1. Passado o Advento e as Festas
Natalícias, estamos agora no umbral do chamado «Tempo Comum» do Ano Litúrgico
que, ao contrário do que se possa pensar, não é um «Tempo secundário», mas
fundamental na vida celebrativa da Igreja Una e Santa. Na verdade, ao longo
deste «Tempo Comum», Domingo após Domingo, a Igreja Una e Santa, Baptizada e
Confirmada, Esposa Amada de Cristo, é chamada a contemplar de perto, episódio
após episódio, toda a vida histórica do seu Senhor, desde o Baptismo no Jordão
até à Cruz e à Glória da Ressurreição.
2. Esta apresentação só é possível
porque, em cada um dos Anos Litúrgicos, é proclamado, Domingo após Domingo,
praticamente em lição contínua, um Evangelho inteiro. Neste Ano B, é-nos dada a
graça de ouvir o Evangelho segundo Marcos, por todos considerado o mais antigo
dos Evangelhos, escrito, com certeza, durante a guerra judaica (66-70), mas
antes da destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70. Em termos formais, é um
Evangelho em que se sucedem os episódios, como num filme, sendo diminuta a
parte discursiva. O leitor ou ouvinte vê passar diante de si uma série de
episódios em rede, sendo constantemente convidado a implicar-se no que vê,
perguntando, interpretando, fazendo seu o programa das personagens ou dele se
distanciando, ou simplesmente manifestando o seu espanto e encanto.
3. O Primeiro Domingo do «Tempo Comum»
coloca então diante de nós o episódio do Baptismo de Jesus no Jordão, que
acontece logo a abrir o Evangelho segundo Marcos 1,7-11. O texto apresenta-se
em duas vagas: Marcos 1,7-8, apontando para João Baptista, e Marcos 1,9-11,
apontando para Jesus.
4. Deixamos aqui algumas anotações para
facilitar a compreensão da figura de João Baptista, apresentada na primeira
vaga do texto: 1) João Baptista surge em cena, em pleno deserto, sem qualquer
apresentação prévia, sem pai nem mãe, como se tivesse chovido do céu (Marcos
1,4); 2) atravessa-o uma dupla tarefa: anunciar Aquele-que-Vem (érchetai), «O
mais-forte-do-que eu» (ho ischyróterós mou) (Marcos 1,7), e, porque se trata de
Alguém muito importante, advertir o povo de Israel que não basta ficar à espera
dele, mas que é necessário preparar-se para a sua chegada (Marcos 1,2-5.7-8);
3) esta preparação requer quatro coisas: conversão, confissão dos pecados,
obter o baptismo e a remissão dos pecados (Marcos 1,4-5); 4) a missão de João
Baptista reveste-se de algumas particularidades: toda a região da Judeia e
todos os habitantes de Jerusalém saíam (ezeporeúeto: imperf. de ekporeúomai) ao
encontro de João Baptista (Marcos 1,5); 5) curiosamente não é João que vai ao
encontro das pessoas, como tinham feito os profetas antes dele, e como fará
também Jesus, que sai e percorre as cidades e aldeias ao encontro das pessoas;
é este, de resto, o estilo dos Evangelizadores: ir ao encontro das pessoas, e
não ficar à espera delas; 6) João parece um ponto fixo no deserto: é lá que
vive, é lá que prega, e as pessoas vão lá escutá-lo; 7) é descrita a forma como
anda vestido e o que come (Marcos 1,6), quer para mostrar a sua austeridade,
quer para o vincular à figura de Elias (2 Reis 1,8); 8) contra o ritual
habitual, não são as pessoas que tomam o banho lustral de purificação, mas é
João que as baptiza na água do Jordão; 9) Este gesto é tão insólito e
característico de João, que lhe vale o título de Baptista, não só no NT, mas
também em Flávio Josefo.
5. É dito ainda que João proclamava ou
anunciava (ekêryssen: imperf. de kêrýssô) (Marcos 1,7). O verbo está no
imperfeito, o que implica uma proclamação repetida e prolongada, mas o narrador
não se alonga sobre o conteúdo da referida pregação. Também se diz, de forma
quase telegráfica, que João baptiza com água, e Aquele-que-Vem baptizará com o
Espírito Santo (Marcos 1,8), omitindo-se a menção do fogo e outros elementos de
julgamento presentes em Mateus e Lucas. Marcos pretende apenas mostrar os dois
baptismos como preparação e cumprimento.
6. E a anotação da incompetência
(ikanós) de João para desatar a correia das sandálias d’Aquele-que-Vem (Marcos
1,7), o que significa? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte
de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade
está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se,
desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no NT:
Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos 13,25. Num célebre artigo,
intitulado «As sandálias do Messias noivo», Luís Alonso Schoekel levou este
dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. De acordo com
o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar
posse de»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. Em Deuteronómio 25,5-9, o
não-cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a sandália ao
cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio
matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um
caso jurídico concreto, em que o que tem o direito de resgatar o património e
de desposar Rute, prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em
reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa tira a
sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o
património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Marcos 1,7 e nos
demais dizeres do NT que anotámos significa também que é Jesus o noivo, a quem
assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou
competência.
