nos como "é fácil entrar
nos gangues da corrupção, fazer parte dessa política diária do 'dou para que me
dêem', onde tudo é negócio". "Felizes os misericordiosos": a
misericórdia é dar, servir os outros e também perdoar e compreender; "a
medida que usardes com os outros será usada convosco", disse Jesus.
"Felizes os puros de coração", porque é do coração que procedem os
homicídios, os roubos, os falsos testemunhos, preveniu Jesus. "Felizes os
pacificadores." "Felizes os que sofrem perseguição por causa da
justiça."
"Será com os descartados desta
humanidade vulnerável que, no fim dos tempos, Deus plasmará a sua última obra
de arte." "Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que
vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de
comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me, estive na
prisão e fostes ter comigo. Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes."
Padre e professor de Filosofia. Escreve de
acordo com a antiga ortografia.
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