
Era aqui que a cidade de Bissau começava
durante o colonialismo. Começava em termos de vida, de infra-estruturas, de
cidade. Havia um posto de controlo que exigia a chamada “guia de marcha”,
autorização onde se descrevia o motivo da deslocação. Ninguém podia atravessar
descalço a fronteira que dava acesso a Bissau, cidade que em 1941 substitui
Bolama como capital.
O antropólogo e arquivista Fodé Mané
ainda conserva as guias de marcha da mãe. “Um assimilado podia andar onde
quisesse, um indígena tinha de ir à administração pedir uma guia e responder a
várias perguntas. Não podia ultrapassar os dias que foram concedidos para estar
no centro urbano.”
Além da guia de marcha, o indígena tinha
uma caderneta, obrigatória a partir de 1920, para todos os homens. Num exemplar
da Caderneta do Indígena vêem-se várias folhas, cada uma com itens que alguém
preencheria: as características, o imposto indígena, a contribuição braçal,
castigos e condenações…
O estatuto do indigenato, lei que tinha
como objectivo a assimilação, vigorou oficialmente até 1961, mas vários relatos
dizem que na prática continuou a ser aplicado até à independência. Ao
assimilado era exigido que comesse à mesa, usasse garfo e faca, tivesse um
salário e que, enfim, adoptasse o estilo de vida português.
Não é difícil imaginar agora um posto de
controlo algures na estrada da Chapa. Seria idêntico às cordas que hoje os
miúdos esticam na estrada principal que sai de Bissau em direcção a Leste e
servem para travar a passagem de viaturas, cobrar os impostos aos camiões que
levam mercadoria ou pedir uma contribuição pelo arranjo dos buracos da estrada.
Muita gente conta que havia quem
caminhasse quilómetros e quilómetros descalço até ali chegar.
“Durante a época colonial, havia uma
divisão clara, uma linha”, conta, por seu lado, Djamila Gomes, arquitecta. “Há
até piadas sobre isso. Por exemplo, a quem vem de Bafatá para viver em Bissau
diz-se: ‘Pulaste a corda.’ Porque antes havia uma corda. Lembro-me de que a
minha mãe tinha uma autorização para vir a Bissau.”
Sentada na rua da zona antiga de Bissau,
hoje degradada e com estradas e prédios a precisar de urgente recuperação,
Djamila Gomes explica o desenho da cidade, explica como se dava a dinâmica
racial em Bissau. “Os empregados não residiam [na cidade]. Vinham e iam
embora.” A separação “entre os guineenses e portugueses era real”, completa.
Bissau funcionava como uma ilha. Os
edifícios eram construídos quase todos com a mesma arquitectura, que ainda hoje
se mantém: em baixo casas comerciais, em cima residências. “Ainda hoje não
temos nenhum outro impacto arquitectónico que se compare — temos o estilo
colonial só aqui na cidade de Bissau”, explica a também administradora de outra
das mais importantes cidades guineenses, Bafatá.
Está de visita a Bissau por causa dos
acontecimentos que levaram o Presidente da República, José Mário Vaz, a demitir
o Governo liderado por Domingos Simões Pereira, ambos do PAIGC (Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde). A sede do partido, mesmo no
centro, está neste momento em obras — literal e metaforicamente. O edifício,
com um desenho arquitectónico típico da época do Estado Novo, está a ser
pintado por dentro. No pátio, os pioneiros preparam a coreografia para as
cerimónias de comemoração do aniversário do partido e da independência, ambas
no mês de Setembro. Ouve-se o coro a entoar “as glórias” do PAIGC.
Um enorme busto de Amílcar Cabral
afirma-se à entrada, e um quadro gigante em cores vivas com o seu rosto
olha-nos de frente quando subimos as escadas para o primeiro andar, a caminho
do auditório. Amílcar Cabral é ainda hoje uma figura admirada na Guiné-Bissau,
mas também em vários países africanos. É uma referência para a luta dos
direitos dos negros. Ouvimos gente citá-lo dizendo que “a luta de libertação
não era contra os portugueses, a luta era contra o sistema colonial”. É um
mantra que serve a muitos para sublinhar que não existe animosidade contra os
portugueses, apesar da violência cometida pelo sistema colonial português.
O
apito das seis da tarde
Estamos na Praça dos Heróis Nacionais,
antiga Praça do Império: o centro é ocupado pelo Monumento ao Esforço da Raça
(1941). É uma rotunda que fica em frente à sede do PAIGC e do Palácio
Presidencial — de manhã e ao final do dia, muitos andam ali a fazer desporto.
Um pouco antes das 18h a bandeira no
Palácio Presidencial é retirada da haste e toca o hino nacional — é uma ordem
todos ficarem de pé, caso contrário pode-se ser multado. Os carros param. A
conversa com Fodé Mané, que estudou o estatuto do indígena, é interrompida,
criando a sensação de qualquer coisa de anacrónico e, ao mesmo tempo,
paradoxal. Ficamos em silêncio. Minutos depois continua: “Quando uma pessoa
requeria o estatuto de assimilado, tinha de provar que já não praticava as
cerimónias tradicionais e que se vestia como um europeu. As mulheres tinham de
desfrisar o cabelo, desfazer as tranças africanas e até se perguntava aos
comerciantes quantos litros de vinho a pessoa comprava por semana, se comprava
bacalhau e grão-de-bico. Como contrapartida, podia aceder ao funcionalismo
público, porque só um cidadão assimilado é que podia ser funcionário público e
os seus filhos tinham direito a escolas centrais, a escolas do Estado. Havia um
conjunto de serviços próprios para indígenas e havia um conjunto de serviços
para assimilados.”
A exigência fazia parte de um código
colonial, e a fronteira existia para separar os indígenas dos assimilados, dos
portugueses e, em muitos casos, dos cabo-verdianos também.
Leopoldo Amado, historiador, director do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), lembra a época em que um apito
dava ordens de entrada e saída da população negra na cidade. Bissau começou a
desenvolver-se a partir do porto e no porto havia um muro para separar as
populações africanas dos moradores, que eram os comerciantes portugueses. “Em
1940, este muro ainda existia, foi derrubado quando o nacionalismo começou a
despertar”, no final dos anos 1950, explica. “Nesse território com o muro em
Bissau, na pequena cidadela, alguém usava um apito às seis da tarde e os
africanos sabiam que era hora de saírem daquele espaço, a urbe colonial.
Voltava-se a apitar às seis da manhã para entrarem e darem início aos trabalhos
domésticos. A presença dos negros era admitida apenas para os trabalhos
domésticos” ou de baixa qualificação.
