Na verdade, creio não ser possível
abordar o legado político do PAIGC, pelo menos no que concerne à questão da
unidade, organização e coesão interna, sem fazer referência à estratégia
desenhada e ação concertada do seu fundador e militante número Um, Amílcar
Lopes Cabral. Aliás, seria até uma quimera e afronta não exaltar este fervor no
espírito dos Combatentes da Liberdade da Pátria.
Dizia-me, sabiamente, um amigo, talvez
seria interessante explorar a questão da (des)unidade do PAIGC associado a
outros problemas intrínsecos, tais como a falta de lealdade política, a ética
no exercício das funções político-partidárias, a compra de consciência; enfim,
uma panóplia de problemas que constituem o nervo central da crise que assola o
PAIGC e que, no fundo, põe em causa o próprio legado. Quanto a isso, julgo que
o tema daria um excelente trabalho de pesquisa e dissertação, mas fica para um
próximo ensaio e para quem entender aprofundar as razões do desaire que tem
caraterizado o PAIGC pós a independência.
Retomando o tema central, Amílcar
Cabral, quanto à questão da unidade e luta, entregou-se à conceção de uma
ideologia que suportasse e balizasse a ação do PAIGC na organização e direção
da luta de libertação nacional para a afirmação, exaltação e valorização da
cultura dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Do ponto de vista estratégico,
visava a luta que o destino desses territórios, sob o jugo colonial, viesse a
ser entregue aos respetivos povos e que neles, livremente, construíssem o seu
progresso e bem-estar. Esta foi a primeira grande vitória do partido, um legado
(esperava-se) para a vida.
Se dúvidas houvesse ficaram dissipadas e
esclarecidas, pois o valor da Unidade, como um dos primeiros princípios do
partido, era intrínseco ao homem e à sua visão enquanto líder, tal como ficou
patente nas opções metodológicas que definiu para o partido, nomeadamente:
contribuir para a efetiva recuperação e consolidação da cultura, visando o
fortalecimento da Unidade no seio do PAIGC e da sociedade; fomentar a reflexão
e o debate no seio das massas e das bases do partido. Daí o entendimento de
Amílcar Cabral que o sentido de Unidade, que deve constar nos princípios do
partido, é o seguinte: “quaisquer que sejam as diferenças que existem, é
preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objetivo”.
Em boa verdade, o sucesso do PAIGC na
condução da luta dos povos da Guiné e Cabo verde é superior a demonstração e
confirmação da eficácia e inalterável pertinência do princípio de Unidade. Quem
conhece o PAIGC sabe que foi sempre um partido com muitas contradições
internas. Mas, soube sempre resolver essas contradições, pelo menos
momentaneamente. É, precisamente, sobre a questão da unidade, organização
interna e debate de ideias que importa o partido, neste preciso momento,
reorientar a sua estratégia, tendo em conta a posição que assume no quadro
político guineense, porquanto se entender que a manutenção desse espírito de
abertura pode representar um passo gigantesco para a reconciliação e
pacificação do mesmo.
Tendo como suporte básico a Unidade no
quadro de formação da identidade ideológica e consequente condução da luta de
libertação nacional, Amílcar Cabral delineou os seguintes programas de ação:
Programa Maior, que passava pelo desenvolvimento socioeconómico do país, e o
Programa Menor que tinha por objetivo a libertação do país do jugo colonial e
de quaisquer outras formas de opressão, dominação ou exploração. Os dois
programas estavam extraordinariamente bem interligados, pois a organização das
zonas libertadas era a condição necessária para garantir o sucesso da luta
armada, razão pela qual Cabral defendia que as características fundamentais
para a libertação passariam, inevitavelmente, pela prática da democracia, da
crítica e autocrítica; pela responsabilidade crescente das populações na
administração das suas próprias vidas; criação de escolas e de serviços de
saúde; formação de quadros originários das classes camponesa e trabalhadora.
Ora, na situação em que hoje se encontra
a Guiné-Bissau, e não podendo colocar de lado o papel do partido e as
consequências positivas e negativas da sua participação em todo o processo de
desenvolvimento e democratização do país, torna necessário e imprescindível
projetar alguns dados para, de uma forma descomprometida, proceder à comparação
entre o período que consubstanciou a luta armada com o atual contexto da nação.
