
no Odemocrata
O especialista em guerra de libertação nacional,
Leopoldo Amado doutorado em História Contemporânea, disse na rubrica Grande
Entrevista do semanário “O Democrata” que “grandes comandantes do Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde – PAIGC – estavam com a PIDE”.
Contou ainda que o maior problema que o partido libertador enfrenta no momento
é o vazio da ideologia. Durante a entrevista o historiador explicou que não
havia como evitar a guerra da libertação nacional contra o colonialismo português,
não apenas porque o Governo de Salazar não aceitava as propostas dos
independentistas da Guiné e das outras colónias africanas, mas também porque os
pontos de vistas dos contendores eram inconciliáveis.
“Eu estou em condições de assegurar que de acordo
com a associação de factos e dados que eu tenho até no momento, tudo aponta no
sentido de ter sido o colonialismo português a assassinar Cabral, de ponto de
vista de autoria moral”, esclareceu o especialista da guerra de libertação e da
história contemporânea, em relação aos rumores sobre o verdadeiro mandante da
morte de Amílcar Cabral.
Democrata
(D):
A Guiné-Bissau, a semelhança de outros
países do nosso continente, conseguiu a sua independência através de uma luta
armada. Entretanto, existem algumas vozes que defendem até hoje que havia a
possibilidade de se conseguir a independência por via do diálogo. É verdade que
era possível alcançar a independência por via do diálogo, de acordo com as suas
investigações?
Leopoldo
Amado (LA): Eu tenho um texto escrito sobre isso
que foi muito divulgado, no qual falo da impossibilidade de se ter evitado a
guerra. Não havia como evitar essa guerra, portanto, não porque o governo de
Salazar não aceitava as propostas de independentistas da Guiné e das outras
colónias africanas, mas porque os pontos de vista dos contendores eram
inconciliáveis.
O que PAIGC reivindicava para o caso da Guiné era
inconciliável com que aquilo que os portugueses efetivamente postulavam. Os
portugueses postulavam que os africanos não estavam preparados para a
independência. Alegavam ainda que Portugal não podia desunir-se, no entanto era
um império colonial do Minho ao Timor, passando pelas colónias africanas e que
Portugal era um todo político.
Por isso o desmembramento era impensável, inclusivamente
havia teóricos portugueses que não conseguiram visualizar o desmembramento
deste império. Achavam que Portugal sem as suas colónias era um país amputado.
Tudo isso assenta numa ideologia da superioridade racial e não só, como também
na querença profunda da inferioridade do negro em relação ao branco, pois o
branco tinha a missão civilizadora em África, ou seja, a missão de trazer a
igreja cristã e de educar em termos religiosos.
O Amílcar Cabral por sua vez exigia a reposição da
história, porque ele percebeu claramente que a história africana ou então, a
história da Guiné tinha sido brutalmente cortada na sua evolução e, por isso,
exigia a reposição desta história que, de acordo com ele (Cabral), passa pelo
fim do colonialismo. A questão não se punha em termos da independência total ou
incondicional como em muitos países se discutiu. Na altura punha-se o problema
da aplicação da resolução nº 15/60 da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Essa
resolução dizia que os povos têm direito a autodeterminação, ou seja, os povos
têm direito de escolher os seus governos próprios ou de se dirigirem a si
próprios.
Na sequência disso, Cabral até criou outras
contribuições que o ordenamento jurídico internacional acabou por integrar, por
exemplo, a questão do estatuto dos combatentes da liberdade da pátria. Quem
eram esses indivíduos que combatiam o exército de uma potência colonial? Qual é
o estatuto deles no mundo? Amílcar Cabral resolveu isso simplesmente… Ele disse
“se as Nações Unidas dizem que são favoráveis a autodeterminação, portanto os
indivíduos que combatem são militantes das Nações Unidas”.
As Nações Unidas tomavam resoluções, mas não tinham
mecanismos de obrigar as potências coloniais a cumprirem. Cabral mais uma vez
resolveu o assunto de outra forma, criando a ideia de supremo recurso, ou seja,
o supremo recurso é quando um povo recorre a métodos violentos para fazer valer
os seus direitos e as determinações das Nações Unidas, que são coincidentes com
os seus interesses. Os seus interesses são a libertação do jugo colonial, a
independência e a construção da paz, do progresso e do homem novo.
As visões eram opostas ou inconciliáveis, portanto a
via armada era a única forma possível para obrigar o governo português a
sentar-se a mesa das negociações e o futuro mostrou isso. Foi a guerra da Guiné
que efetivamente obrigou não só a mudança do regime em Portugal, como também
criou as condições para a independência das outras colónias africanas, onde o
nível da guerra não tinha evoluído como no caso da Guiné.
D:
Então era impossível conseguir a independência por via do diálogo com o Governo
português?
LA:
Sim, era impossível, mas repara. Tentou-se esse diálogo na década 60. No início
de 1960, Amílcar Cabral e os seus companheiros do PAI (Partido Africano da
Independência) dirigiram uma carta aberta ao Governo Português. Na altura o
partido era designado do PAI, mas só em 1962 é que resolveram denominar o
partido de PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde).