A época colonial de que Fodé Mané, 50
anos, se lembra é a do governador António de Spínola (1968-73), altura em que
estava em marcha a política Por Uma Guiné Melhor (que ficaria registada em
livro, 1970). “Já não havia a implementação da segregação do indígena”,
comenta. Era a política de criar mais escolas, mais infra-estruturas para
travar a luta de libertação que estava a crescer. “Mas uma revogação não
desaparece da mentalidade das pessoas”, continua. “Vivemos a diferenciação
entre os que tinham beneficiado do estatuto do indigenato, dos que não tinham a
possibilidade de ser assimilados, e aqueles que eram filhos de funcionários
públicos e podiam estudar nas escolas do Estado. Para estudar, a pessoa tinha
de ter registo ou certidão de nascimento ou um conjunto de documentos que o
grosso da população não tinha.”
Mesmo pelos nomes nota-se quem foi
registado antes ou depois da época colonial: “Por exemplo, o meu nome Fodé
Mané, na época colonial não podia ter o nome completamente africano, tinha de
ter um Fernando ou um João, depois não podia ter um nome tão curto.”
Com pouco mais de 1,6 milhões de
habitantes, a Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a obter a
independência em 1973, fruto da luta de libertação liderada por homens como
Amílcar Cabral, iniciada no princípio dos anos 1960. Tem uma história marcada
pela resistência, orgulho de muitos guineenses. Tendo feito parte do Império
Mali e do Reino Gabu, a Guiné-Bissau nunca seria ocupada totalmente pelos
portugueses. Historiadores como Leopoldo Amado defendem que a colonização
efectiva durou apenas de 1936 (a data oficial do final das campanhas de
pacificação) até ao despertar do nacionalismo, por volta dos anos 1960.
A Guiné foi administrada por Cabo Verde
até 1879 como Guiné de Cabo Verde e até à descolonização eram os cabo-verdianos
que formavam o grosso da administração pública colonial — daí dizer-se que a
Guiné era uma colónia da colónia.
Com mais de 30 etnias, a língua
portuguesa é falada por uma minoria de 14%, vigorando o crioulo. A política
colonial portuguesa usou a divisão étnica a seu favor, criando cisões e
adoptando aliados como os fula.
Estradas
com trabalho forçado
Bafatá é uma cidade no Centro-Leste de
Bissau. Tem uma população maioritariamente muçulmana. Os poucos edifícios
coloniais estão com ar abandonado. Nas ruas de terra vermelha e buracos
provocados pela chuva há gente a vender, como em qualquer pequena localidade na
Guiné-Bissau. A vida faz-se cá fora, apesar do calor.
A mesquita foi inaugurada em 1962,
segundo o actual imã. Os altifalantes chamam para a oração, homens entram depois
de se lavarem e descalçarem, alguns chegam de bicicleta. A fachada branca, com
quadrados rendilhados e paredes verde-claras, está razoavelmente bem
conservada. Como era ser muçulmano num país colonizado por uma potência
católica? Ao imã, Tcherno Culabio Ba, nunca forçaram que mudasse o seu nome
para um nome católico, pois ele era o filho do imã da mesquita. Mas teve de
fazer a tropa portuguesa, por exemplo. “Era difícil viver durante o período
colonial. Até para Portugal era difícil, só depois da democracia é que se
tornou melhor. Agora estamos livres e soberanos, dantes tínhamos de cumprir,
ninguém podia recusar.”
O ourives Saliu Tcham, 69 anos, fala
pouco português, e é um dos filhos que traduz a conversa no alpendre de sua
casa. As paredes de um verde-claríssimo estão desbotadas e têm números escritos
a carvão. Cá fora uma mulher aquece uma panela com comida no pequeno fogareiro.
Um galo canta. Tcham tem umas mãos enormes. É um homem alto. Vive ali desde que
nasceu. A profissão herdou-a do pai, que durante muito tempo foi também seu
patrão. “Os portugueses mandavam fazer trabalhos forçados. Querendo ou não
querendo, eu fazia serviço sem ser pago.”
Segundo conta, os portugueses não
pagavam ao pai, que punha a família a trabalhar. Entre 1968 e 1971, ele
trabalhou de graça. Nunca estudou. Ficou contente quando os portugueses saíram.
“Foi uma grande festa.” Lembra também que “nunca o preto podia comer com o
branco”. Ele costuma conversar sobre isto com os filhos. Um deles queria ir
para Portugal estudar, ele desaconselhou porque tinha medo que fosse vítima de
racismo. Enumera uma série de coisas que não havia na altura e fala do imposto
da palhota que era preciso os guineenses pagarem — quem não o pagasse era
sujeito a trabalho forçado.
Não foi apenas o estatuto do indígena
que separou raças na Guiné-Bissau. Dautarin da Costa, 34 anos, lembra-se de ter
aprendido na escola, no seu 8.º ano, as datas de abolição da escravatura. Era
“dado com tanta propriedade”, conta, que “um estudante acreditava” que tinha
sido mesmo abolida. Porém, mais tarde, percebeu que uma coisa foi o que deu na
escola, outra foi aquilo que aconteceu de facto.
Sentado na sala de sua casa em Bissau,
para onde regressou há dois anos depois de ter estado 17 a viver em Portugal,
Dautarin fala de idas à tabanca (casa de campo) da família, onde costumava
conversar com o avô. “Numa dessas conversas, o meu avô disse-me que entraram na
tabanca e agarraram jovens [incluindo ele] para construir a estrada que me
levou até ele sem ser remunerado. Então fiz as contas e o meu avô foi
escravizado numa altura posterior à data da abolição da escravatura. Aquilo me
marcou imenso e abriu-me outras perspectivas sobre a dominação: ou seja, a
coisa não foi tão higiénica como os livros apresentam. Comecei a perceber que
há uma dimensão formal da dominação e outra mais prática que persistiu depois
dos tratados. Para mim, aquilo foi um marco da profunda desigualdade entre
europeus, africanos, entre pretos e brancos; comecei a perceber que houve um
processo de dominação e o meu avô foi vítima.”
O avô estava numa situação de
desprivilégio, não era considerado cidadão de pleno direito. Entretanto,
algumas coisas mudaram: “Deixámos de ser portugueses de segunda e de terceira
para passarmos a ser guineenses. Mas a maior parte dos guineenses está numa
situação de pobreza.”
Dautarin tem várias etnias a correr-lhe
no sangue. É manjaco do lado do pai, papel do lado da mãe, tem um trisavô
português e um bisavô cabo-verdiano. “O meu apelido, Costa, não é do meu pai,
que era indígena. Foi atribuído por causa do colonialismo: não tenho o meu
apelido africano. Na região de Cacheu, houve uma divisão: todos os manjacos têm
apelidos como Costa, Gomes, Mendes. Aboliram os apelidos que tínhamos.”