7. A segunda vaga do relato (Marcos
1,9-11) assinala o ponto alto do texto. João tinha anunciado a Vinda de Alguém
incomparavelmente superior a ele. As expectativas estão no auge. Quando virá e
de onde virá? Primeira surpresa: eis que vem Jesus, diz o narrador, de Nazaré
da Galileia, terra desconhecida do interior da província e do mundo rural,
nunca referida no AT. Natanael tem razão quando pergunta: «De Nazaré poderá vir
alguma coisa boa?» (João 1,46). Vem do povo, e vem com o povo, no meio do povo,
solidário com o povo. Na verdade, nova surpresa, não começa logo a baptizar,
mas é baptizado por João no rio Jordão (Marcos 1,9). Com o povo, no meio do
povo, não ao lado do povo. Jesus vem, portanto, no meio do povo pecador que se
submete a um baptismo de conversão para a remissão dos pecados. Entenda-se bem
que Jesus se submete ao mesmo baptismo a que o povo se submete, não porém para
a remissão dos próprios pecados, mas os dos outros. Grande gesto de
solidariedade connosco, prolepse já da sua vida inteira e do baptismo de sangue
da Cruz (Marcos 10,38).
8. Se este Jesus está no meio de nós,
completamente solidário connosco, o texto mostra-o também completamente unido a
Deus, a quem tem livre acesso. É para significar esta sua perfeita união com
Deus, que os céus se abrem, cumprindo Isaías 63,19, e o Espírito desce, não
«sobre ele», mas «para dentro dele» (eis autón) (Marcos 1,10), para permanecer
nele de modo íntimo e estável. O Espírito não transforma Jesus, mas torna
transparente a sua identidade. Esta nota da sua união com Deus sai logo
reforçada pela voz que vem dos céus, portanto, autorizada e revelatória: «Tu és
(Sý eî) o Filho Meu (ho hyiós mou), o Amado (ho agapêtós), em Ti (en soí) o meu
Enlevo (eudokéô) (Marcos 1,11), deixando ver em filigrana a figura do Rei
messiânico do Salmo 2,7 e do Servo de YHWH de Isaías 42,1. Mas é sobre Jesus
que recai toda a atenção, pois desde que entra em cena, é ele o sujeito ou o
destinatário de todas as ações: «vem de Nazaré», «é baptizado por João», «sai
da água», «vê os céus abrirem-se e o Espírito descer», «a voz que vem dos céus
é dirigida a Ele e fala para Ele». Jesus, por seu lado, permanece em completo
silêncio.
9. Diante dos olhos atónitos de João, e
também dos nossos, fica, portanto, Jesus que, connosco e no meio de nós, como
um de nós, desce ao rio Jordão para ser connosco baptizado. Extraordinária a
epígrafe que Pedro, na lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos, põe sobre
a vida de Jesus: «Passou fazendo o bem e curando todos» (Atos 10,38). Para nos
curar, é preciso passar pelo meio de nós. O Jordão é o rio de Cristo e dos
cristãos. Rasga, de alto-a-baixo, a terra de Israel, mas atravessa também as
páginas dos dois Testamentos! Desce do sopé do Hermon e vai desaguar no Mar
Morto, fazendo um percurso sinuoso de mais de 300 km (104 km em linha reta), e
o seu nome ouve-se por 179 vezes nas páginas do Antigo Testamento e 15 vezes no
Novo Testamento. As suas águas curam (2 Reis 5,14: Naamã) e dão acesso à vida
nova: é atravessando-o que o Povo entra na Terra Prometida (Josué 3,14-4,24). É
ainda belo ver que, depois de um percurso de mais de 300 km, o Jordão entra no
Mar Morto, onde, através de uma intensa evaporação, parece subir ao céu,
lembrando Elias que sobe ao céu desde o leito do Jordão (2 Reis 2,8-11). É
lembrando estes cenários, sobretudo o do Batismo que também cura e dá acesso à
vida nova, que muitas Igrejas Orientais chamam «Jordão» ao canal que conduz a
água para a fonte baptismal, que todos os anos é benzida precisamente neste Dia
da Festa do Baptismo do Senhor.
10 Ilustra bem o episódio do Baptismo de
Jesus no Jordão o chamado «Primeiro Canto do Servo do Senhor» (Isaías 42,1-7),
hoje também lido, que põe em cena Deus e o seu Servo. Deus chama este Servo
«meu Servo», diz que o segura e sustenta e que lhe dá o seu Espírito, e
confia-lhe uma missão em ordem à verdade e à justiça, à mansidão e ao ensino, à
libertação e à iluminação, entenda-se, à vida em plenitude, de todas as nações.
Verdadeiramente, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, leva pela mão e
modela. Linguagem de criação, confidência e providência.
11. Há ainda a registrar uma expressão
forte para dizer a missão de mansidão confiada por Deus a este seu Servo: «Não
fará ouvir desde fora a sua voz» (Isaías 42,2). Ora, se não faz ouvir a sua voz
desde fora, então é porque a faz ouvir desde dentro. O grande pensador do século
XX, de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas,
este texto em sentido messiânico, dizendo que «o Messias é o único Rei que não
reina desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder,
dinheiro, impostos, armas ou decretos. Se não reina desde fora, reina desde
dentro, aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as
pessoas. Está bom de ver que Jesus vai assumir a identidade deste Servo e vai
cumprir por inteiro a sua missão.
12. Para não esquecer: esta bela missão
de Jesus, Batizado com o Espírito no Jordão e declarado o Filho Amado, deve ser
a nossa bela missão de Baptizados com o Espírito Santo e filhos amados de Deus.
É ainda como filhos que devemos hoje entoar também as notas deste Gloria in
excelsis Deo do Antigo Testamento, que é o belíssimo Salmo 29. A voz (qôl) que
por sete vezes se ouve no Salmo bem pode ser a Voz do Pai que se dirige ao
Filho no Batismo do Jordão e continua a ressoar na pregação Apostólica como se
do setenário dos dons do Espírito Santo ou dos Sacramentos se tratasse.
Escreveu São Gregório Magno: «A voz de Deus troa admiravelmente porque, como
força escondida, penetra nos nossos corações».
António Couto
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