No mês de Maio de 1960, voltaram a endereçar uma
outra carta com outro nome ao Governo Português, com o intuito de solicitarem a
realização de uma mesa redonda, a fim de negociar a questão da independência da
Guiné. Repara, na carta Amílcar pedia que se sentasse a mesa para discutir o
assunto que o opunha ao colonialismo português.
Daí veio a célebre resposta de Portugal, que dizia
nem mesas redondas, nem mesas quadradas e nem nada. Eles não esperavam que os
africanos pudessem ter a capacidade organizativa para lançar a guerra de
libertação nos moldes em que o PAIGC a fez. Digo-lhe que não havia a
possibilidade de conseguir a independência por via do diálogo, nem de uma ou
doutra forma.
A Guiné nunca representou muita coisa no contexto do
império colonial português, nem do ponto de vista económico e nem do ponto de
vista estratégico. Guiné foi importante para os portugueses numa outra altura,
mas no período em que se iniciou a luta colonial, a Guiné era um nada para
eles. A economia da Guiné foi sempre deficitária, apesar da existência das
Gouveia e CUF, foi sempre deficitária, aliás, dava mais prejuízos a metrópole
(Portugal) do que lucro.
D:
Qual era o grande interesse de Portugal que não queria abrir a mão da Guiné
para a sua independência?
LA:
Efeitos do domínio, porque se a Guiné caísse, é certo que cairiam todos os
outros. As joias da coroa de Portugal foram sempre Angola e Moçambique. Mesmo
estes países tiveram também historial enorme de défice. Houve inclusivamente
debates em Portugal em que os deputados portugueses na altura falavam na venda
das colónias. O problema não é que as colónias não fossem rentáveis mas, sabem
que para rentabilizar as colónias é preciso ter dinheiro bem como ter as
pessoas com capacidade enorme de pensar ou fazer.
Portugal foi uma potência colonial que não tinha
muitos meios para fazer uma colonialização efetiva e tirar o partido dessa
colonialização. Portugal tinha sim homens muito voluntariosos, portanto isso
permitiu-lhe andar pelo mundo para descobrir latitudes.
D:
Havia iniciativas de movimentos para a conquista da independência. Uns se
encontravam na Guiné-Conakri, como também em Dakar (Senegal), onde se
encontravam o MLG, o MING, a FLING, a UPLG, entre outros. Porque é que o PAIGC
conseguiu destacar-se no meio destes movimentos todos?
LA:
O MING não teve papel relevante nenhum, mas há quem pensa que Cabral teve a sua
mão naquela organização, porque esteve cá em 1952. Terá sido uma organização
criada, mas que não teve ações. Uma organização quando é criada e não tenha
tido nenhuma ação, apenas tem um registo, um nome e a partir daí nada mais.
Para responder concretamente a sua pergunta, repara esse desejo enorme da
independência era insuflado não só pelo ambiente geral que havia no mundo.
Era o despertar dos povos dominados no sentido da
sua independência. Em 1955 houve a Conferência de Bandung, então esse despertar
não era só africano e era também asiático. Havia nas Nações Unidas naquela
altura uma espécie de blocos afro-asiáticos que defendem essas posições contra
as posições de Ocidente, porque a maior parte das potências de Ocidente votavam
a favor de Portugal.
Havia todo um ambiente ou condições criadas depois
da segunda Guerra Mundial e essas condições permitiram que os africanos pela
primeira vez, sonhassem em autodirigir-se, ou seja, dirigir-se a si próprios.
Aqui na Guiné essa ressonância também chegou antes da vinda de Amílcar Cabral,
aliás, como se sabe ele nasceu aqui na Guiné e foi para Cabo Verde estudar aos
oito anos.
Depois de terminar os seus estudos voltou para Guiné
com um contrato de fazer um trabalho no âmbito agrícola, mas não foi por acaso
que ele aceitou voltar. Tinha todo um plano traçado. Para lá das emoções que
isso tudo provoca era preciso efetivamente organizar-se e unir-se em torno dos
eixos fundamentais.
D:
Foi isso que o PAIGC conseguiu fazer para se destacar no seio das outras
organizações?
LA:
O Cabral estudou outras experiências e isso ajudou-lhe muito. Havia um grupo
dos guineenses que estava na Guiné-Conakri que integrara um movimento global
que se chamava “Movimento de Libertação dos Territórios sob a Dominação Portuguesa”.
Quando Cabral chegou a Conakri convidou esses
guineenses que lá se encontravam a desenvolverem a ideia da Independência, e
que cada território ou colónia tinha que assumir a sua luta. Cabral tentou
imensas vezes congregar os movimentos guineenses para fazerem uma única frente,
portanto é evidente que o facto dele ter tido a formação superior na altura e
outra visão, deu-lhe mais vantagens. Cabral tinha uma visão muito clara bem
como sabia muito bem o que queria, mas também ele teve grandes problemas com
outros guineenses que lá estavam a organizar-se.
O certo é que os indivíduos que fazem parte dos
outros movimentos tinham os mesmos quilates. Vou dar um exemplo, Fernado Forte
que é cabo-verdiano era ao mesmo tempo do PAI e do MLG e o mesmo caso com Rafael
Barbosa, que era ao mesmo tempo do PAI e do MLG. Houve uma altura em que
passavam a falar do Movimento de Libertação. Eles aceitavam a ideia da
libertação, mas os guineenses, quando sabiam que o Cabral é que estava à frente
do movimento recuavam.