Sociólogo, lê esta característica como a
necessidade de os dominadores controlarem a identidade dos que eram dominados,
de modo a perpetuar a dominação. “É uma estratégia que visava estratificar e
retirar elementos de resistência ao povo indígena. Claro que gostaria de ter o
meu verdadeiro apelido mas, não o tendo, interpreto como um processo da
história, que é de dominação mas que em mim não faz sentido — estou enquadrado
num outro desafio identitário, numa outra luta de preservação da identidade.”
Hoje há uma pequena parte da população
que é privilegiada e isso remonta ao passado colonial de divisão étnica e
diferenciação racial. “Os descendentes dos portugueses tendencialmente acabam
por ocupar posições de maior privilégio. Ocupavam durante uma fase inicial
porque herdaram os recursos. Mas com o passar do tempo os espaços de privilégio
foram-se diversificando e começou a haver uma maior mistura. Numa fase inicial
podemos fazer essa ligação não só com os descendentes de portugueses mas também
com pessoas que vieram da luta de libertação numa condição de privilégio; quem
ocupou os lugares vagos pelos colonialistas? Amílcar Cabral dizia que a pequena
burguesia era vital para o processo de libertação porque tem consciência da
desigualdade, convive directamente com ela. Mas esta classe após o processo de
libertação vai ter tendência para ocupar o lugar do colonizador, então tem de
se suicidar enquanto classe.”
Duas
religiões, dois “colonizadores”
Na parede do escritório de Abdulai Sila
estão penduradas algumas capas dos seus livros. Nascido em 1958, em Catió, o
escritor fundou uma empresa de informática com o irmão e é lá, em Bissau, que
nos encontramos numa manhã chuvosa.
Sentamo-nos numa cadeira junto a uma
mesa comprida perto da porta, a secretária está ao fundo, à janela. Escreveu A
Última Tragédia, onde aborda a questão racial durante o colonialismo. É pelo
seu nome que começa a conversa: o pai nunca aceitou que os filhos ficassem com
outros nomes que não fossem aqueles que lhes deu. “Um dos aspectos mais
violentos do colonialismo era despir as pessoas completamente, aquilo que
Frantz Fanon chamou Pele Negra, Máscaras Brancas. Vivíamos essa lavagem do
colonialismo, de todas as formas, diariamente”, lembra.
O pai sempre recusou a submissão. Pagou
um preço para manter a dignidade. Dizia-lhe: “Tens de ser tu mesmo, não o que o
outro quer que tu sejas. Tens um nome, uma posição, tens de ser coerente
contigo, não tens de aceitar que o outro te oprima.”
Por outro lado, Abdulai Sila cresceu com
uma educação religiosa dupla: católica e muçulmana. Na escola oficial só havia
lugar para filhos de portugueses ou assimilados, então o pai escolheu para o
filho uma escola católica. Sendo os pais muçulmanos praticantes, permitir “a
conversão” — “era de facto conversão” — criava conflitos na comunidade. Abdulai
Sila ia, então, a uma escola corânica e a uma escola missionária católica;
aprendeu as duas religiões ao mesmo tempo, praticou as duas religiões ao mesmo
tempo — hoje não segue nenhuma, é ateu.
O racismo era algo que sentia
quotidianamente na escola. “Lembro-me uma vez de ter feito uma prova e ter uma
nota melhor que o meu colega. A professora entregou-lhe o teste e disse: ‘Não
tens vergonha, o preto teve uma nota melhor que a tua’.”
Para quem beneficiava do sistema, havia
uma tentativa de lutar pela sua manutenção, mas Sila estava “do outro lado”,
era tratado como “cidadão de classe inferior”, tinha no BI o traço B. “Não
sabia o que era traço B. O que era o traço B? Era cidadão de segunda classe.
Havia os assimilados e os gentios — eu fazia parte desses.”
A mãe não falava português, o pai falava
pouco. Era preciso comer à mesa, desfrisar o cabelo, usar peruca, e ele não se
identificava com nada disso porque, no fundo, era “rejeitar e assumir a outra
personalidade”, fazendo-lhe lembrar que era inferior. “Hoje continua a haver
perucas e a gastar-se dinheiro no cabelo. Gasta-se mais dinheiro em cabelo
falso do que em livros. Qual o objectivo? Parecer-se com o branco, o modelo que
se tem na cabeça. Essa deturpação vem de onde? Lá, daqueles tempos. Portanto
não me admira que muita gente continue a achar que o outro tempo foi pacífico,
lindinho, quando os outros que andaram na mata são os maus da fita. Não
souberam nunca o que é ser maltratado, humilhado, espancado, preso.”
Racismo na Guiné-Bissau seria
ignorância, defende. Mas continua a haver um “certo complexo”. Boa parte dos
decisores “está ligada a essa mentalidade de cariz racista na qual cresceu e da
qual não se libertou”. Como se manifesta? “[Na atitude de] ‘Nós somos
inferiores e precisamos de ajuda.’ E passam o tempo a pedir ajuda. Há muitas
formas de racismo que são invisíveis. Uma delas é sentir-se inferior porque
toda a educação era feita nessa base: ‘Vocês não são capazes de se
autogovernar, são bárbaros, selvagens.’ E quando não se consegue remover o
bombardeamento isso fica, fica na cabeça: ‘Tu és inferior, és infeliz’.”
Saico Baldé tem duas datas de nascimento:
a real, em 1958, e a do papel, em 1964. Natural do Sul da Guiné-Bissau, e do
campo, foi registado oficialmente como sendo mais novo a seguir à
independência, para frequentar um liceu onde estava a ser dada prioridade a
miúdos nascidos depois dele.
Durante alguns anos, porém, estudou na
escola corânica do Senegal, por ordens do tio, régulo. Foi na época em que
estava em curso a guerra de libertação e muitos se tinham refugiado naquele
país. Ele viveu um episódio que recorda com preocupação: foi fotografado pelo
PAIGC para um panfleto de propaganda política no Senegal e esse panfleto chegou
às mãos da PIDE. Mais tarde, ao atravessar a fronteira para passar férias e
visitar a família, seria apanhado — “claro” que a família ficou sob vigilância.
Actualmente a fazer um doutoramento
sobre os migrantes guineenses em Portugal, Saico Baldé tem vários papéis
espalhados na secretária do seu escritório no INEP, documentos que anda a
consultar para as suas pesquisas.
Cita dados do período colonial na
conversa, ao final da tarde. Os mais velhos falam-lhe de muitas histórias de
trabalhos forçados, de humilhações — e a pior discriminação é ser humilhado
perante a família, defende. “Os velhos contam que, quando se abriam as
estradas, as pessoas eram obrigadas a ir trabalhar — ai de quem não cumprisse.
