Volvido um ano após a eleição de três
dos principais órgãos da soberania nacional (Presidência da República, Governo
e Assembleia Nacional Popular), instituições representadas ao mais elevado
nível pelo José Mário Vaz, Domingos Simões Pereira e Cipriano Cassamá,
respectivamente, assiste-se um insofismável jogo político dessas três
personalidades políticas, tornando-se principais jogadores políticos no país. O
transcurso desse jogo (disputa) não se restringe ao âmbito doméstico, atinge
também a esfera externa, através de tentativas de construção de forte imagem
política.
A constituição da República outorga – no
artigo 970 do ponto 2 – o Primeiro-Ministro a dirigir e coordenar as ações do
Governo, e o ponto 3 do mesmo artigo o orienta a informar o Presidente da
República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e
externa do País. Ademais, a constituição recomenda o Primeiro-Ministro a
chefiar as negociações no plano externo e a fazer acordos internacionais,
contudo, concomitantemente, a carta magna assegura o Presidente a representar o
país no plano internacional. Parece inequívoca a dificuldade em encontrar
fronteira exata entre as atribuições do Presidente da República e do chefe do
Governo, sobretudo na matéria de política externa. Tal dificuldade se acentua
quando há disputa política entre essas duas figuras, como na atual conjuntura,
na qual ambas buscam acumular maior capital político possível, tanto dentro das
estruturas do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC), quanto no plano nacional e internacional.
Tradicionalmente, as rivalidades e
disputas políticas interinstitucionais ou, melhor, entre os governistas, se
deram sempre entre o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, porém,
parece que ocorre algo inédito no atual tabuleiro político guineense: o
surgimento de um terceiro ator concorrente – Presidente da Assembleia Nacional
Popular (ANP). Os esforços do Presidente da ANP, cujas ações políticas,
caracterizadas por uma agenda política interna e externa própria (permeada por
protagonismo personalista), podem erigir um ator político vigoroso de um
potencial alcance político enorme. As suas recentes excursões políticas às
regiões do país, caracterizadas por comícios populares, cujo teor teria sido a recolha
de necessidades e problemas sociais de populações locais, associadas às viagens
externas: Cuba, Mauritânia, Angola, por exemplo, podem significar busca de
acumulação do capital político desse ator.
Ademais, sob sua proposta, foi aprovado
no legislativo um projeto de edificação – em frente ao parlamento guineense –
de um monumento em homenagem ao então Presidente da República, João Bernardo
Vieira. O Presidente do parlamento teria conseguido garantias junto das
autoridades cubanas para que a referida estátua seja erigida. Independentemente
de justificativas do Cassamá (por exemplo, de que Vieira, tendo sido primeiro
Presidente da ANP, é digno de um monumento em sua memória), a sua proposta não
deve ser concebida como totalmente desprovida de espírito político populista.
Ainda no que concerne à sua “agenda de política externa”, ao visitar Angola
(país que busca estabelecer influência na Guiné-Bissau) há poucos dias, Cassamá
pediu desculpas às autoridades angolanas, “em nome do Estado guineense”, pela fracassada
cooperação técnico-militar em 2012, a qual culminou com o último golpe de
Estado.
Essa atitude seria uma espontânea
lisonja ou uma premeditada tentativa de seduzir a elite política angolana no
sentido desta ver nele figura política capaz de representar os interesses desse
país na Guiné-Bissau, e em contrapartida contar com o apoio externo de Angola
em eventuais projetos políticos pessoais mais ambiciosos (futura corrida
eleitoral!)? A declaração do Presidente da ANP é susceptível a leituras ambíguas,
e a despeito de constituir um comportamento polêmico, no meu ponto de vista,
está longe de ser um discurso ingênuo.
