No
público
O mais velho realizador do mundo morreu
esta quinta-feira na sua casa no Porto, aos 106 anos. Foi “uma bela vida”.
Durou 106 anos, filmou até aos 105,
praticamente até ao fim – e em Fevereiro último esteve ainda a filmar, em
Serralves –, mesmo se achou não ter tido o tempo suficiente para concretizar os
seus projectos. Manoel de Oliveira morreu esta quinta-feira de manhã, na sua
casa no Porto. O funeral realiza-se sexta-feira à tarde, às 15h, com uma
pequena cerimónia religiosa na Igreja de Cristo Rei, na Foz, seguindo depois
para o cemitério de Agramonte, na Boavista.
A comunidade cinéfila e cultural (e
também política) desmultiplicou-se em declarações e testemunhos a lamentar a
perda. Alguns dos seus mais próximos, como Luis Miguel Cintra, recolheram-se no
silêncio, ou em testemunhos sentidos, mas por escrito, como Leonor Silveira,
sua “actriz improvável” e “musa”. Ou então como Júlia Buisel, sua anotadora
(script girl) fiel nas últimas décadas, que se socorreu de uma frase do
realizador na festa dos seus 90 anos, no Rivoli. “Não sei onde está agora o
Manoel, mas sei que ele estará a fazer aquilo que sempre disse e que sempre
quis fazer – está a filmar."
E houve outros actores “cúmplices” de
Oliveira de fora, como o actor Michel Piccoli ou o director de fotografia
Renato Berta, que telefonaram a querer saber se o funeral seria a tempo de se
deslocarem ao Porto, confidenciou Buisel ao PÚBLICO.
Em Portugal, o Governo decretou dois
dias de luto nacional, e a Câmara do Porto três dias de luto municipal ao seu
cidadão “invulgar”, como se lhe referiu Rui Moreira – o PÚBLICO sabe que tanto
a autarquia como a Universidade do Porto disponibilizaram as suas salas para
receber o velório do realizador, mas a família optou por uma curta cerimónia
religiosa, mesmo com os constrangimentos de Sexta-Feira Santa – “foi a última
partida que o pai nos pregou”, comentou Manuel Casimiro, filho e pintor.
E pronto. Cumpriu-se o ciclo da natureza
– e tantas vezes Oliveira disse que a sua longevidade não era mais do que “um
capricho da natureza”. O Gebo e a Sombra (2012) ficará como a sua última
longa-metragem, e O Velho do Restelo a sua última curta, em vida – chegou agora
finalmente a altura de vermos a sua biografia inédita Visita ou Memórias e
Confissões, realizada em 1982, mas que por vontade expressa do autor só seria
revelada postumamente. E a Cinemateca Portuguesa, que anunciou uma homenagem
para a próxima segunda-feira, com a exibição dos filmes O Passado e o Presente,
O Quinto Império – Ontem como Hoje e Francisca, disse já também que brevemente
fará a exibição desse filme também resultante da colaboração de Oliveira com
Agustina.
Sete dezenas de filmes
Se continuou a filmar até ao fim, Manoel
de Oliveira manteve-se também activo até ao fim, na atenção ao mundo que o
envolvia. Em 2010, num artigo para o PÚBLICO, em "defesa do cinema
português", escreveu que pensava nas condições cada vez mais difíceis
dessa coisa de fazer filmes em Portugal. Que pensava nos seus colegas.
"Eles, como eu, sempre viveram na precariedade e na insegurança, sem
reforma nem subsídio de desemprego, e sem nunca sabermos se não estaremos a
fazer o nosso último filme. Eles, como eu, só temos um desejo: todos
ambicionamos morrer a fazer filmes." E, ainda que com uma periodicidade
rarefeita nas primeiras décadas, Oliveira acabaria por realizar quase sete
dezenas de títulos, desde que, em 1931, se iniciou com a curta-metragem Douro,
Faina Fluvial.
Quando, jovem de 20 anos, começou a
frequentar os meios do cinema, este dava ainda os primeiros passos como nova
forma de expressão artística, mesmo se com a energia inovadora da narrativa de
um David W. Griffith, do expressionismo alemão de um Wilhelm F. Murnau, ou do
realismo soviético de um Sergei M. Eisenstein. Em 1928, Oliveira matriculou-se
na Escola de Actores de Cinema fundada no Porto pelo realizador italiano Rino
Lupo, e faz uma pequena figuração no seu filme Fátima Milagrosa. Era o hobby de
um jovem dandy, que por esses anos se entretinha também a praticar atletismo e
a desafiar a gravidade no trapézio do Teatro-Circo Carlos Alberto.
No ano seguinte, com o seu amigo Manuel
Mendes, empregado bancário e fotógrafo amador, começou a registar numa pequena
câmara Kinamo o dia-a-dia dos trabalhadores nas margens do rio Douro,
transpondo para o cenário da Ribeira portuense aquilo que vira o alemão Walter
Ruttmann fazer com Berlim, Sinfonia de uma Capital (1927). Desta experiência
resultou Douro, Faina Fluvial, montado à pressa na própria casa do jovem
cineasta para ser estreado, pela mão de António Lopes Ribeiro, em Lisboa, no
programa do V Congresso Internacional da Crítica. O episódio é conhecido: a
maioria da plateia de críticos nacionais pateia o filme (José Régio foi uma das
raras excepções), enquanto os estrangeiros, entre os quais se encontrava o
crítico francês Émile Vuillermoz e o dramaturgo italiano Luigi Pirandello,
aplaudem… Começou aqui uma duplicidade que praticamente acompanharia toda a
carreira do realizador, entre a desatenção ou mesmo desprezo por parte das
plateias em Portugal e o aplauso e a progressiva reverência no estrangeiro,
principalmente em França e em Itália.
A comunicação social já disse muito acerca da morte de Manoel de Oliveira, o mais idoso realizador de cinema do mundo, com 90 anos de vida envolvida por filmes, longas e curtas-metragens. Mas há um pormenor que me apraz registar, que é o seu prazer pelo trabalho. Parar é morrer, disse ele, com propriedade, dando o exemplo que a todos nós servirá de lição para a vida. Também disse que, quando nascemos, já sabemos que a morte é um ponto final garantido. Que o seu exemplo nos estimule a vencer barreiras de desânimo e nos leve a enfrentar desafios, constantemente, na certeza de que a vida é mesmo para ser vivida.
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