Hoje estava a ler um despacho da conferência dos administradores e uma das
recomendações era negar ao indígena qualquer pretensão de ser chefe. Isto é uma
forma violenta… A pessoa tem o direito de sonhar. Negar isso com um decreto,
ser uma política…”
Com grande convicção, e uma voz segura,
defende que “é altura de deixar de fazer propaganda e de [começar] a escrever a
história como ela foi”. Um dos factos que há a sublinhar é que a colonização
não chegou a todo o território do país, o interior “teve contacto com população
branca tardiamente” e sobretudo com os militares. Isso leva a outra questão:
“Quem eram os administradores? Raramente eram os lisboetas, os minhotos —
muitas vezes eram os cabo-verdianos. Aliás, [dados de um relatório] 70% dos
funcionários coloniais em 1971 eram cabo-verdianos: então não lidámos com o
colono directamente mas com o subcontratado. Isso deixou outra marca, a
rivalidade entre a ala originária de Cabo Verde e a da Guiné. Os restantes 30%
estavam cá em cima: quem lidava com o nativo não era o colono da metrópole, era
o [cabo-verdiano] vindo de São Vicente ou da Praia”.
Esta presença de cabo-verdianos em
posições de chefia na Guiné-Bissau provocou tensões raciais, que ainda hoje
estão presentes nas narrativas sobre a composição racial bissau-guineense.
Muitas vezes, o chefe do posto que executava as medidas da administração
colonial era cabo-verdiano e para mostrar trabalho feito obrigava a população a
executar trabalho forçado, exemplifica. “Quem é que sabia quem assinava os
decretos? Eu, cipaio, que estava ali com o chicote, recebia determinadas
orientações” — e cumpria-as.
O uso do chicote não é metáfora. Teodora
Inácia Gomes, um dos rostos da luta de libertação, nasceu no Sul, e no sítio
onde vivia, Empada, lembra-se de ver as pessoas a ser chicoteadas, de as ver a
ser agarradas e de lhes baterem até sangrar por não pagarem o imposto da
palhota.
Entre as reuniões do partido, recebe-nos
na biblioteca do PAIGC ao final do dia. À volta da sala imensas fotografias de
Amílcar Cabral e de outros líderes da luta, a preto e branco. Imagens com o
mato e guerrilheiros em fundo, imagens de reuniões e de celebrações públicas.
Diz-nos que “o objectivo principal do colonialismo é explorar o povo” e que no
seu tempo “as populações não tinham voz nem direito a nada”. “O cipaio
pressionava as populações para acatar as ordens, obrigava a pagar imposto, a
trabalhar nas estradas e nas construções.”
A imagem da repressão colonial é repetida
nas narrativas sobre a época. Um dos episódios mais referidos da história do
século XX guineense foi, de resto, o massacre de Pidjiguiti, em 1959: um grupo
de trabalhadores da Casa Gouveia fez greve por melhores salários, tendo a PIDE
disparado sobre eles no porto de Bissau e feito dezenas de mortos e feridos.
O que aconteceu mostra que a
reivindicação da melhoria das condições de vida foi negada “por sermos
identitariamente subalternos”, comenta o sociólogo Miguel de Barros. Ou seja,
em circunstâncias normais, se as pessoas que estavam a reivindicar as melhores
condições de trabalho fossem “pessoas ditas civilizadas”, não aconteceria o que
aconteceu, considera.
Com 74 anos Mário Cabral, ex-ministro da
Educação, membro do bureau político do PAIGC, lembra-se do episódio de
Pidjiguiti, altura em que as consciências se abriram, criando “um maior
sentimento de medo”, até porque “começaram a vir [para a Guiné-Bissau] os
agentes da PIDE que vigiavam tudo”.
Na altura não havia segregação racial,
como na África do Sul, mas notava-se “que todos os pretos eram pobres, viviam
em habitações precárias e o nível de vida era diferente — e eram diferentes
tanto dos portugueses como dos cabo-verdianos”.
Notava-se também a separação em certos
locais públicos, entre quem tinha acesso ao cinema ou ao café Império, por
exemplo. “Marcou muita gente e muita gente foi para a luta porque se sentiu
discriminado no seu próprio país. As discriminações eram feitas a todos os
negros à excepção daqueles que, pelo seu estatuto, conseguiam elevar-se, mas
não tinham acesso a [determinados locais].”
Atirar
cães à mãe negra
Quando andava no colégio Ramalhão, em
Sintra, Portugal, Augusta Henriques (n. 1952), fundadora de uma das mais
importantes organizações não-governamentais guineenses, a Tiniguena, era uma
negra no meio de brancas. Mexiam-lhe no cabelo e faziam perguntas sobre como
tinha ficado daquela cor. Não fez uma única amiga nesse tempo. Quando ia de
férias para o Norte, o pai guiando o seu Cadillac, havia sempre uma pequena
multidão de curiosos atrás, tinham de fechar os vidros do carro: “‘Olha o
preto, olha o preto, olha o preto!’”, gritavam.
Eram os anos 1960, a época de um
“Portugal tacanho”. E ignorante. A mentalidade dos portugueses na Guiné-Bissau
não era muito diferente. A história da família de Augusta Henriques comprova-o.
O avô paterno era português, de Mangualde, foi para a Guiné com uma namorada
que acabaria por morrer. Teria filhos com uma mestiça, a avó de Augusta. Mas a
ela depois atirava cães para não a deixar ver os filhos, conta a neta. Era um
homem “prepotente” e violento, com quem os filhos acabaram por cortar relações,
o típico colono português a quem “o sistema não punha limites”. A mãe de
Augusta era de origem cabo-verdiana.
“O racismo colonial é algo de uma época.
Toda a ultrapassagem da dominação tem de se fazer com o exercício interno de
catarse; nós não gostamos de mostrar essa parte de sofrimento porque isso para
nós ia ser sinal de fraqueza. Como é que a gente pode perdoar? Não resolvemos
profundamente as questões.”
Estamos no escritório de casa de Augusta
Henriques, no bairro Chão de Papel, onde há fotografias da sua família e da
família do seu actual companheiro. Nos álbuns que tira de um baú, podemos ver
as diversas fases da vida familiar, inclusivamente a altura em que o pai tinha
uma propriedade e se dedicava à agricultura, partilhando a gestão com a mãe,
uma das primeiras “pretas a ter carta de condução” no país.