O PAIGC conseguiu destacar-se pela tenacidade e pelo
facto de ter acumulado um capital extraordinário que os outros não tinham, que
é a formação. Cabral era da organização de juventude comunista de Portugal,
portanto ele aprendeu muita coisa ali. Ele percebia perfeitamente quais eram as
questões candentes que se colocavam do ponto de vista internacional. Cabral
percebia também que as condições eram favoráveis a uma luta para a
independência. Será que os outros percebiam isso tudo?
D:
Nem mesmo a Frente da Libertação Nacional da Guiné (FLING) que se encontrava em
Dakar?
LA:
Não, a FLING só apareceu em 1962. A FLING é um manto de retalhos dos partidos
que nunca se entenderam lá internamente. Como se sabe havia um grupo
pertencente ao movimento que estava a ser dirigido por François Kankola, que
iniciou a luta na zona nordeste da Guiné-Bissau, concretamente na zona de São
Domingos, Varela e estendeu-se um bocadinho mais para o norte. Começou
efetivamente uma luta armada mesmo antes do PAIGC, mas isso tudo não lhe deu
vantagem, de maneira que era preciso fazer um trabalho de base.
Tinha havido em 1961 a grande repressão sobre os
angolanos que iniciavam a luta armada para a conquista da sua independência. Os
angolanos pressionaram os outros movimentos de libertação nacional para que
iniciassem a luta armada, a fim de poder dispersar homens e a pressão que havia
sobre eles.
Mesmo assim Cabral privilegiou a mobilização, porque
naquela altura o PAIGC não tinha nada. O Aristides Pereira chegou em 1961 a
Conakri e havia pouca gente no partido; portanto Cabral entendeu na altura que
era preciso fazer mais trabalho de mobilização. O objetivo de Cabral não era
fazer uma luta armada para derrotar o inimigo no teatro das operações.
A teoria geral da guerra subversiva diz que se utiliza
a luta armada para destruir as infraestruturas do inimigo, mas não para o
derrotar no teatro das operações e o Cabral entendendo isso tudo, foi fazer uma
intensa mobilização ao ponto de ter a população do seu lado, porque neste tipo
de guerra/guerrilha, quem ganha esse tipo de guerra é efetivamente quem tem a
população do seu lado.
D:
O PAIGC sob a liderança de Cabral conseguiu levar um povo analfabeto na sua
maioria para a luta armada contra uma força militar colonial. Será que é o
desejo da independência que motivou a população ou é o grau da estratégia
política de Amílcar Cabral?
LA:
Sem dúvida nenhuma, porque o Amílcar sabia com quem estava a falar, como também
conhecia os traços culturais das pessoas com quem estava a falar. Sabia
igualmente que essas pessoas eram capazes de mobilizar outras pessoas, como é
sabido ele não fazia as coisas ao acaso. Cabral conhecia as pessoas muito bem,
mesmo sendo lá nos fundos das tabancas, sabia com quem estava a lidar e chamava
pessoas pelos seus nomes próprios.
D:
Tendo em conta a progressão dos guerrilheiros do PAIGC na luta, o Governo
central de Lisboa decidiu enviar o General Spínola para a Guiné. Spínola dizia
que a sua vinda para Guiné não era ganhar a luta por via armada. O seu obejtivo
antes de tudo, era contornar o PAIGC através de ações sociais e culturais junto
das populações. Como investigador chegou a alguma conclusão sobre como é que o
PAIGC conseguiu ganhar a guerra psicológica contra o General Spínola?
LA:
Digo em primeiro lugar que o General Spínola não veio a Guiné para contornar
apenas o PAIGC, mas sim veio aqui para ganhar a guerra, aliás, no seu discurso
de tomada de posse, disse que a guerra não se ganha apenas com armas. Ou seja,
o General Spínola introduz um elemento extremamente importante na manobra
militar que é a ação psicológica.
Amílcar Cabral chamava isso de política do sorriso e
do sangue. Porque é que ele a chamava assim, porque de um lado estava ajudar as
pessoas na saúde e mais outras coisas, por outro lado intensificava as ações
militares contra os guerrilheiros. Inclusivamente com bombas violentas de todo
o tipo, então é por isso que Cabral chamava a política de Spínola “política do
sorriso e do sangue”, isto é alguém que ri consigo, mas que ao mesmo tempo lhe
mata.
O General António Spínola aproveitou a experiência
dos seus antecessores. Houve generais que estiveram aqui e que quase levaram o
exército português ao colapso militar na Guiné-Bissau. Os insucessos militares
registados aqui foram de tal ordem que tiveram de ser mandados embora. Eles
tinham um dispositivo táctico que fora muito questionado por Spínola, mas
quando chegou à Guiné mudou esse dispositivo na íntegra.
Abandonou vastos territórios da Guiné-Bissau e
concentrou-se onde eram necessárias as suas forças. Criou os chamados
ordenamentos populacionais, a fim de poder ter as populações nas suas mãos. E
Amílcar teve que fazer face a isso tudo, através da criação de respostas
convincentes.
D:
O que é que o General Spínola fez de concreto para mobilizar as populações?
