no publico
Ao ritmar “terra, tecto e trabalho”, a ladainha do
Papa não é a de um ideólogo do capitalismo.
1. Eu deveria observar algum tempo de jejum em
relação ao estilo, aos temas e aos conteúdos das intervenções pastorais de
Mario Bergoglio, mas não me apetece nada precipitar a Quaresma.
Não é, todavia, para o defender ou ceder à
desnecessária apologia de alguém que precisa mais de seguidores do que de
admiradores. Conheço a oração, “Senhor, ilumina-o ou elimina-o”, as acusações
de ser “comunista” e de usar os métodos do “prec” na reforma da cúria, de
abusar da noção de hierarquia das verdades e de estar a perder, por palavras,
gestos e atitudes, a tradicional dignidade de um “verdadeiro” Santo Padre. Há
quem discuta a legitimidade da sua eleição e não só.
Um liberal espanhol, Miguel Angel Belloso, publicou,
no DN (31/10/14), um artigo intitulado “O diabo também mora no Vaticano”.
Transcrevo alguns parágrafos significativos para não atraiçoar o pensamento do
autor: “Depois dos felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI,
reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do
capitalismo sobre a pobreza, o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval
Francisco”. (…) “Infelizmente o novo Papa não aprendeu nada [com a experiência
Argentina], vem completamente contaminado de populismo e embebido da retórica
infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do
socialismo são a consequência de erros bem-intencionados enquanto a fé no
mercado é a expressão de algo parecido com um cataclismo moral”. (…) “Desde a
sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium, até às suas reiteradas
filípicas nas viagens apostólicas - a mais recente foi à Coreia do Sul -,
Francisco não perdeu a oportunidade de fustigar os liberais, caricaturando o
mercado como uma tirania em que vigora a lei do mais forte, na qual o ser
humano é considerado como um bem de consumo e em que a ganância de poucos se
satisfaz reduzindo o bem-estar dos demais. Estas premissas são claramente erros
de vulto, demonstram uma ignorância elementar sobre o funcionamento da economia
e um desprezo tremendo pelos resultados originados pelo sistema de mercado no
progresso material dos povos”.
2. Se o autor já conhecesse o discurso do Papa aos
participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, reunido no Vaticano
(27-29/10/14), ficaria arrepiado com as suas ousadias: “Este encontro de
Movimentos Populares é um sinal, é um grande sinal: viestes colocar na presença
de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres
não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! Não se contentam com
promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão à espera, de
braços cruzados, da ajuda de ONG, de planos assistenciais ou de soluções que
nunca chegam ou, se chegam, destinam-se a anestesiar ou domesticar. (…) Os
pobres já não estão à espera, querem ser protagonistas: organizam-se, estudam,
trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial
que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização
parece ter esquecido ou, pelo menos, tem muita vontade de esquecer.
“Solidariedade (…) é pensar e agir em termos de
comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por
parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a
desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos
direitos sociais e laborais. É enfrentar os efeitos destrutivos do Império do
dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de
pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de
vós sofreis e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade,
entendida no seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história e é isso
que os movimentos populares fazem. Este nosso encontro não responde a uma
ideologia. Vós não trabalhais com ideias. Trabalhais com realidades como as que
eu mencionei e muitas outras que me contaram… têm os pés no barro e as mãos na
carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta! Queremos que se ouça a sua voz,
que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque desagrada, talvez porque o seu
grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que reivindicam, mas, sem
a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos
que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da
ideia”.
3. Pelo que se pode observar, nesse longo discurso,
os ataques e as farpas que lhe chegam do mundo dos poderes económicos,
políticos e religiosos, longe de o intimidar só lhe mostram o que ainda falta
fazer por todo o género de excluídos.
Nesse discurso, ao deparar com a expressão, “Digamos
juntos”, pensei que estava a iniciar uma prece comunitária. E estava. Só não
era a mais habitual na boca de um Papa: “Digamos juntos, de coração: nenhuma
família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos,
nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.
Ao ritmar “terra, tecto e trabalho”, no primeiro
Encontro Mundial de Movimentos Populares, a ladainha do Papa, de facto, não é a
de um ideólogo do capitalismo.
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