Augusta recorda também o tempo em que
andou num colégio de freiras em Bor, onde as freiras, muitas com nível de
instrução baixo, tinham crianças negras ou mulatas ao seu cuidado e havia o
sentimento de que “tudo lhes era permitido”. “Havia castigos corporais
incríveis. Lembro do caso concreto de uma moça muito bonita que tinha ataques
epilépticos; achavam que era o diabo que se tinha apoderado da miúda. Uma das
coisas que me ficou marcada foi baterem com a cabeça da miúda no chão, darem
uma reguada no sexo dela para lhe ‘expulsar o diabo do corpo’.”
Na escola, a discriminação acontecia de
forma evidente quando os alunos eram obrigados a saber os rios e serras de
Portugal e pouco ou nada se ensinava sobre o país onde nasceram. “Viu alguma
montanha [na Guiné-Bissau] para a gente fazer ideia do que era uma montanha,
uma serra, um vale?”, pergunta retoricamente. “Tínhamos de saber todos os
caminhos-de-ferro, capitais de distrito…. e tínhamos de saber em português.”
Augusta Henriques é uma mulher
expressiva e é com indignação que afirma: “A história do ensino marcou
incrivelmente o que é a Guiné hoje. Foi feita sempre numa língua estrangeira [o
português]; foi feita sempre com um referencial que o guineense não conhece,
foi feita sempre com um mundo que não é seu, aonde eu tinha de recorrer à
memória, perceber pela astúcia o que é que o outro quer que eu lhe responda,
não o que é certo e errado, mas o que ele espera — e até hoje o guineense tem isto.”
Fez o curso no Instituto de Serviço
Social de Lisboa, trabalhou nas SAAL, projecto de promoção habitacional do
pós-25 de Abril, e quando regressou à Guiné-Bissau depois da revolução percebeu
que afinal tinha um país idílico na cabeça. “Vir de férias é uma coisa, viver é
outra. Para encontrar o meu canto nesta Guiné… até hoje brigo por ele; porque
mais uma vez a minha pele diz que eu sou ‘talvez’. Como dizia Pepetela: o
mulato é talvez.”
Há várias verdades sobre a questão
racial, defende. A sua experiência de mulher mestiça na Guiné-Bissau é que
passa pela ideia de que “‘esta é terra de pretos’, portanto tens de te adaptar
a terra de pretos’”, desabafa. “Não se fala tanto de pretos mas de africanos,
mas quando se fala de africano à frente de um mestiço como se fosse elemento de
fora… A maior parte do tempo o mestiço está a ter de provar que é tão guineense
como os pretos. Há pessoas que não falam de preto mas falam de ‘po di terra’, o
que tem a raiz 100% africana — quando tem uma pele mais clara, parte-se do
princípio de que não é 100% africana. Isto vê-se até em muita malta nova.”
Valorizar
o que é ocidental
Aos 29 anos, Mamadu Baldé é gestor na
Academia Ubuntu, uma ONG portuguesa que tem um braço em Bissau e que trabalha
na área da “liderança servidora” e empreendedorismo social. Encontramo-nos no
pequeno escritório da academia, onde frases inspiradoras estão pintadas na
parede.
Nascido em Bissorã, estudou numa escola
portuguesa durante dois anos. É com a memória desse tempo em fundo que afirma a
necessidade de desmistificar o que foi o colonialismo, “que tipo de relação vivemos,
que tipo de marcas ficaram”.
Na sua geração, os comentários sobre o
colonialismo variam muito, entre os que sentem as suas marcas de forma mais
forte e os que não se interessam sequer pelo tema.
No escritório da academia, um pequeno
espaço no centro de Bissau, Mamadu diz que não acredita na existência de “um
colonialismo suave”, porque “estamos a falar de uma relação de dominação e de
uma relação que chegou ao ponto em que alguém decidiu que estava na altura de
lutar contra ela”. Há, porém, necessidade de se perceber as marcas que ficaram
e ele reconhece influências dos dois lados: “A luta pela independência teve
muita influência na democratização de Portugal. E não podemos esquecer que a
forma como as várias etnias [guineenses] se relacionam entre si teve muito que
ver com o colonialismo. Não acredito que o colonialismo tenha sido suave ou
brando — não permitiu a educação dos nativos; foi sempre muito claro naquilo
que era o objectivo de tentar dividir e aproximar alguns para, através disso,
manter o poder.”
Mamadu acredita que existe uma marca no
colonialismo que “pende muito para o racismo”. “Quando dizemos que ‘vamos
civilizar um povo’, estamos a partir do princípio de que nada deste povo nos
pode servir. Amílcar Cabral pergunta: ‘Quem são os portugueses para dizer que
não somos civilizados?’ E acrescenta: ‘Qual a maior prova de civilização do que
um povo que pega em armas para defender a sua liberdade?’”
Admira a postura de Cabral em relação ao
colonialismo ao defender que o inimigo do povo da Guiné-Bissau não são os
portugueses, mas o sistema. “Isso acaba por fazer uma cura e leva a que um
guineense hoje não veja o povo português como colonialista mas como povo
irmão”, acredita.
Por outro lado, nota que existe “algum
paternalismo”, há uma franja da sociedade que gostaria que, no papel de
ex-colonizador, Portugal estivesse disposto a ajudar mais o país. “Não sei se
isso é bom. Já é tempo de assumirmos as nossas responsabilidades. O melhor que
podemos fazer é dar os passos necessários, fazer aquilo que é da nossa
responsabilidade, mas não esperar que alguém nos apoie e ensine como andar.
Muito embora a história da Guiné-Bissau não possa ser dissociada da história
colonial, dos problemas do colonialismo e dos problemas que tivemos no
pós-colonialismo.”
Os dois países não fazem uma reflexão
sobre a questão racial e isso faz falta, defende. Em Portugal, onde se
licenciou, lembra que falar de colonialismo era polémico, “havia a ideia de que
‘isto foi assim’ não vamos discutir”. E o “foi assim” era que o colonialismo
“foi suave”. Porém, para ele não faz sentido haver uma Comunidade de Países de
Língua Portuguesa (CPLP) “que não discuta isto”, defende.
A ausência de reflexão sobre o sistema
colonial e a ideia de que era suave passou para a geração mais nova. Samantha
Fernandes, 25 anos, jurista, lembra-se de que na escola portuguesa onde estudou
“pouco era falado da história da Guiné-Bissau”. A imagem do colonialismo
transmitida era a de “que foram os descobridores — mas os portugueses quando
chegaram já existia uma civilização”. Hoje analisa que o que era valorizado
estava ligado aos valores ocidentais: “Na altura, os que iam passar as férias a
Portugal eram os melhores, os que falavam português eram os mais inteligentes,
os que tinham amigos brancos eram os mais importantes, os que comiam bacalhau
eram os mais ricos, os que vestiam calças jeans eram os mais… Não vejo isso
como consequência do colonialismo por si só, mas da globalização em geral.”
