segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Guiné-Bissau: A questão de não se rever na justiça guineense

Por, jornalista Umaro Djau

Se calhar o Governo de Domingos Simões Pereira, através do seu Conselho de Ministros, tinha alguma razão quando afirmou que era necessário debater o estado da nossa justiça, tendo feito um pedido à ANP nesse sentido:
 “…Requerer a Sua Excelência o Presidente da Assembleia Nacional Popular, um debate de urgência, ao abrigo do disposto na alínea c) do n° 1 do artigo 68°do Regimento da ANP, para Apreciação do Estado e o Funcionamento actual da Justiça, com particular incidência sobre a actuação do Ministério Público, quer nas suas funções de titular de Acção penal como na de advogado do Estado”.[Comunicado do Conselho de Ministros da Guiné-Bissau, 14 de Julho de 2015]

Por sua vez, o Presidente da República, José Mário Vaz talvez tivesse alguma razão também quando, oito meses mais cedo, afirmara que não se revia na justiça guineense:
 “…Enquanto Presidente da República, não me revejo no actual poder judicial e julgo ser esse o entendimento de quase todos os guineenses e de muitos dos magistrados” (…) “Existe no poder judicial um grupinho que manipula a Justiça a favor dos seus interesses, familiares e amigos” (…) “é este grupinho que é também senhor e dono dos processos mais interessantes e que envolvem milhões” (…) “Estamos em Bissau e tudo se sabe, só as autoridades judiciais é que não vêem nem sabem, ou fingem não ver ou não saber”. [Discurso proferido na tomada de posse do PGR Hermenegildo Pereira, 3 de Outubro de 2014]

Mas, mais do que uma “mera” proposta governamental para um debate parlamentar ou uma “descomprometida” constatação presidencial, os dois estadistas guineenses quiseram despertar o alarme sobre o estado da justiça guineense e a necessidade para uma profunda análise e debate. Assim, espero que tenhamos ainda uma boa dose de homens honestos – sobretudo quadros da justiça e especialistas na matéria — para liderar um tal processo que vise diagnosticar seriamente a gravidade do problema e, consequentemente promover um ambiente onde todos os cidadãos e organizações se sintam iguais perante as leis e perante a Constituição da República.

Mais do que um simples edifício novo recheado de modernidade, certamente será preciso uma classe moralmente preparada e eticamente empenhada para debater os seus graves problemas internos, nomeadamente a questão da corrupção interna e da morosidade dos casos, e oferecer soluções credíveis no sentido de restabelecer a sua confiança não só com a classe política, mas com a população em geral.

Tal como sou da opinião de que não devemos permitir a continuação da nossa submissão colectiva face à uma classe política ou militar, também seria inadmissível continuarmos a ser constantemente encurralados pelos atropelos judiciais. Aliás, qualquer impotência perante uma justiça tida “perceptivamente” como corrupta seria a pior forma de aceitarmos livre e passivamente a escravização de todo um povo, por falta de condições para o exercício da legalidade e de cumprimento das leis e outras normas judiciais. Como dizia o Político e Filósofo francês, Charles de Montesquieu [1689-1755], “Não há tirania mais cruel do que aquela que é perpetuada sob o escudo da lei e em nome da própria justiça“.

Não vos parece preocupante o facto de que em 42 anos de independência nenhum Procurador-Geral da Republica da Guiné-Bissau tivesse levado à justiça um único caso, seja ele de crime de sangue, de delito económico, de carácter institucional, ou qualquer outro de relevo nacional?

Perante uma constatação triste e real da situação, os guineenses, tal como têm aceitado e encorajado as reformas nos sectores da defesa e segurança, devem também incentivar urgentemente outras acções semelhantes no da justiça.

Afinal de contas, para quê ter uma bandeira, um hino nacional, uma soberania, se os cidadãos não têm a liberdade de exercer os seus direitos jurídicos e constitucionais e não são tratados de uma forma igual perante a lei? E antes que me digam que é preciso a vontade política, diria que sim, mas não devemos ilibar os agentes jurídicos pela inércia na prática das suas funções vitais para as quais são devidamente remunerados.

Em suma, temos que concordar com a triste realidade de que são poucos os guineenses que se revêem no actual poder judicial da Guiné-Bissau. E nisso, tanto o antigo Primeiro-ministro, Domingos Simões Pereira, como o PR José Mário Vaz tinham e continuam a ter bastante razão: o país precisa de um debate de urgência sobre o vulnerável estado da sua justiça.