Efetivamente, alguns dirão que não é possível fazer essa comparação e/ou
extrapolação, mas, ainda assim, acho que é importante um breve ensaio para
situarmos alguns dados que, no futuro, sirvam de pista para uma análise mais
aprofundada.
Segundo o relatório “A Educação na
Guiné-Bissau” de 1977, em 10 anos o PAIGC formou mais quadros que o
colonialismo em 5 séculos. De facto, até 1961 apenas foram formados 14
guineenses com curso superior e 11 com o nível do ensino técnico. Em
comparação, entre 1963 e 1973, que coincide com o início e término da luta de
libertação nacional, foram formados 36 guineenses com cursos superiores, 46 com
curso técnico médio, 241 com cursos profissionalizantes e de especialização e
174 quadros políticos e sindicais. A educação era assim concebida como uma arma
política de primordial importância. Por isso Cabral defendia que não seria a
sua geração a ganhar a luta, mas sim a que se seguiria, uma vez que mais
importante que a libertação armada era a libertação intelectual e cultural,
razão pela qual se tornava imprescindível a formação de quadros. Para tal, o
PAIGC criou, ainda na década de 60, em Conacri, a Escola-Piloto, que apostava
na formação de quadros políticos e que, simultaneamente, dava cursos
elementares de instrução primária. Em 1965, é fundado o Instituto Amizade, cuja
finalidade era dar acolhimento, proteção e educação às crianças vítimas da
guerra e aos refugiados. Os objetivos destas duas escolas era a formação de
quadros capazes de construir um país de paz e progresso. Por outro lado, foi
dado especial enfoque à justiça, através da criação de tribunais do povo,
compostos por três moradores e onde o professor tinha a função de funcionário
administrativo do tribunal. Para além disso, foi dada primordial importância à saúde,
através da criação de nove hospitais (cinco no sul, dois no norte e dois no
leste) e de postos sanitários (que passaram de 28 em 1968 para 117 em 1971).
Como se poderá constatar, toda a
dinâmica foi desenvolvida no quadro de uma luta armada com escassos recursos
financeiros, técnicos e humanos, contando com a bravura e união dos guineenses
em torno de um projeto, uma causa e um partido com identidade, liderança,
unidade e coesão interna muito fortes.
Contrapondo com o atual contexto e o que
tem caraterizado o partido e consequentemente o país, saliento que, desde a
independência, em setembro de 1973, até à presente data, o PAIGC esteve quase
ininterruptamente no poder, alternadamente com o PRS (2000 a 2003) em aliança
(no primeiro ano) com a RGB/Movimento Bafatá. Registaram-se, ao longo destes
períodos, alguns resultados em termos da dinâmica democrática com abertura ao
multipartidarismo, em 1991, e tentativa de afirmação do potencial económico,
iniciado na década de 80, com injeção de ações externas e assistência
financeira ao desenvolvimento em muitos milhares de USD. No entanto, estima-se
que 58,4% da população continua a viver em situação de pobreza extrema e a
Guiné-Bissau é mesmo o 10º país menos desenvolvido do mundo de acordo com os
dados do PNUD 2015.
Desde a introdução do multipartidarismo,
em 1991, e a realização das primeiras eleições em 1994, até à presente data,
não se verificou um único governo que tenha terminado o seu mandato e o
orçamento de estado tenha sido executado na sua plenitude. Entretanto, entre
1973-2015, o país teve mais de uma dezena de presidentes da república e duas
dezenas de primeiros-ministros, interrupções constantes entre golpes de estado
e ruturas constitucionais. É verdade sim, falta demonstrar a ligação dos maus desempenhos
económicos com as lutas pelo poder. Sobretudo quando tem havido assistência
financeira, mas os resultados não aparecem. Não estaremos aqui perante um outro
problema grave que poderá estar na origem das lutas pelo poder, mas que não é
necessariamente uma consequência da(s) luta(s) pelo poder? Julgo que está aqui
mais uma proposta de estudo, a relação entre o controlo do poder e o desempenho
económico.