Hierarquias
raciais
Nelvina Barreto nasceu numa posição de
privilégio na Guiné-Bissau. Os pais eram funcionários da administração
colonial: a mãe, cabo-verdiana, era enfermeira, o pai trabalhava na
conservatória do registo civil. Em 1967, foram transferidos para Moçambique,
tinha Nelvina Barreto dois anos.
O pai viajou primeiro, e a mãe fez uma
paragem em Lisboa com as duas filhas para ir a consultas médicas. Nesse
período, contratou uma ama para cuidar das crianças — uma senhora mais velha,
branca. Na véspera de embarcar de Lisboa para Moçambique, a mãe ligou ao pai a
dizer: “As miúdas estão muito habituadas à ama, eu queria levar a senhora e a
senhora está disponível para ir connosco’.” O pai dela disse: “‘Olha que a
situação aqui é diferente da Guiné. Aí em Portugal ela é a ama das meninas, ou
seja, ela é tua empregada. Quando vocês chegarem aqui, as coisas são bem
capazes de se inverter.’ Não era bem compreendido que uma branca fosse
empregada de uma família de negros’.” A ama nunca chegou a ir para Moçambique
com eles.
Nelvina Barreto acha que na Guiné-Bissau
não seria possível, na altura, existir uma ama branca a tomar conta de crianças
negras “pela simples razão de que a relação interétnica e interracial era feita
noutras premissas”.
Em Moçambique, sentiu, porém, a
diferença de tratamento simplesmente por ser guineense. Na escola primária
pública, a professora da 4.ª classe tratava-a como se pertencesse a “uma
espécie de negro de primeira”, numa hierarquia em que os negros de segunda eram
os de Moçambique. “Do ponto de vista do branco, nós, da Guiné e de Cabo Verde,
éramos privilegiados em relação aos autóctones. Entendiam que tínhamos mais
educação — e era verdade, porque quem ia para lá no quadro da administração
colonial portuguesa já tinha um determinado nível sociocultural. Naturalmente
isto reflectia-se nos filhos, enquanto as outras crianças provinham de
ambientes mais modestos. Lembro-me de que a professora estava sempre a mostrar
a diferença entre um negro educado e um negro que não tem educação. Íamos para
o Clube Ferroviário da Beira, éramos quatro, três de Moçambique: a professora
levava-nos no carro e punha-me sentada ao lado dela. Isto já estabelecia uma
hierarquia: ‘Entre os negros, és a mais educada, a que merece um tratamento
mais diferenciado’.”
Com uns pais politizados que sempre
explicaram às filhas o que era discriminação, Nelvina Barreto cresceu a receber
mensagens a desmistificar e desconstruir o que lhe era ensinado na escola e no
espaço público como sendo o lugar do negro. Seja como for, sempre lhe pareceu
que as clivagens raciais na Guiné-Bissau não eram tão grandes como em
Moçambique e Angola. “Mas houve [clivagem] de outra forma, em relação ao
cabo-verdiano. Por força da educação e de alguns traços culturais que herdámos,
sentimos [alguma discriminação]. O guineense autóctone tem um maior
ressentimento em relação ao cabo-verdiano do que em relação ao branco português,
porque o cabo-verdiano foi a face visível da repressão portuguesa, era o
intermediário do branco.”
Leopoldo Amado (n. 1960) é hoje um dos
mais conhecidos e respeitados historiadores bissau-guineenses e é ele quem afirma:
a partir de determinada altura, a Guiné era um fardo para o sistema colonial
português. É uma terra com tradição guerreira que não permitiu que a
colonização fosse efectiva e há relatórios que, a dada altura, mostram Portugal
a ter mais despesa do que lucros com o país. Portugal só não se desfez da Guiné
porque o império colonial era tido como um todo: se a Guiné-Bissau caísse, as
restantes colónias tentariam seguir-lhe os passos, acredita.
Como Portugal tinha muito poucos meios,
usou o sistema de “engavetamento étnico”: inventou etnias; dividiu para melhor
reinar. “Houve casos em que os portugueses tiveram o desplante de colocar fulas
a dirigir manjacos, manjacos a dirigir bijagós, provocando movimentações de
etnias com o propósito de os dividir, e colocando sobre eles uma autoridade a
que chamavam Assuntos Indígenas.”
No colonialismo existiam quatro
categorias raciais, contextualiza: os grumetes (permaneciam na tradição, viviam
à beira das cidades), tangomãos (participavam no comércio e eram uma espécie de
assimilados), os brancos, e os lançados, os filhos da terra (brancos que
nasceram na Guiné-Bissau). “Um dos factores de submissão foi exactamente a
interiorização no negro da sua inferioridade pela via da separação”, sublinha.
Por isso usavam o muro de Bissau, por exemplo. “Não que os portugueses fossem
mais racistas que os outros, mas tinham de utilizar isso como método, a ideia
de inferioridade para levarem avante os seus propósitos. Tudo isso foi feito
num ambiente em que os portugueses, eles próprios, assimilavam valores
africanos. Os colonos que se deixavam levar pela cultura africana e viviam com
os africanos eram considerados ‘cafre’, o termo para classificar as pessoas que
se tinham degenerado, e eram considerados do ponto de vista religioso como
almas perdidas porque se submetiam à forma de estar do africano — aliás,
criou-se o termo ‘cafrealização’.”
Como estratégia, os portugueses
aproximaram-se dos fula, criaram exércitos de fula, de balanta, de outras
etnias, com o objectivo de acicatar as diferenças. Com o Centro de Estudos da
Guiné Portuguesa, criado em 1945, forneciam-se elementos ao poder político para
melhor compreender as dinâmicas étnicas. “O contrário do racismo é exactamente
isso, trazer à nossa convivência, viver com eles, permitir que tenham acesso à
escola, à saúde, que melhorem as condições de vida. Na Guiné-Bissau isso não
aconteceu: as poucas infra-estruturas só foram construídas porque havia
necessidade de dar vazão às questões da guerra.”
Apesar de tudo, o sistema dava oportunidade
de ascensão social a alguns guineenses. O pai de Leopoldo Amado, por exemplo,
era director dos correios, posição à qual chegou no final da carreira, “não sem
problemas pelo meio”, sendo “alvo de discriminação de todo o tipo”. A ideia era
o sistema colonial usar uma parte ínfima da população como intermediária entre
os seus interesses e as populações.