Admitir a exposta realidade não é estar a faltar o respeito aos agentes do aparelho judicial. O mais importante é reconhecer (honestamente) a gravidade do problema e promover vias para uma procura de soluções eficazes e duradouras para um sector extremamente importante não só para a consolidação da democracia, mas também na defesa da dignidade humana e universal.

Os homens da justiça nunca devem temer qualquer debate sobre o estado e o funcionamento da sua própria classe! O desejável seria ver este debate num fórum próprio, liderado pela própria classe judicial com ética profissional, integridade individual e responsabilidade institucional, sem qualquer outra pressão externa.


O primeiro passo seria, no entanto, a admissibilidade legítima das desconfianças existentes e o reconhecimento da inércia institucional.

Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.

3 comentários :

  1. A. Keita
    Não é meu hábito bater palmas na blogosfera e em outros espaços “cibernaúticos” de comunicação. A esta, este ou outro autor de um ou outro artigo. Mas a este presente do Sr. Djau tenho que ultrapassar a mim mesmo para exteriorizar a grande vontade de júbilo. Tendo-me invadido iterativamente lendo este artigo em apreço. Um BRAVO!, Sr. Djau, com letras maiúsculas. Sobretudo, pela honestidade analítica (esforço de imparcialidade, objetividade e honestidade intelectual) e análise acertada que se vê transparecer no texto produzido. E ainda sobretudo, por ter tido a ideia e sabido colocar neste momento exato, oportuno, um trabalho do género, numa abordagem de tal jeito, portando sobre um assunto de relevo central e de importância fundamental em relação à situação vigente no nosso país. Não tenho outras palavras. Obrigado.

    Um grande exemplo para muitos de nós, digamos observadores e analistas (intelectuais? ou simples cogno-letristas?) dos problemas resultantes do funcionamento do universo natural e social da nossa vida comum bissau-guineense. Grande contribuição positiva, e espero e desejo que a mensagem chegue a todos nós (Mulheres e Homens) seus destinatários.

    Obrigado conterrâneo.
    Sempre assim, com coragem e esforço de isenção.
    Boa saúde e sorte.
    Amizade.
    A. Keita

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  2. O problema da Justiça se deve a um disfuncionamento total do aparelho do Estado.

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  3. Caros Compatriotas!
    Li com bastante atenção o artigo do Jornalista Umaro Djau, sobre o estado da Justiça na Guiné-Bissau, que desde já felicito pela pertinência do tema.
    Porém, o mesmo peca num pormenor de importância capital em qualquer Estado que se pretende Democrático e de Direito.
    O Setor da Justiça, nomeadamente os Tribunais, enquanto Órgão de Soberania que Administram a Justiça em Nome do Povo, não podem ser vistos como um “compartimento estanque”. Os Tribunais só podem funcionar na sua plenitude com uma adequada e responsável colaboração Institucional com os outros Órgãos de Soberania, quais sejam, na organização política guineense: o Presidente da República, a Assembleia Nacional Popular e o Governo.
    A falta de uma boa colaboração Institucional é patente sobretudo quando verificamos a estatística das Decisões Judiciais (Acórdãos ou Sentenças), que aguardam a execução, tão simplesmente porque a colaboração dos Órgão Policiais, sob a tutela do Ministério do Interior, é débil ou quase inexistente.
    Quantos são os relatos dos Oficiais de Justiça que são quase sempre ameaçados ou espancados no ato das notificações, sobretudo quando se trata de “poderosos”.
    Por isso, não posso também, com o devido respeito que se deve ao Órgão de Soberania, Presidente da República, quando o seu titular afirma que não se revê no atual Poder Judicial.
    O problema da Justiça, não é exclusivamente culpa dos Operadores Judiciários. É também fruto de um disfuncionamento absoluto e grave do Estado guineense. É fruto de atitudes pouco refletidas dos nossos Políticos, da incompetência, da corrupção no aparelho do Estado etc.
    Neste sentido, a Guiné-Bissau, mais do que uma reforma no Setor da Justiça, precisa urgentemente de um verdadeira refundação do Estado, de uma mudança de paradigma e de mentalidade, em que todos os guineenses tenham espaço para viver em Paz, sem complexos étnicos, religiosos, sociais, culturais ou de quaisquer outras naturezas.
    Que Deus proteja a todos os guineenses, sobretudo os que assistem estes dias em Bissau cenas lamentáveis da vida político-partidária. Bem-Haja a todos.
    Isnaba Na Isna

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