Ora, analisando friamente toda a
dinâmica do partido e, consequentemente, da Guiné-Bissau, salta para o debate
interno, e público também, algumas questões que importam realçar, sem as quais
dificilmente se torna possível abordar a unidade, coesão e liderança como um
projeto sólido e consistente no seio do PAIGC, a saber: Os Estatutos e o
Programa do Partido.
Em relação aos estatutos, é importante
refletir sobre a Orgânica do partido quanto à questão interna e funcional. De
acordo com os estatutos, o partido organiza-se a nível nacional, regional,
setorial e de secção, num total de 16 órgãos, nomeadamente: Congresso; Comité
Central; Bureau Político; Presidente do Partido; Secretário-Geral; Convenção
Nacional; Comissão Nacional de Jurisdição; Conselho Consultivo; Conferencia
Regional; Conselho Regional; Comissão Política Regional; Secretariado Regional;
Comissão Regional de Jurisdição; Conferencia Sectorial; Comissão Política
Sectorial e Secretariado Sectorial.
De facto, observando, por um lado, a
dinâmica organizacional, permite identificar a existência de um número muito
elevado de órgãos e imprecisão relativamente às atribuições dos mesmos, a
duplicação de competências, a inadequação dos perfis dos dirigentes e, em
alguns casos, o nível de qualificação e formação dos mesmos. Este estado de
coisas constitui um obstáculo à perceção clara da organização interna do
partido que em resultado da falta de eficácia, originada pelo estrangulamento
da estrutura, gera o desequilíbrio funcional, fomenta a corrupção e as
constantes derivas e lutas internas pelo poder, tal é a semelhança com a
administração pública.
É importante ter algum entendimento em
relação a este assunto, nomeadamente: «Se o problema central não será mesmo o
do Homem do PAIGC e não tanto a questão estatutário ou do número (quantidade)
dos órgãos internos. Homem do PAIGC na mesma proporção que se pode falar do
Homem Guineense. Completamente irreconhecível e em crise profunda». Parece-me
que devem ser tidos em conta tais aspetos, no entanto, nunca é demais reforçar
que a organização interna, definição e cumprimento de normas, procedimentos e
regras estatutárias, disciplina partidária e pluralidade de ideias, são
requisitos importantes e fundamentais para um partido que pretende executar o
seu projeto político.
Por outro lado, o universo que compõe os
cerca de 15 mil militantes registados, conforme os dados disponibilizados pelos
órgãos do partido, não se entende o exagerado número de delegados que são
admitidos aos congressos, concretamente tomando como o exemplo prático, os
Congressos de Gabu e de Cacheu, de 1.100 e 1.175 respetivamente. Se a intenção
é angariar o número máximo de votantes sem ter em conta a discussão em torno de
um programa e de um manifesto político, então deve ser repensada
estatutariamente a participação em massa, dos delegados ao congresso, cujo
objetivo maior não se enquadra no debate e esclarecimento de ideias para o
partido. Em todo o caso, é importante salvaguardar a capacidade eleitoral dos
militantes e tornar plural a partilha de reflexões e pensamento crítico no seio
do partido PAIGC.
Ainda, em relação à dinâmica que se pretende
para o partido face aos desafios do futuro, não se compreende o elevado número
de elementos do Bureau Político, ou seja, cerca de 91 efetivos e 11 suplentes,
e do Comité Central com 351 efetivos e 21 suplentes. De facto, é importante o
debate e discussão de ideias em termos estratégicos sobre as “guidelines” do
partido, capaz até de permitir uma alavancagem das dinâmicas que se pretendem.
Mas, parece-me que isso deve ser feito num quadro dimensionado à realidade do
partido e não tanto através de um plenário que pretende substituir as funções
de um congresso. As organizações só funcionam se forem criadas e desenvolvidas
com uma visão voltada para a sua realidade interna, ou seja, para si própria.
Os tempos são outros e os desafios também, portanto, é importante pensar na
renovação e modernização do partido.
A recente crise colocou a nuas
fragilidades do partido, da nação guineense e, invariavelmente, da classe
política em geral, tema que importa agora refundar e estimular em termos de
“learning opportunities” e resolução dos problemas conjunturais que o país
enfrenta.
Em suma, o PAIGC deve viver de factos e
de verdades, criando condições para que haja unidade e coesão no seu seio, tal
como é o legado doutrinal de Amílcar Cabral.
Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.
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