Depois apareceu uma literatura colonial
etnográfica para estudar a psique do negro, adianta o historiador. “O negro
praticava a gula, o pecado dos cristãos, logo era preciso civilizá-lo. O negro
é um ente que tem uma potência sexual acima da média, quase boçal, quase um
animal, que tem atitudes animalescas. Todas estas ideias foram reproduzidas
nesta literatura colonial. Reproduziu-se também a ideia de que o negro é um
irresponsável, propenso a bebedeira; no caso das mulheres, são lascivas, têm
propensão para promiscuidade sexual, vivem na degenerescência moral. A par de
tudo quanto era racismo, criava-se uma ideologia para poderem continuar com a
empresa da colonização.”
A teoria do luso-tropicalismo de
Gilberto Freyre (1900-1987) suportou a ideologia do Estado Novo sobre a
excepcionalidade portuguesa de estar nos trópicos, baseada na cordialidade,
miscigenação, capacidade de adaptação e assimilação. Tem, para Leopoldo Amado,
“algum substrato” porque “há uma maneira particular de ser português”: mas
“isso não isenta de maneira nenhuma” o “ser racista”. “Salazar e Marcelo
precisavam de uma teoria como a de Gilberto Freyre. A tese de Salazar era a de
que havia portugueses de outra cor, mas isto era para consumo externo, porque
entre os portugueses de outra cor existia o trabalho forçado, o sistema que
substituiu a escravatura.”
Estes mitos prejudicam ainda hoje a
relação entre portugueses e guineenses, afirma. Agora, anos depois, com o
distanciamento histórico que temos, é hora de o revelar. “Tenho uma relação
especial com Portugal e com os portugueses, mas isso não pode ofuscar-me ao
ponto de não admitir que o sistema colonial português tenha cometido
atrocidades ou tenha sido um sistema racista em todos os sentidos. A elite
académica continua a reproduzir a ideia de que há uma particularidade da
colonização portuguesa, que tiveram uma colonização mais branda, etc. Mesmo em
Portugal há a ideia de que é um país de brandos costumes. Brandos costumes para
quem?”
Dividir
para reinar
Quem for à Guiné-Bissau acabará por
conhecer Miguel de Barros. Director executivo de uma das mais antigas e
prestigiadas ONG, a Tiniguena, é o anfitrião de quem todos ouviram falar. Em 40
minutos dá-nos uma aula sobre a Guiné-Bissau de hoje e de ontem, explicando que
as transformações sociais de agora são marcadas pelas dinâmicas de segregação
que serviram a estrutura colonial.
A geração de Miguel de Barros (n. 1980)
é descendente de pais que não nasceram em Bissau mas em várias partes do país,
nota o sociólogo. Esses cruzamentos fazem com que as suas “identidades sejam
menos sectárias” e tenham um “maior nível de hibridismo” do que a geração
anterior. “O meu pai nasceu no Sul, de família já mista, a minha mãe nasceu no
Leste de uma família já mista com o cruzamento de um catolicismo e de
crioulização de matrizes de raiz africana e outra parte islamizada… portanto,
qual é a minha etnia? A minha etnia é a minha nacionalidade e a minha
nacionalidade é a guineense. Esse nível de pertença cada vez mais está a
contribuir para a superação criada desde a administração colonial. A presença
colonial foi um elemento decisivo: se por um lado cristalizou essa
diferenciação entre as diferentes manifestações etnoculturais, por outro
alertou para a consciência da integração dos que hoje fazem o mosaico
etnocultural da Guiné-Bissau.”
O sistema colonial trabalhou a divisão
étnica em vários momentos, explica o sociólogo. Num primeiro, durante a
instalação da administração colonial, houve a integração das etnias que
considerava mais próximas à sua cultura, uma classe média mista que teve acesso
à estrutura administrativa colonial.
Num segundo momento, mais crítico, usou
a diferenciação para instigar a desconfiança e a luta no seio do próprio
movimento de libertação “em função daqueles que eram cabo-verdianos, aqueles
que eram considerados crioulos ou detentores de alguma civilidade”, continua.
“Isto transportou-se com a liberalização política, onde os partidos exacerbaram
a condição da pertença étnica, regional, local para ganhar o seu espaço de
protagonismo na arena pública. Esse elemento fez com que a questão étnica, que
já estava a ser superada, voltasse com carga muito mais forte e mais perigosa.
Há uma designação daqueles que são da praça e daqueles que são da tabanca, do
campo; essa dicotomia foi algo implementado durante a vigência colonial, mas
quando o partido libertador ascendeu ao poder não conseguiu superar essa
dicotomia.”
Com a independência, o país foi
confrontado com uma necessidade, sublinha: como conseguir afirmar a ideia de um
novo Estado sem a memória da presença colonial?
Combater
ao lado dos portugueses
Durante a sua infância em Bissau,
Deolinda Mendes, hoje com 57 anos, conviveu com portugueses. O pai era
funcionário público, a mãe doméstica, ambos assimilados; nem um nem outro
conheceram o regime do indigenato, e essa era “a questão fundamental”: “Costumo
dizer que indígenas somos todos, depende se era o avô ou o pai”, comenta na
sala de sua casa, em Bissau.
Sentamo-nos no sofá ao lado de uma mesa
redonda onde estão espalhadas fotografias da família. Da cozinha vem o cheiro
do almoço a abrir o apetite. Podíamos, de facto, estar numa casa portuguesa. Na
verdade, Deolinda Mendes passou muitos anos fora: viveu nos Estados Unidos,
onde estudou Sociologia, viveu também em Portugal e regressou definitivamente à
Guiné-Bissau há nove anos. “Os valores do colono eram os ocidentais e quem vai
socializar a criança vai socializar dentro desses valores. Lembro-me de que o
meu pai nunca falou crioulo, para ele era o expoente máximo. Agora acho que
isso era o extremo da assimilação.”
Só mais tarde é que, olhando para trás,
percebeu que tinha sido privilegiada — na época interagia com iguais, as turmas
da escola eram normalmente compostas por filhos de funcionários públicos,
alguns filhos de portugueses, outros assimilados. “Vimos de fora a
discriminação. Havia diferença de tratamento, claro. Mas entre vizinhos, entre
os filhos dos colegas de trabalho, não havia.”
Deolinda Mendes sabe, hoje, que na sua
classe a discriminação acontecia em termos de promoções, mas não existia uma
discriminação aberta. “Os nossos pais foram claramente discriminados.” Depois
eram induzidos a ter a atitude do “‘és melhor, então também não deixes os teus
filhos se misturarem com o pior’” — os indígenas. Havia pais que mandavam
educar os filhos com famílias de assimilados para ensinar o que “era suposto
ser o normal, o melhor, que era ser ocidental — imitar na maneira de ser e de
estar os valores dos portugueses”. Mas o pai de Deolinda tinha claramente a
noção de uma injustiça: não ter “desenvolvido o seu potencial por ser negro”.
