Parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia modernas, e que mais lucram com elas, parece estar numa situação de bancarrota “espiritual”, tanto no sentido secular como religioso do termo. A julgar pela aceitação despreocupada das crises financeiras problemáticas – a bolha da Internet de 2000, os abusos hipotecários de 2007 e o colapso bancário de 2008 – parecem igualmente estar numa situação de bancarrota moral.O acesso ilimitado à informação privada está a ser usado para criar escândalos embaraçosos, mesmo que o tema da vigilância não seja de natureza criminosa. O resultado é o silêncio dos candidatos políticos, para que eles e as suas campanhas políticas não sejam destruídos por revelações pessoais. Isso tornou-se um factor importante na governação pública.
Junto à margem do mar da Galileia, numa
manhã de Inverno cheia de sol, a poucos passos da sinagoga de Cafarnaum onde
Jesus de Nazaré falou aos seus seguidores, penso nos problemas longínquos do
Império Romano mas sobretudo na crise actual da condição humana. É uma crise
curiosa, pois embora as condições locais sejam distintas em cada ponto do mundo
onde ocorre, as respostas que a definem são semelhantes, marcadas pela zanga,
fúria e confronto violento, a par de apelos ao isolamento dos países e de uma
preferência por governação autocrática.
Mas a crise é sobretudo decepcionante,
pois não devia de todo estar a acontecer. Seria de esperar que pelo menos as
sociedades mais avançadas tivessem ficado imunizadas pelos horrores da Segunda
Guerra Mundial e pelas ameaças da Guerra Fria, e que tivessem encontrado
maneiras de ultrapassar, de modo gradual e pacífico, quaisquer dos problemas
que as culturas complexas necessariamente enfrentam. Pensando bem, deveríamos
ter sido menos complacentes.
Os tempos em que vivemos poderiam ser a
melhor das épocas para se estar vivo, porque estamos rodeados por descobertas
científicas espectaculares e por um brilho técnico que tornam a vida cada vez
mais confortável e conveniente; porque a quantidade de conhecimentos disponível
e a facilidade de acesso a esses conhecimentos nunca foram tão elevadas,
acontecendo o mesmo em relação à interligação humana a uma escala planetária,
como se prova pelas viagens, pela comunicação electrónica e pelos acordos
internacionais sobre todos os tipos de cooperação científica, artística e
comercial; porque a capacidade de diagnóstico, gestão e até cura de doenças
continua a aumentar e a longevidade continua a prolongar-se de tal forma que se
espera que os seres humanos nascidos após o ano 2000 possam viver, e bem,
segundo se espera, até uma média de 100 anos. Em breve seremos conduzidos por
veículos robotizados que nos poupam esforço e vidas, pois, a certa altura,
deveremos ter menos acidentes fatais.
No entanto, para considerar os nossos dias
como sendo os melhores de sempre seria preciso que estivéssemos muito
distraídos, já para não dizer indiferentes ao drama dos restantes seres humanos
que vivem na miséria. Embora a literacia científica e técnica nunca tenha
estado tão desenvolvida, o público dedica muito pouco tempo à leitura de
romances ou de poesia, que continuam a ser a forma mais garantida e
recompensadora de penetrar na comédia e no drama da existência, e de ter
oportunidade de reflectir sobre aquilo que somos ou que podemos vir a ser. Ao
que parece, não há tempo a perder com a questão pouco lucrativa de, pura e
simplesmente, “ser”. Parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia
modernas, e que mais lucram com elas, parece estar numa situação de bancarrota
“espiritual”, tanto no sentido secular como religioso do termo. A julgar pela
aceitação despreocupada das crises financeiras problemáticas – a bolha da
Internet de 2000, os abusos hipotecários de 2007 e o colapso bancário de 2008 –
parecem igualmente estar numa situação de bancarrota moral. Curiosamente, ou
talvez não tanto, o nível de felicidade nas sociedades que mais beneficiaram
com os espantosos progressos do nosso tempo mantém-se estável ou em declínio,
caso possamos confiar nas respectivas avaliações.
Ao longo das últimas quatro ou cinco
décadas, o grande público das sociedades mais avançadas aceitou, com pouca ou
nenhuma resistência, o tratamento cada vez mais deformado das notícias e das
questões públicas concebidas para se enquadrarem no modelo de entretenimento da
televisão e da rádio comerciais. As sociedades menos avançadas não têm demorado
a imitar essa atitude. A conversão de quase todos os “media” de interesse
público ao modelo lucrativo de negócios veio reduzir ainda mais a qualidade da
informação. Embora uma sociedade viável deva preocupar-se com a forma como o
Governo promove o bem-estar dos cidadãos, a noção de que se deve proceder a uma
pausa diária de alguns minutos e fazer um esforço para se ficar a par das
dificuldades e dos êxitos dos governos e dos cidadãos não só se tornou
antiquada, como quase desapareceu. Quanto à noção de que devemos aprender algo
sobre essas questões com seriedade e respeito, ela é, hoje em dia, um conceito
estranho. A rádio e a televisão transformam cada questão governativa numa
“história”, com a “forma” e o valor de entretenimento dessa história a contarem
mais do que o seu conteúdo factual. Quando, em 1985, Neil Postman escreveu o
seu livro Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show
Business, ele fez um diagnóstico correcto, mas nem sonhava que sofreríamos
tanto antes de morrer. O problema agravou-se com a redução de fundos para a
educação pública e com o declínio previsível da preparação de cidadãos, e, no
caso dos Estados Unidos, piorou com o repúdio, em 1987, da Fairness Doctrine,
que desde 1949 requeria um tratamento equilibrado dos comentários políticos. O
resultado, intensificado pelo declínio dos jornais impressos e pela ascensão e
domínio quase absoluto por parte da comunicação digital e da televisão, é a
carência profunda de conhecimentos pormenorizados e não-partidários dos
assuntos públicos, a par do abandono gradual das práticas da reflexão ponderada
e do discernimento sobre os factos. É preciso ter o cuidado de não exagerar a
nostalgia por um tempo que nunca existiu por completo. Nem todo o público
estaria seriamente informado, reflexivo e exigente. Nem todos os cidadãos
tinham reverência pela verdade e pela nobreza de espírito, já para não falar de
reverência pela vida. Não obstante, o presente colapso da consciência pública
séria é problemático. As sociedades humanas encontram-se previsivelmente
fragmentadas segundo uma variedade de medidas, como literacia, nível de habilitações,
comportamento cívico, aspirações espirituais, liberdade de expressão, acesso à
justiça, estatuto económico, saúde e segurança ambiental. Dadas as
circunstâncias, torna-se mais difícil do que jamais foi encorajar o público a
promover e a defender uma lista de valores, direitos e obrigações que não sejam
negociáveis.