LA:
General Spínola criou a política da “Guiné Mindjor”, bem como criou igualmente
programas de aliciamento dos antigos combatentes para entregarem as suas armas
em troca de um bom tratamento. Haviam fotografias por todo o lado a mostrar
tropas portuguesas a curar os doentes aqui na Guiné.
Isso tudo abalou de que maneira as estruturas do
PAIGC, portanto houve até comandantes que já estavam desanimados. Cabral tinha
que fazer face a isso tudo, pelo que do ponto de vista de propaganda
reestruturou os serviços de informação e propaganda. O partido apostou na
propaganda através da sua rádio que tinha em Conakri e que tinha uma enorme
potência, visto que era captada aqui na Guiné, Cabo Verde, Senegal e em todo o
lado.
Criou ainda órgãos de informação denominado de
“PAIGC Atualité”, onde eram passadas as informações do partido em francês para
ter mais divulgação. Criou o núcleo de apoio do partido em França, Holanda, nos
países nórdicos e até nos Estados Unidos de América. Na altura até o exército
português reconhecia que o PAIGC era um movimento que tinha um serviço de
informação e propaganda bem estruturado.
Reforçou ainda o trabalho de consciencialização
política, porque entendeu que era preciso dizer aos camponeses que as ações da
força colonial na altura não passavam de manobras para desestruturar o próprio
PAIGC. Cabral percebeu ainda na altura que grande parte da população se
deslocava para a zona dos portugueses, porque do lado do PAIGC havia pouca
comida.
Foram os suecos que socorreram o PAIGC e trouxeram
mercadorias de qualidades superiores àquilo que estava na zona dos
colonialistas. Militarmente o PAIGC tinha melhor armamento do que o do exército
português na altura. O PAIGC foi dos poucos movimentos que, associada à uma
tática de guerrilha, também tinha a uma guerra convencional.
O partido tinha grupos de artilharia, grupos móveis
e tinha até aqueles que se chamavam de bi-grupos que se juntavam e formavam um
corpo do exército. Spínola com toda essa força conseguiu levar a guerra a uma
situação estacionária, porque anteriormente quem tinha a vantagem era o PAIGC.
Desde o início da guerra sempre o PAIGC tinha a vantagem, mas com a chegada do
General Spínola conseguiu levar a guerra a uma situação estacionária, onde nem
ele nem o PAIGC tinha a vantagem um sobre outro.
Era preciso um elemento desequilibrador de tudo isso
no esforço que ambos faziam para desacreditar de um ou outro lado. A ajuda
sueca foi decisiva de ponto de vista económico. Do ponto de vista militar a
União Soviética passou a fornecer ao PAIGC materiais de guerra de que não dispunha.
Havia também que contar com a vinda de um grupo de cabo-verdianos oriundos de
Cuba, onde estiveram a preparar-se para iniciar uma luta armada em Cabo Verde.
Cabral como sabia que não havia condições para começar a guerra na ilha,
resolveu trazê-los para a Guiné. Isso foi uma contribuição muito grande em
termos militares mas, sobretudo com o aparecimento dos mísseis terra-ar para
fazer face a força aérea do exército português.
D:
Cabral formou-se em agronomia, mas tinha uma visão profunda na área militar,
social, política e económica. Como vê Amílcar? Um estratega militar ou grande
líder político?
LA:
Amílcar era um homem extremamente inteligente e não há dúvidas sobre isso. Eu
Percorri milhares de documentos escritos pelo próprio Amílcar Cabral e ao mesmo
tempo percorri milhares de documentos escritos por outras pessoas que
conviveram de perto com Cabral. Percorri também muitos documentos escritos por
estudiosos de Amílcar Cabral, portanto não há dúvidas de que Amílcar Cabral era
um homem sonhador.
Amílcar Cabral era um sonhador, porque a ideia da
República da Guiné-Bissau era uma Nação imaginada, portanto ela não existia. A
história deste território aqui tem uma historicidade anterior. A forma como os
fulas interagiram com os balantas e a guerra da libertação nacional põe isso
tudo sobre uma tábua rasa.
Na guerra da libertação Cabral disse algo sobre a
unidade e luta: “Vamos unir para lutar e vamos lutar para unir”. E Amílcar
Cabral dizia que os superiores interesses do nosso povo é que contavam. Mas
quais são os superiores interesses? São a paz, progresso e a prosperidade.
Então, em nome disso era preciso unir para lutar e lutar para unir. Toda e
qualquer pessoa que contrariar o princípio da unidade e da luta tinham
problemas com o PAIGC.
Foi na base disso tudo que se criou uma República. É
evidente que essa República tem alguns anos e esses anos são insuficientes para
insuflar nas cabeças das pessoas aquilo que nós chamamos da identidade
nacional. Cabral ao mesmo tempo em que lutava ensaiou o embrião de um Estado,
nas então zonas libertadas.
Tinham os serviços de administração civil,
tribunais, armazéns do povo, prisões e tudo isso era o embrião de um Estado.
Cabral é um caso único, um homem que lutava, mas que ensaiava em termos
pioneiros um Estado. Caso único outra vez na história dos movimentos de
libertação nacional: ainda sob a presença do exército e das autoridades
coloniais proclamou o Estado da Guiné-Bissau. Ele considerava que a luta fazia
a unidade e essa unidade resultou num Estado que se construiu ao longo da luta.
