quarta-feira, 6 de julho de 2016

Rádio Libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde: "Fala o PAIGC de Amílcar Lopes Cabral"

Criada em 1967, a Rádio Libertação foi crucial para difundir os ideais do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Amélia Araújo, locutora das emissões em português, era a voz mais conhecida.

"Camaradas e ouvintes, atenção: dentro de momentos poderão ouvir a Mensagem de Ano Novo que o nosso secretário-geral, camarada Amílcar Cabral, dirige a todos os camaradas e compatriotas da Guiné e Cabo Verde.”

Era assim que, há mais de 41 anos, Amélia Araújo anunciava na Rádio Libertação a Mensagem de Ano Novo de 1973 de Amílcar Cabral, o fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

A locutora das emissões em português era uma das principais vozes da rádio do PAIGC. Aos microfones da emissora, em Conacri, a angolana de origem cabo-verdiana leu muitos textos de Cabral a denunciar "a política enganosa dos colonialistas portugueses".

As primeiras experiências radiofónicas começaram em 1964, com a ajuda do marido, o cabo-verdiano José Araújo, dirigente do PAIGC e responsável pela área de informação. Mas o emissor que tinham "era muito fraco e não chegava convenientemente à Guiné nem a Cabo Verde", conta a locutora.

"Foi assim que começámos, com um pequeno emissor russo e um gravador Grundig, velho, a que às vezes tínhamos de dar socos para funcionar! Mas tudo isso era maravilhoso porque conseguíamos fazer as coisas assim mesmo", recorda.

Expansão do crioulo

Em 1966, Amélia Araújo e quatro companheiros guineenses foram enviados por Amílcar Cabral para uma formação de nove meses na União Soviética.

Um ano depois, a Suécia oferece-lhes um emissor e um estúdio. "E a partir daí criamos a Rádio Libertação, já com condições excecionais de trabalho para aquela época", sublinha a voz mais conhecida da Rádio Libertação.

As emissões começaram oficialmente no dia 16 de julho de 1967. Inicialmente eram apenas 45 minutos por dia, divididos em períodos de 15 minutos.

A programação era variada. Um dos programas que a locutora considerava importante era o programa em crioulo, que todos ou quase todos entendiam. "Porque a luta também serviu para unir linguisticamente todas as etnias da Guiné. O crioulo expandiu-se e toda a gente começou a falar crioulo", conta.

Além do crioulo e do português, a rádio também emitia nas línguas balanta, fula, mandinga e beafada.

"O meu país é a Madeira!"

O "Programa do Soldado Português" era uma das produções mais famosas da Rádio Libertação. Emitido na língua de Camões e com locução de Amélia Araújo, o programa incitava os militares lusos à resistência e à revolta. Era uma espécie de "guerra psicológica" com efeito desmoralizador.

"Acho que o programa teve muito impacto no seio do Exército português porque nós chamávamos a atenção para aquela guerra que não era nada deles, que não tinha a ver com eles, que não era da terra deles. Estavam a morrer à toa", lembra.

Houve uma altura em que começaram a desertar soldados, "inclusive oficiais", sublinha "Maria Turra", como Amélia Araújo também era conhecida entre os militares portugueses. "Turra" era o termo usado pelos portugueses para designar os guerrilheiros independentistas.

A locutora chegou a entrevistar um soldado da Madeira que desertou, a quem perguntou se considerava que aquela guerra era justa. “Não acho que seja justa, mas mandaram-me para cá", disse o militar.

Amélia Araújo argumenta então que se um país estrangeiro invadisse Portugal, nesse caso ele teria toda a legitimidade de defender o seu país. "O meu país é a Madeira! Não tem nada a ver com Portugal", respondeu o soldado.

"Coitado, ele era analfabeto. Era uma pessoa muito simples", explica a locutora. O português também não queria acreditar que Amélia Araújo fosse a famosa "Maria Turra". "Você não vê que não sou portuguesa? Olhe para mim!", Respondeu Amélia Araújo.

"Comunicado de Guerra"

Outra produção de grande impacto da Rádio Libertação era o programa "Comunicado de Guerra". Diariamente, eram anunciados os combates ocorridos nas diversas frentes, as vitórias ou as derrotas de ambos os lados. E também eram divulgadas as listas de soldados lusos mortos que eram publicadas por jornais portugueses.

"Éramos três pessoas a ler os nomes. Era eu, o António Mascarenhas, que foi Presidente da República, e o Arnaldo Araújo. Juntávamo-nos os três e líamos alternadamente. Uma lista de dez ou vinte pessoas parecia uma lista de 40", relata a locutora. E isso, acrescenta, "impressionava muito os soldados portugueses e fazia-os pensar sobre o porquê de estarem a morrer ingloriamente."

A emissora dava grande destaque aos momentos decisivos do PAIGC. Divulgava o hino do partido, as viagens de Amílcar Cabral, os apoios externos à causa da libertação. E era através da rádio que as mensagens de revolução chegavam ao povo guineense e cabo-verdiano.

"A rádio teve um papel importante em relação à luta armada no interior da Guiné. Porque as mensagens chegavam, as várias frentes de combate sabiam o que se passava nesta, naquela ou na outra frente", recorda Amélia Araújo.

"Amílcar Cabral até dizia que a Rádio Libertação era o canhão de boca da nossa luta." O fundador do PAIGC era um dos principais colaboradores da emissora do partido.

"Locução como deve ser"

Na Rádio Libertação também havia espaço para a colaboração dos mais novos. "Blufo" era o programa dirigido a crianças e jovens e tinha como locutores alunos da Escola-Piloto do PAIGC.

Entre eles estava a cantora cabo-verdiana Teresa Araújo, filha de Amélia Araújo. Sempre que podia sair do internato, aproveitava a oportunidade para estar com a mãe. A antiga aluna da Escola-Piloto do PAIGC gostava de ver como a mãe tratava das bobines e reparava as fitas.

Amélia Araújo também dava uma ajuda à filha e aos colegas com os textos em português. "Mandava-nos ler e fazia as correções necessárias para podermos fazer a locução como deve ser", lembra Teresa Araújo.

De dia, Amélia Araújo trabalhava no secretariado do partido. À noite, dedicava-se à rádio. "Dormia muito pouco, mas naquela altura não sentia falta, tal era o entusiasmo!", afirma.

A voz da luta

Para o ex-ministro cabo-verdiano Carlos Reis, "Amélia Araújo foi uma mulher fundamental para a luta de libertação" nacional. "Era a voz da luta através da Rádio Libertação", diz.

"Toda a gente conhecia, tinha de conhecer a Amélia Araújo. Geralmente conhecia-se primeiro a voz e depois é que se conhecia a pessoa", conta o antigo combatente e histórico do PAIGC.

O que era então anunciado na rádio continua ainda bem presente na memória da antiga locutora, hoje com 80 anos.

"'Esta é a Rádio Libertação, a voz do povo da Guiné e de Cabo Verde em luta'", recorda Amélia Araújo. "Depois havia uma música e eu dizia assim: 'Nós não lutamos contra o povo português. Lutamos sim para libertar a nossa terra do jugo colonial português'." Com o dw

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