no DN
Fez ontem dois anos que, ao anoitecer,
perante uma multidão expectante na Praça de São Pedro, em Roma, compareceu,
humilde e simples, sem a pompa da indumentária papal, com uns sapatos negros já
gastos e uma cruz peitoral barata, Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires,
que os cardeais tinham escolhido como novo Papa. "Buona sera!" (boa
noite), foi a saudação de um homem normal. Que o tinham ido buscar ao fim do
mundo para bispo de Roma. E, antes de dar a bênção, ele próprio pediu a bênção
ao povo e que rezassem por ele. Agora, chamava-se Francisco. Ainda quiseram
começar a tratá-lo por Francisco I, à maneira das dinastias, mas ele que não,
era simplesmente Francisco. Lembrando Francisco de Assis, a caminho de uma
Igreja pobre e para os pobres, como Jesus queria e fez. Logo no dia seguinte,
foi normalmente pagar o seu alojamento daqueles dias em Roma, e acabaram as
limusines, e foram de autocarro, ele e os cardeais. E que não queria viver no
Palácio Apostólico, precisava de conviver, ficou a habitar na Casa de Santa
Marta.
E toda a gente percebeu que uma
realidade nova na Igreja estava em marcha. E não enganou. Está aí como um
cristão na sua pureza e exemplo vivo. Beija, abraça, está junto de quem mais
precisa, gosta das pessoas e manifesta-lhes afeto e elas sentem isso como
autêntico e gostam dele também, ri, chora, não tem vergonha da ternura, fala em
termos acessíveis do essencial da vida para todos, telefona a este e àquela, a
doentes e amigos, lava os pés a mulheres incluindo uma muçulmana, quer abrir a
comunhão aos recasados, batiza filhos de mães solteiras e de uniões de facto,
quem é ele para julgar os homossexuais, recebe transexuais, apela à paternidade
e maternidade responsáveis, confessa-se pecador, que não é infalível, que tem
dúvidas, condena veementemente o capitalismo desenfreado e a finança
especulativa que matam, vai a Lampedusa chorar a morte no Mediterrâneo, instala
no Vaticano balneários para os sem-abrigo e arranja-lhes uma barbearia, viaja
para o Rio, para a Jordânia, Israel, a Palestina, a Coreia do Sul, a Albânia, o
Parlamento Europeu, a Turquia, o Sri Lanka, as Filipinas, e o que o move é o
diálogo, a paz e uma humanidade feliz, pede a opinião dos católicos do mundo
inteiro sobre a família e os seus problemas, porque o Sínodo tem de ser
participado por todos, contra a globalização da indiferença, a sua verdadeira
obsessão são os pobres e excluídos, a Igreja não é uma alfândega, mas um
hospital de campanha, as palavras perdão e misericórdia são as mais repetidas.
Francisco é hoje talvez a figura mais
popular do mundo e uma das mais influentes. No meio deste nosso mundo ameaçado,
perigoso e incerto, Francisco surge como despertador de esperança e confiança.
Como escreveu o eurodeputado Paulo Rangel, "tem sido a única voz carismática
e a única referência ética a nível global". "Interpela-nos pelo
exemplo; toca-nos pelo sentido profético".
E as pessoas souberam, depois de tantas
condenações, que a única missão da Igreja é anunciar o Evangelho, notícia boa e
felicitante para todos. A única mensagem: Deus é amor, não condena, salva.
Assim, a tarefa primeira de Francisco é tentar converter os católicos,
começando pelos cardeais, bispos e padres, a esta "alegria do
Evangelho". E facilitar a compreensão da fé, no diálogo com a razão. Graças
ao novo espírito, a teologia tem respirado liberdade.
Mas, se isto é o núcleo essencial, a sua
missão não se esgota aqui. Porque se impõem outras tarefas, que começou a
implementar.
Ninguém duvida da situação desgraçada,
intolerável, a que a Igreja tinha chegado. E impõe-se a tolerância zero para a
pedofilia entre o clero. E impõe-se a transparência dos dinheiros no Vaticano,
sem que possa haver sequer a suspeita de lavagem de capitais e evasão fiscal. E
impõe-se uma reforma radical, consistente e duradoura, constitucional, da Cúria
Romana, Governo central da Igreja. E Francisco tem sido claro por palavras e
atos nestes domínios.
Por outro lado, quer se queira quer não,
o papado é uma instituição de relevância mundial e Francisco tem sido modelar
enquanto voz político-moral global. Aí está a denúncia do sistema económico
iníquo imperante, que exclui. Aí estão os exemplos de mediação entre Israel e a
Palestina, os Estados Unidos e Cuba, no conflito da Ucrânia. Há vias de
abertura da e para a China. São aguardados com expectativa a encíclica sobre a
ecologia e o discurso nas Nações Unidas e a reunião dos líderes das religiões
mundiais, a favor da compreensão e da paz.
Essencial é a desclericalização, a
democratização na Igreja, voltando à Igreja-Povo de Deus, e a presença das
mulheres em igualdade de direitos com os homens.
Mas a questão decisiva mesmo é o próprio
papado como instituição. De facto, como está, há sempre o perigo, escreve o
teólogo José Arregi, de "tudo ficar à mercê do próximo Papa".
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