D:
Há quem diga que Cabral conseguiu formar homens para fazer uma guerra, mas não
conseguiu formar homens para governar o país depois da guerra. Concorda?
LA:
Cabral formou muita gente e toda essa gente que nós aqui chamamos hoje de veteranos
eram jovens. Todos eles têm uma formação política fora de série e foram
formados por Cabral, portanto para o contexto da época eles eram fundamentais
para a libertação. Muito deles sacrificaram a possibilidade de irem estudar,
porque eram necessários no processo da luta.
Quero esclarecer uma coisa aqui… O PAIGC nunca teve
mais de cinco mil homens em armas e nos picos da guerra o exército português
chegava aos 40 mil homens. Mas o partido que nunca chegou mais de cinco mil
homens criou uma estrutura de Estado, fez uma guerra exemplar e do ponto de
vista diplomático fez uma guerra extraordinária, dado que conseguiu convencer
até os aliados dos portugueses na altura a se colocarem do lado dele. Foi o
caso da Dinamarca que passou a apoiar o PAIGC e as Agências das Nações Unidas
já colaboravam com o PAIGC.
D:
Após a independência registaram-se perseguições e fuzilamentos de colaboradores
de portugueses, sobretudo comandos africanos, milícias, sipaios e até agentes
de administração civil colonial. Na sua opinião, a que se deve essa
intolerância?
LA:
Isso deve-se ao desenrolar da guerra. Nos últimos tempos da guerra a maior
dificuldade que os homens do PAIGC tiveram foi dos africanos que estiveram do
lado do exército português. Os comandos africanos eram muitos aguerridos e
tinham níveis de agressividade e do sucesso combativo muito grande, mas também
eles conseguiam contrariar muitas das vezes os planos militares do PAIGC.
D:
Muitos historiadores estimam que foram mais de dez mil pessoas que morreram
vítimas da perseguição da parte do partido libertador. No quadro das suas
investigações confirma esses dados?
LA:
Não estudei isso, mas apenas declarei isso com as devidas reservas e pode ser
encontrado na internet. Fala-se de onze mil os africanos que colaboraram de
diversas formas com os portugueses, desde os comandos africanos, sipaios,
milícias, agentes de administração. Não tenho a informação de alguém que tenha
compilado ou feito as contas, mas o que eu posso garantir é que efetivamente
morreu muita gente.
A fonte que eu cito é a uma fonte de pessoas
diretamente envolvidas. São ex-comandos africanos que estavam em Lisboa e que
na altura tentavam um trabalho de recolha das informações sobre colegas que
morreram. Na altura estimava-se em cerca de onze mil o número das pessoas que
morreram, de acordo com as listas que estavam a constituir, mas isso não é
fiável.
D:
Durante a luta defendeu-se o projeto da unidade da Guiné e Cabo Verde que
vigorou até aos primeiros anos da independência. Acha que o golpe de Estado de
1980 “assassinou” o sonho da unidade entre os dois países?
LA:
O
projeto de unidade da Guiné e Cabo Verde já vinha sendo assassinado mesmo
dentro do PAIGC. E há muitas dissidências dentro do próprio PAIGC. É claro que
a história oficial tende a ocultar essas dissidências. O Congresso de Cassacá
foi uma dissidência clara com a direção do PAIGC. Em 1966 o fuzilamento de
Honório Sanches Vaz que tinha um plano para matar Amílcar Cabral é outro
momento da dissidência.
A infiltração do PAIGC pela PIDE em minha opinião
deu-se entre 66/69. A PIDE explorou todas as contradições internas no seio do
PAIGC e uma das contradições internas que a PIDE mais explorou foi a questão da
unidade entre a Guiné e Cabo Verde. A nível dos guineenses mais esclarecidos
havia uma espécie de inconformismos que sentiam em relação a algumas coisas.
D:
Qual era o inconformismo dos guineenses?
LA:
Sentiam o inconformismo em relação à estrutura de extração cabo-verdiana que
dirigia a luta de libertação. Cabral nasceu aqui e vem dizer que é cabo-verdiano.
Já ouvi antigos dirigentes do PAIGC a dizer que Cabral tinha mania que era
guineense. Para o contexto da luta armada de libertação nacional e
independentemente das adversidades ou de quem estava em cima ou em baixo, digo
que a junção dos guineenses e cabo-verdianos resultou positivamente.
D:
Algumas vozes defendem que a dificuldade de coabitação entre a ala
cabo-verdiana e a ala guineense no seio do PAIGC terá facilitado o assassinato
de Amílcar Lopes Cabral. Concorda?
LA:
Sem dúvida. Cabral incendiou a floresta e tinha que morrer dentro dela. O PAIGC
era um partido com muitas contradições e a primeira delas era entre guineenses
e cabo-verdianos. Mas havia muitas outras contradições. Havia muitas
contradições e não era fácil gerir essas contradições, sobretudo fazer valer
aquilo que era o objetivo fundamental da luta. Cabral conseguiu tapar alguns
buracos, mas não conseguiu tapar todos.