Por outro lado, o Primeiro-Ministro –
figura prestigiosa no âmbito da Comunidade dos Países da Língua Oficial
Portuguesa (CPLP), pelo seu passado recente como secretário executivo dessa
organização – busca ampliar sua popularidade através de reuniões regionais com
as bases políticas do PAIGC, não se limitando apenas a cultivar apoios entre a
elite política do partido independentista. Em um ano de governação, Simões
Pereira conseguiu atrair considerável legitimidade popular, não só por conta de
razoável governação que o seu executivo tem feito, mas devido à sua capacidade
de aliciamento popular e cultivação de carisma – elemento importante de
legitimação política, sobretudo nos países de periferia. A mobilização nacional
em nome de “patriotismo” que se fez em torno da reunião com os doadores
internacionais, no passado mês de abril, em Bruxelas, é um exemplo. Também, as
frequentes marchas esportivas pela capital Bissau – as quais têm registrado a
presença assídua de Simões Pereira – podem ser incluídas, mesmo que
discutivelmente, nessa estratégia. Isso implica que estamos diante de um
governo populista? A reflexão sobre esta questão fica para outra oportunidade.
Por sua vez, o Presidente da República
procura fortalecer sua figura junto das estruturas superiores do PAIGC e
empenha-se a desenvolver uma política externa presidencial que projeta sua
imagem, sobretudo no âmbito regional. É o caso da mobilização que a presidência
da República fez em torno da recente visita (caracterizada por elevado
entusiasmo popular) do monarca marroquino ao país – a qual rendeu assinatura de
vários acordos bilaterais de cooperação – tendo gerado não pouco capital
político ao Presidente Vaz, tanto no plano doméstico quanto regional.
Recentemente, o Presidente da
Guiné-Bissau revelou-se desfavorável ao atual sistema político guineense
(semipresidencialismo), e, portanto, favorável ao presidencialismo, o qual,
segundo ele, seria o sistema político ideal para a consecução plena e efetiva
da estabilidade e paz na Guiné-Bissau. O elemento mais curioso é o fato do
Presidente Mário Vaz ter proferido essa declaração no plano externo, sim, no
plano externo – aquando de sua participação na 47a cimeira dos chefes de
Estados da Comunidade Econômica do Estados da África Ocidental (CEDEAO), em
Acra, Gana. Essa defesa, feita em um fórum externo, indica que o primeiro
magistrado da nação admite a improbabilidade (ausência de condições e vontade
política a curto e/ou médio prazo) de construção de consensos internos que
conduzem à alteração do sistema político; segundo, que ele talvez espera dos
países da CEDEAO (sobretudo os que adotam o presidencialismo) algum tipo de
indução política que venha a influenciar a alteração do sistema político da
Guiné-Bissau. Seja como for, a manifestação do Mário Vaz exacerba as já
existentes rivalidades políticas com o Primeiro-Ministro.
Acho que os esforços de projeção
política dessas três personalidades políticas, membros pertencentes à elite
política do PAIGC, partido governista, decorrem, entre outras coisas,
fundamentalmente do fato do PAIGC carecer de uma personalidade quase que
politicamente consensual. Após era do Nino Vieira, e de alguma medida, do Malam
Bacai Sanhá e do próprio Carlos Gomes Júnior (este último menos consensual,
porém conseguiu construir algum consenso político em torno de sua figura no
PAIGC, e alega-se que sua proeminência política teria sido resultado de sua
conduta política arbitrária e violenta), gerou-se um vácuo personalista. Embora
o atual Primeiro-Ministro tenha sido eleito presidente do PAIGC no último
congresso, me parece que não conseguiu ainda se transformar em uma figura
política consensual que o PAIGC está acostumado, e isso é perceptível aos seus
adversários/concorrentes. E, se tratando de um partido no qual o personalismo
sempre prevaleceu sobre a institucionalidade, torna-se necessário fortalecer
muito a sua imagem no partido.
Penso que o referido vácuo personalista
– fator de considerável fragmentação no seio dos independentistas – aliado às
rivalidades entre os atuais Primeiro-Ministro e Presidente da República, foram
(tendem a ser) vistos pelo Presidente da ANP como uma enorme oportunidade para
também tentar se projetar politicamente. Todo esse cenário deixará nebulosa a
real relação de poder no PAIGC, pelo menos em médio e/ou longo prazo, e isso
terá (tende a ter) consequências políticas para o país.
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