Dado o espantoso progresso dos novos
media, o público tem a oportunidade de ficar a saber com mais pormenores do que
nunca os factos por detrás das economias, o estado dos governos locais e
globais, e o estado das sociedades em que vive, algo que, sem qualquer dúvida,
se trata de uma vantagem que confere poder real; para além disso, a Internet
fornece meios de deliberação fora das tradicionais instituições comerciais ou
governamentais, outra vantagem potencial. Por outro lado, em geral, o público
não dispõe nem de tempo nem de método para converter as quantidades imensas de
informação em conclusões razoáveis e de uso prático. Além disso, as empresas
que geram a distribuição e a agregação de informação ajudam o público de forma
dúbia: o fluxo de informação é orientado por algoritmos da empresa que, por sua
vez, influenciam a apresentação, de modo a adequar-se a uma variedade de
interesses financeiros, políticos e sociais, a par do gosto dos utilizadores,
para que estes possam continuar fechados no silo de opiniões que os entretêm.
Reconheça-se, a bem da verdade, que as
vozes sábias do passado – as vozes dos experientes e judiciosos editores de
jornais, de programas de televisão e de rádio – não eram completamente
imparciais, favorecendo visões específicas quanto ao funcionamento das
sociedades. Todavia, na maior parte dos casos, essas visões concretas
identificavam-se com perspectivas filosóficas ou sociopolíticas específicas, às
quais cada um podia resistir ou apoiar. Hoje em dia, o grande público não tem
essa oportunidade. Cada um de nós tem acesso directo ao mundo através do seu
dispositivo portátil, e é encorajado a maximizar a sua autonomia. Não há grande
incentivo para debater, e muito menos aceitar opiniões divergentes.
O novo mundo da comunicação é uma bênção
para os cidadãos treinados a pensar de forma crítica e informada sobre a
História. Mas qual a sorte dos cidadãos que foram seduzidos por um modelo de
vida como diversão e comércio? Em grande medida, foram formados por um mundo em
que a provocação emocional negativa é a regra e não a excepção, e onde as
melhores soluções para um problema passam, em primeiro lugar, por interesses
próprios e de curto prazo. Poderemos censurá-los?
A disponibilidade generalizada de comunicação
abundante e quase instantânea de informação pública e pessoal, um óbvio
benefício, reduz, paradoxalmente, o tempo necessário para a reflexão sobre essa
mesma informação. A gestão do fluxo de conhecimento disponível obriga,
frequentemente, a uma rápida classificação de factos como sendo bons ou maus,
agradáveis ou não. Isto contribui, porventura, para um aumento de opiniões
polarizadas quanto a acontecimentos sociais e políticos. A exaustão provocada
pelo excesso de factos recomenda uma fuga para as crenças e as opiniões
pré-definidas, em geral as do grupo a que o indivíduo pertence. Isto agrava-se
pelo facto de tendermos naturalmente a resistir à mudança de opinião, pese
embora a disponibilidade de provas em contrário, e por mais inteligentes e informados
que sejamos.
Trabalhos realizados pelo nosso instituto
[Instituto do Cérebro e da Criatividade na Universidade da Califórnia do Sul,
EUA] mostram que isso é verdade em relação a crenças políticas, mas imagino que
também se aplique a uma grande variedade de crenças, desde a religião e a
justiça à estética. O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está
associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a
emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à
activação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma
espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação
contraditória. Por todo o mundo os eleitores descontentes recusam-se a
comparecer nas urnas. Com tal clima, a disseminação de notícias falsas e de
pós-verdades fica facilitada. O mundo distópico que George Orwell em tempos
descreveu, tendo a União Soviética como modelo, corresponde agora a uma
situação sociopolítica diferente. A velocidade das comunicações e a resultante
aceleração do ritmo de vida são igualmente possíveis contribuidores para o
declínio da civilidade, identificável na impaciência do discurso público e na
crescente grosseria da vida urbana.
Uma questão separada, mas importante, que
continua a ser menosprezada é a natureza viciante dos media electrónicos, desde
as simples comunicações por email às redes sociais. O vício desvia tempo e
atenção da experiência imediata do ambiente que nos rodeia para uma experiência
mediada por uma grande variedade de dispositivos electrónicos. O vício aumenta
o desenquadramento entre o volume de informação e o tempo necessário para a processar. // Li aqui»»
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