D:
Algumas obras foram publicadas sobre o assassinato de Cabral em Canakri. Várias
pistas foram admitidas, umas apontam a polícia portuguesa com a cumplicidade de
elementos do PAIGC e a recente obra do investigador cabo-verdiano acusa o
Presidente Sékou Touré como tendo sido o mandante do assassinato de Amílcar
Cabral. Quer fazer algum comentário em relação à matéria, de acordo com os
estudos que realizou no terreno?
LA:
Conheço muito bem o investigador cabo-verdiano que faz essa afirmação. Ajudei
bastante na tese do mestrado dele, portanto tenho muita consideração por ele e
tomo-o como um bom rapaz. Mas discordo da sua posição e a história é
exactamente isso, portanto nós só podemos trazer a verdade ao de cima quando
discordamos uns dos outros. Para mim não restam dúvidas que Amílcar Cabral foi
vítima de variadíssimas contradições ou dissidências, mas não há dúvidas de que
em quase todas elas havia a mão do colonialismo português.
Cabral era uma ameaça direta aos propósitos
coloniais de Portugal. Eu acho que eles tiveram que o silenciar. Isso foi
demonstrado claramente na invasão a Conakri em 1971 em que eles queriam
liquidá-lo. Penso que há interesses convergentes de guineenses no momento, que
colocavam questões sobre o que seria deles…
Tinham informações de que Cabral negociava a
independência e escondia as informações aos guineenses. Havia uma ala guineense
que estava organizada e inclusive tinha uma ideia de denominar o PAIGC de outra
forma, isto é PAIG (Partido Africano para a Independência da Guiné).
Simplesmente tiraram a letra C de Cabo Verde.
O grupo era constituído por Momo Turé e outros,
estavam a organizar-se em nome de um tal PAIG. E toda gente sabe que havia
conspiração em Moscovo contra Cabral e ele sabia disso muito bem. A minha convicção
é que havia várias dissidências que convergiram no assassinato de Amílcar
Cabral e a divergência era entre os guineenses bem como entre guineenses e
cabo-verdianos, mas tendo todas elas o selo do colonialismo português.
D:
Isto quer dizer que o Presidente Sekou Toure não tem nada a ver com a morte de
Amílcar Cabral?
LA:
Há vários níveis de responsabilidade na morte de Cabral, porque como se sabe
Amílcar não era qualquer um. Era um homem que tinha conseguido tudo, mas acima
de tudo que se preparava para dar o golpe fatal ao colonialismo através da
proclamação unilateral da independência. É evidente que ele foi contactado pelo
General António Spínola através do Presidente Leopold Sedar Seghor do Senegal,
mas para negociar o processo da independência com o PAIGC.
Cabral sempre recusou e relembrava-lhes que em 1960
podiam ter negociado, mas os portugueses recusaram. Naquela altura já morrera
muita gente, pelo que exigia a independência total. Foi Cabral quem preparou
todos os dossiers da independência e os outros apenas aplicaram aquilo que
tinha sido desenhado por ele. Não é por acaso que após a proclamação unilateral
da independência da Guiné, registou-se um pouco por todo o mundo o reconhecimento
de Estado da Guiné-Bissau por mais de 80 países. Cabral tinha feito todo um
corredor diplomático.
Cabral sabia como ninguém combinar a componente
política da guerra, a componente militar e a componente diplomática. Havia
momentos em que utilizava apenas a componente diplomática e havia momentos em
que entendia que para usar a diplomacia tem que usar a componente militar. Ele
sabia usar muito bem as três componentes e isso lhe ajudou muito durante a luta
da libertação. Havia momentos em que fazia funcionar as componentes militar e
diplomática ao mesmo tempo, para que a componente política pudesse funcionar
corretamente. É bom realçar uma coisa: não havia dúvida que muitos guineenses
estavam com a PIDE.
D:
Os grandes comandantes da luta também estavam com a PIDE?
LA:
Eu vi documentos e garanto que alguns grandes comandantes estavam com a PIDE.
Forneciam todo o código de comunicações das rádios do PAIGC à PIDE. Durante
muito tempo a PIDE intercetava toda a comunicação do PAIGC.
O responsável máximo pela comunicação é que forneceu
isso a PIDE a partir de Conakri. Claro que toda gente já sabe que Momo Turé é
um dos atores materiais do assassinato de Cabral. Os autores materiais da morte
de Cabral foram indivíduos que estavam dentro da conspiração daquela ala a que
se deu o nome do PAIG. Em todas essas divergências e dissidências no seio do
partido, na minha opinião e segundo as investigações que fiz, havia mão do
colonialismo português na morte de Amílcar Cabral.
Não há nesse momento elementos que nos possam dizer
claramente que foi o colonialismo português. Estou em condições de assegurar
que de acordo com a associação de factos e dados que tenho até ao momento, tudo
aponta no sentido de ter sido o colonialismo português a assassinar Cabral, do
ponto de vista de autoria moral.
D:
O PAIGC foi um partido revolucionário ideologicamente virado para as massas
populares. Da independência a esta data, o senhor acha que o PAIGC conserva
ainda essa linha orientadora?
LA:
O PAIGC já devia ter abandonado a via revolucionária. Estava na via
revolucionária porque queria destruir uma ordem para construir a ordem nova. No
processo da construção da nova ordem teria de construir um novo homem.
