Talvez seja redundante esse registro, entretanto
vale a pena não perder de vista o fato de que dos primórdios da independência,
alternando todo o período de um pouco mais de dois decênios da nossa experiência
democrática, a história política guineense tem testemunhado de maneira
contundente o enraizamento da praxe política fundamentada no princípio de jogo
de soma zero. Exercido e propalado no contexto político do país pelo Partido Africano
da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), por definição o jogo de soma zero
é um embate em que o ganho de um dos jogadores em disputa pressupõe a irreversível
derrota do outro player. O vicioso círculo político na Guiné-Bissau, caracterizado
por golpes de Estado, perseguições e incomplacência política desprovida do
mínimo sentido republicano, também reflete em alguma medida a assimilação ipsis
litteris da política enquanto uma competição de soma zero. A incorporação do
conceito de política nesses moldes e sua aplicação como tal tem asfixiado e
comprometido a normal governabilidade na Guiné-Bissau e minado a esperança do
martirizado povo.
A política não constitui um jogo de soma
zero. A política se manifesta como uma relação de negociações, de concessões e
transigências movidas pela noção de republicanismo, democracia e do
desenvolvimento. Ocorre que os governantes guineenses dominantes (em larga
maioria) sempre buscaram controlar (em muitos casos coercitivamente) os seus
oponentes políticos e partidários com vistas a construir e reproduzir cenário
confortável e favorável de governo resguardado de críticas e oposições,
peremptoriamente necessárias para o amadurecimento da democracia. Esta
filosofia política personalista medieval que caracteriza praticamente todo o percurso
da etapa pós-independência da Guiné-Bissau explica em grande parte os episódios
de golpes de Estado, assassinatos, prisões e perseguições políticas contidos
nas páginas da nossa história. Quando a roupagem dessas práticas antidemocráticas
supracitadas muda, como ocorre hodiernamente, os interesses superiores da nação
são postos em causa (através de congelamento de governabilidade e
institucionalidade) em troca de dissimulados interesses mesquinhos descarados e
repugnantes.
Embora em termos normativos a política
não se revelar um jogo de soma zero, quando as devidas precauções e medidas não
forem tomadas a tempo, ela pode se evoluir ao ponto de atingir estágios mais
vulneráveis: situações em que determinados atritos políticos tendem a se
transformar em jogo de soma zero. Veja bem, tanto o deposto governo (de base
alargada) que era liderado pelo presidente do PAIGC quanto o atual executivo
chefiado por Carlos Correia, logo em sua formação exibiam respectivas vulnerabilidades,
“calcanhar de Aquiles”. É verdade que o primeiro mantinha uma base parlamentar
ampla e sólida no parlamento, entretanto era objeto de sistemáticas oposições
no próprio partido, fruto de ausência de suficientes negociações e concessões
para sanear as fissuras produzidas em Cacheu. A coalizão com o Partido de
Renovação Social (PRS) como estratégia para minimizar as contestações internas
e eventuais represálias parlamentares soava como desprezo e perda de espaço
político à ala derrotada no congresso de Cacheu. Esta, por sua vez, tinha como
recurso aproximar-se ao primeiro magistrado da nação (quem acabaria por depor o
governo em causa), que também não tinha boas relações com o então chefe do
governo e representante máximo do PAIGC.
Ora, era o momento de ir à mesa negociar
e fazer concessões intrapartidárias necessárias, promovendo consensos
republicanos e partidários que satisfizessem dentro das possibilidades ambas as
partes e viabilizassem a estabilidade política. Entretanto isso não ocorreu e o
quadro que era dramático se agravava e as margens de conciliação eram cada vez
mais ínfimas. Veio o atual governo, aliás este era, em alguma medida, um
executivo natimorto forjado pela mediação do delegado da Comunidade Econômica
Dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Sequer possuía a base parlamentar
necessária para se legitimar no parlamento através de aprovação de sua proposta
de governação, pois a ruptura com o PRS havia sido celebrada e o conflito com o
grupo parlamentar dissidente beirava níveis incontornáveis.
A disputa política que ainda ostentava
alguma luz verde de negociabilidade se transformava paulatinamente em uma
disputa de soma zero. Sabes por que assim passou a ser? Porque os atores nela
envolvidos a concebem como tal. A larga maioria dos políticos guineenses,
talvez influenciada pela história política permeada por dramáticos episódios
políticos, e sanguinários em não pouco casos, não aposta em concessões como
método ideal de exercer a política. Desconfiam-se de um e outro. Concebem
divergências de opiniões políticas, que são muito normais em qualquer democracia,
como prelúdio de uma possível conspiração. A sua hermenêutica é de que em
política se não destruir o meu adversário (visto como inimigo) ele me destrói.
A censura de programa do governo pelos
deputados dissidentes do PAIGC e a consequente deliberação político-jurídica de
expulsá-los do partido e substitui-los por novos parlamentares anunciavam que a
crise havia atingido o seu grau mais elevado. As possibilidades de negociações
e concessões que pudessem produzir algum ganho político efetivo para ambas as
partes até então não totalmente descartáveis, praticamente se pulverizaram com
a transição do imbróglio político para as instâncias da justiça. A deliberação
do tribunal superior da justiça para que os deputados (que tinham sido
expelidos do hemiciclo legislativo) retomassem seus mandatos foi uma balde de
água fria no PAIGC e parece ter esgotado os seus últimos cartuchos do conjunto
de estratégias para salvaguardar a governabilidade sem fazer concessões aos 15,
que passavam a contar com o apoio político do PRS.
Ora, me parece que já estamos diante de
um jogo de soma zero. Traduzido em outros termos, há que haver perdedores e
ganhadores para viabilizar o país. Aliás, tanto a proposta de realização de
novas eleições como a de deposição do executivo, consideradas necessárias e
urgentes para extirpar a insistente crise política constituiriam perda para uns
e ganhos para outros. Como ficaria a condição dos 15 deputados em uma eventual
realização de eleições antecipadas, seriam reintegrados ao PAIGC ou seria o
término de sua carreira política nessa agremiação? Portanto, eventual
realização de eleições tenderia a ser uma derrota para estes. Por outro lado, a
deposição e formação de novo governo composto por elementos do PRS e dissidentes
dos libertadores seria uma perda total para o presidente do PAIGC e o seu staff.
Um eventual governo de iniciativa presidencial e consequente realização de novas
eleições somente em 2018 colocaria este último e o seu círculo político em situação
de considerável sangramento político, podendo inclusive ver o capital político que
ainda possui no PAIGC e no plano nacional se esvaziar progressivamente.
A corrente crise política pela qual
passa a Guiné-Bissau é de extrema profundidade e os principais protagonistas da
mesma têm consciência do que dela pode resultar para o seu futuro político,
sobretudo no PAIGC, por isso se persiste a irredutibilidade das partes no
parlamento. Aliás, agora sim estamos perante um jogo de soma zero do qual tende
a se emergir perdedores e ganhadores para que o país se desafogue e se viabilize
politicamente.
Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.
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