Quando o PAIGC destruiu a antiga ordem e construiu a
nova ordem, então encontrou outros paradígmas e o problema já não se punha em
termos da libertação e muito menos em termos militares ou de “Matchundadi”. O
desafio era já outro, o de construir um país e o de perspetivar um país para o
desenvolvimento sustentável. O PAIGC é revolucionário em relação a si próprio,
portanto anda a querer mudar a sua própria ordem e em alguns casos mudar essa
ordem para não construir ordem nenhuma. Quando o que está em causa é fazer face
aos novos paradigmas que existem no mundo e as novas exigências de inserção da
economia da Guiné-Bissau no mundo, criar as condições para que a Guiné-Bissau
possa ombrear com os melhores exemplos de desenvolvimento em África, portanto
era isso que nós deviamos ter feito.
Tinhamos as condições para o fazer e não o fizemos,
portanto não foi porque faltou a vontade aos homens. É porque a força dessa
avalanche revolucionária ainda continua a condicionar negativamente os
propósitos do desenvolvimento. O PAIGC tem um capital para a herança, isto é o
capital da unidade e esse capital é algo que mantém ainda o PAIGC vivo, se não
deixaria de existir.
D:
Acha que o atual PAIGC está em condições de corresponder aos desafios actuais?
LA:
Apesar de ter falhado ao encontro da história, porque em 40 anos da
independência o PAIGC tinha a obrigação de fazer mais e melhor para este país,
o PAIGC ainda tem condições de influênciar positivamente rumo das coisas na
Guiné-Bissau. É evidente que o PAIGC atravessa uma crise enormíssima de
desorientação coletiva e isso é visível.
Não é só por causa das tendências que existem no
seio do partido, mas há uma espécie de desorientação geral que afeta tudo e
todos. Olhando para o panorama político guineense, acho que o PAIGC é a
formação política que ainda está em melhores condições de continuar a
protagonizar os aspetos, como por exemplo, a unidade entre os guineenses e o
reforço do sentido da Nação. Acho que o nosso sentido da Nação é muito frágil,
porque há pessoas que ainda são mais mandingas ou bijagós do que guineenses.
Isso deveria ser ao contrário, dado que primeiro deve-se sentir guineense para
depois falar do grupo étnico.
Se o PAIGC não corresponder nos próximos tempos às
expetativas criadas de desenvolvimento, de melhoria das condições de vida das
populações nos seus aspetos concretos, como a saúde, a educação entre outros… É
uma nova geração que tem outras expetativas e se o PAIGC não conseguir
corresponder a essas expetativas vai correr sérios riscos de se desagregar.
D:
Alguns analistas defendem que o PAIGC tornou-se um partido ao serviço de
empresários e de comerciantes. Será que esta afirmação tem a sustentabilidade?
LA:
A desorientação coletiva do PAIGC é clara. É urgente resolver isso. Encarro a
iniciativa do “Setembro Vitorioso” como uma grande iniciativa, porque ali se
lembrará de alguns combatentes que foram apanhados nas suas casas e levados até
a cidade de Bafatá. Alguém teve essa iniciativa dentro do PAIGC, portanto há
que reconstituir a trama do sentido da unidade e da solidariedade que se criou
e que manteve o partido por muito tempo.
O PAIGC não pode aparecer aos olhos da nova geração
como aparece às vezes, como uma agência de emprego. Ou como um instrumento que
cada comerciante utiliza como quer e se não quer descarta. É evidente que o
partido na situação em que está, a mercê de quem tem meios, espelha uma
situação de desorientação geral e esta fala muito alto. Não é só utilizar o
partido para fazer alguma coisa, mas sim utilizar o partido para restruturá-lo
mesmo. Em muitas ocasiões o partido foi utilizado, mas não foi reestruturado.
Não é proibido a nenhum comerciante ou outro estrato
qualquer da nossa sociedade que quer efetivamente utilizar o partido que o
faça. O que se pede em troca é que o partido seja acarinhado, reestruturado e,
sobretudo que seja reativado nas suas ações e nos seus propósitos. Um dos
grandes problemas que o PAIGC atravessa é o vazio da ideologia.
Quando há um vazio ideológico o partido está à mercê
de interesses vários. Não é só o partido PAIGC que está a mercê de vários
interesses. É o próprio Estado da Guiné-Bissau que está capturado ou refém
desses interesses. Precisamos de ter partidos nacionais fortes, portanto não
são partidos de extração de mandingas ou bijagós.
D:
Para Cabral, a independência era a soberania do povo no plano interno e
externo. Olhando para a atual realidade económica, social e política da
Guiné-Bissau, a independência seria ainda um mito ou uma realidade?
LA:
Em 40 anos de independência não estamos em condições de dizer que a
independência valeu a pena, no entanto é com muita mágoa que digo isso. Porque
o PAIGC fez indiscutivelmente uma das lutas de libertação mais brilhantes em
África e teve uma liderança inquestionavelmente reconhecida. Cabral foi uma
grande figura do século XX, portanto era um grande pensador. Os resultados de
40 anos da independência foram à instabilidade política, foram lutas
fratricidas, foi o retrocesso económico e foi o acicatar das divisões. Quer
dizer em vez de unirmo-nos mais, foi o inverso, dividimo-nos.
D:
O que acha que falhou de concreto e que criou essa desunião ou desvio da linha
orientadora de Cabral?
LA:
As contradições que existiam na luta que não desapareceram somaram-se a outras
contradições que foram forjadas já aqui na cidade, e que efetivamente não
criaram um clima de paz, ou seja, um ambiente propício para que as pessoas
pudessem pensar o país. A instabilidade política fez com que nenhum Governo
depois da democracia tivesse completado o seu mandato.
Como é que se pode desenvolver alguma coisa nesse
contexto? É impossível. Cinco anos depois da democracia houve golpe de Estado
contra um Presidente entusiasmado que tinha projetos. Depois tivemos um período
longo do consulado de Nino Vieira, em que efetivamente entraram outros
ingredientes. Houve deterioração a nível ideológico e reforçou-se a questão da
corrupção.
D:
Existe um debate patente a volta da instabilidade na Guiné-Bissau, uns atribuem
a culpa aos políticos e aos militares, outros apontam o sistema político. Qual
é a sua opinião?
LA:
É tudo isso em partes ou cada um com a sua parte. Estamos numa situação onde
não existe o Estado ou que está completamente decapitado. Analisando bem os 40
anos da independência, acho que temos que interiorizar a ideia de que temos que
recomeçar tudo de novo em moldes diferentes, tendo em conta as visões das novas
gerações. Apesar das eleições e do ambiente de paz que se vive nesse momento.
Apesar de ser uma paz frágil, ela é precisa.
É preciso que os nossos governantes ponham nas suas
agendas a questão da paz, da reconciliação e, sobretudo a questão do diálogo.
Temos que dialogar permanentemente.
D:
Muitos intelectuais guineenses preferem ficar fora da política e a criticar de
longe. Qual é a responsabilidade da elite intelectual guineense na atual situação
da degradação do país?
LA:
Se temos uma administração que não funciona, não tem boas universidades como
também não temos bons serviços, isso significa que não temos nada para atrair
os intelectuais de ponta para ficar no país e no meu ver a situação geral do
país não permite que o intelectual produza.
D:
No seu caso foi isso que levou o senhor a ficar lá fora?
LA:
Fiz muitos anos fora do país por causa da formação e da instabilidade política.
Mas a possibilidade de ascender ao patamar aqui na Guiné-Bissau, nunca
ascenderia. Eu não vejo que os intelectuais tenham grande responsabilidade
nisso. A única responsabilidade que os intelectuais têm nesse caso é moral pelo
facto de se alienarem. Quando eles não estão e os seus espaços preenchidos por
gente que efetivamente não está preparada para isso.
D:
O Senhor é Professor Doutor muito conhecido fora do país. Não acha que tem
menos fama cá dentro que lá fora?
LA:
É verdade, mas digo que não suporto mais a dor de fazer coisas bonitas lá fora.
Eu acho que aqui nós podemos fazer também muitas coisas boas. Vamos ver o que
se consegue fazer por aqui, mas apesar do ambiente não ser favorável. Vou
insistir para que os meus colegas que estão lá fora possam voltar, mas é bom
dizer que voltar não é fácil. Não é porque a pessoa não apanha o avião, mas o
problema é que gente criou a estrutura lá. Tenho dever de fazer alguma coisa e
acho que vou tentar fazer alguma coisa.
D:
40 anos depois da independência, a Guiné-Bissau não dispõe de uma Universidade
Pública reconhecida. Como explica esta situação?
LA:
Explico dizendo que essa situação é inexplicável. No século presente, uma
Universidade Pública ou não, não importa. Os conjuntos das universidades são
tão importantes como, por exemplo, a agricultura. Está provado a nível mundial
neste momento, que o maior factor do crescimento são as universidades. A
produção do conhecimento através do processo da extensão.
Temos condições para fazer uma boa Universidade,
portanto é urgente que os governantes decidam se querem uma universidade de
qualidade ou não. Tenho uma experiência universitária em Cabo Verde; estive no
embrião das pessoas que fizeram o esforço no sentido da instalação de
Universidade em Cabo Verde. Aquela Universidade está a devolver hoje
conhecimentos produzidos à população para que possa efetivamente apreciá-la.
Nós aqui devemos começar convictamente a fazer uma Universidade de qualidade e
não de pôr lá os licenciados para ensinar licenciados. A Universidade de Cabo
Verde já conta com uma taxa muito boa de professores doutores que estão lá a
ensinar, aliás, as universidades também são avaliadas pela percentagem dos
doutores que têm lá dentro.
D:
Qual é o seu sonho para a Guiné-Bissau?
LA:
Em primeiro lugar eu confio de forma cega que há todas as condições neste
momento para promovermos o desenvolvimento. Apesar de ter a consciência que não
basta essa convicção, mas também não basta que existam essas condições para que
possamos desenvolver o país.
Acredito que as expetativas da população guineense,
após um período turbulento de instabilidade são no sentido de subirmos de
patamar. Não acredito que possamos voltar para atrás do ponto de vista das
expetativas e dos anseios do povo. Acredito que podemos aliar as gerações da
independência e a geração dos mais novos para podermos construir uma plataforma
que permita o país ter as condições de bases para um arranque.
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.