Olhando para trás, identifica um regime
colonial racista na Guiné-Bissau, algo “encoberto”, em que se filtrava o acesso
às promoções, por exemplo. “A justiça não era cega. Se houvesse injustiça, o
povo não se podia queixar. Havia castigos, muitos castigos, muita prepotência.
Havia trabalho de escravatura; lembro-me em pequenina ver isso. Moía-me por
dentro.” Isso deixou marcas em muitas pessoas, visíveis ainda hoje.
Fundado em 1956 com o objectivo de
autonomizar a Guiné-Bissau e Cabo Verde do império colonial português, o PAIGC
iniciou um processo de luta pela independência. Enquanto se trava uma guerra
entre os dois lados, o exército português tenta captar guineenses para o seu
lado.
O pai da procuradora Manuela Lopes
Mendes, investigadora na organização não-governamental Voz di Povo, foi tropa
colonial, combateu ao lado dos portugueses. “A família aceitou, não houve
retaliação; mas os que estiveram ao lado dos portugueses eram considerados
traidores. Nunca questionei o meu pai por isso, nem me indignou porque foram
tantos os casos”, comenta.
Manuela Lopes tem hoje a imagem do
colonialismo como “o todo-poderoso”, que “chega junto de um povo, demonstra
superioridade, tenta impor os seus valores e cultura — é a imagem de um
dominador”. “A Guiné-Bissau era uma província ultramarina portuguesa, até hoje
temos leis portuguesas extensíveis” ao país.
Duvida de que o pai tenha tido uma visão
negativa do colonialismo, ao contrário dela, que vê traços de racismo — “o
tratamento não era igualitário”, define. “O racismo também pode ser explicado
em termos de aspectos económicos e culturais; não é igual a mim, é um povo
inferior que tem uma cultura diferente.”
O pai de Manuela Lopes não foi, de
longe, um caso raro. Idrissa Djalo, líder do Partido de Unidade Nacional, é
filho de um homem que combateu contra os portugueses, mas neto de outro que
fazia parte do sistema colonial — e que viu todos os seus filhos lutarem pela
independência.
Esse avô foi dos que encontraram no
sistema a realização pessoal, como muitos guineenses na altura. Era um homem
lúcido, descreve hoje o neto, “sabia que o futuro era a independência”. “A mim
dizia: o meu mundo é o mundo colonial, o mundo dos meus filhos é o das
independências mas não tenho a certeza de que o mundo deles vai ser melhor.
Falámos muito daqueles que estavam do lado dos portugueses e sofreram — os fula
e manjaco. As pessoas eram estigmatizadas como traidores da pátria. Porque a
guerra foi também interna, entre uma parte da população ao lado do sistema colonial
e outra ao lado do PAIGC.”
Com 53 anos, Idrissa Djalo lembra hoje
que o avô foi “figura importante da comunidade tribal dos fulas porque era dos
poucos que tinham educação e podiam ajudar a comunidade”. Foi usado pela
administração colonial, como tantos, para servir de interface entre a
administração colonial e o seu grupo étnico. “Os balantas estavam, em grande
parte, ao lado do PAIGC. Spínola apostava num outro grupo étnico importante que
eram os fula e manjaco para criar um contrapoder.” Isso explica a abertura para
que os fula tivessem acesso à educação, completa. O avô foi dos primeiros a
levar membros da comunidade muçulmana a Meca com apoio da administração
colonial portuguesa.
Ser
superior, evangelizar
Nascido em 1978, António Spencer Embaló
acha difícil alguém da sua geração ser pró-colonialismo, mas na geração do pai
isso, sim, acontece. O PAIGC fez promessas que não cumpriu, o país anda
politicamente às avessas. O pai diz que é português e fala com saudosismo desse
tempo em que havia uma certa disciplina. “São frutos daquela época: nasceram
portugueses. Pode dizer-se que eram portugueses de segunda, terceira ou de
quinta, mas eram portugueses.”
Na família havia quem fosse “muito
pró-PAIGC” e quem fosse próximo dos portugueses, mas olha para o colonialismo
como “algo preconceituoso e etnocêntrico.” Diz: “Tem por detrás uma ideia de
superioridade racial. Em determinado momento, [essa ideia] foi absolutamente
vincada: ‘Somos superiores e queremos mostrar como é que se faz, como é que se
veste, como é que se come, etc.’”
Na sala de sua casa no Bairro da Ajuda
está a figura de Amílcar Cabral em desenho. Tem também uma caricatura dele
próprio, feita por um grupo de jovens em Portugal. Cita o líder africano, que
dizia que “o problema está no colono que nos retira liberdade cultural” e por
isso defendia que “a nossa luta era fundamentalmente uma luta cultural”, pela
identidade.
Spencer não tem dúvidas em classificar o
regime colonial como racista: “Se assim não fosse, não vejo porque privilegiar
determinada camada para se instruir em detrimento de outra camada. Por que se
criou um liceu em Cabo Verde e não na Guiné? Em Cabo Verde houve muita mistura,
muitos filhos de europeus e de africanos. Eram mais próximos porque eram
‘nossos filhos’. Era mais fácil lidar com a ideia de instruir, provavelmente a
ideia de revolta não era tão forte, mas essa era uma divisão com base em quê?
Os ideais do colonialismo são iguais ao do nazismo, é uma ideia de
superioridade de raça: somos superiores, por isso vamos evangelizar.”
Paternalismo
O regime colonial era “profundamente
racista”: disso Dautarin da Costa não tem dúvida, “porque partiu de uma
premissa óbvia de superioridade dos europeus, dos brancos em relação aos
africanos, ao preto”, continua. “Para haver dominação, é preciso uma condição
fundamental, o dominado tem de acreditar que o dominador é realmente mais forte
e o dominado tem de acreditar que é inferior ao dominador. É muito mais difícil
ganhar independência desse pensamento do que conquistar a independência ou a
liberdade. Mudar o esquema mental é muito mais forte porque o dominado é o
reprodutor da sua própria condição e o dominador domina tanto que já nem
precisa de estar muito presente no processo de dominação, aquilo já está no
esquema mental do dominado.”
A ideia de que o colonialismo português
foi mais brando é veiculada desde o ensino básico. Isso é “uma falácia”. “Como
qualquer outro sistema, o colonialismo português sub-humanizou, subalternizou e
brutalizou pessoas em nome de uma ideia de superioridade; independentemente das
estratégias usadas, é mau. E é mau de tal maneira que tem influências nos dias
de hoje no nosso processo de desenvolvimento.”
Se é verdade que existiu interacção com
os indígenas, e mestiçagem por causa disso, isso não significa que o regime
tenha sido menos racista, defende Nelvina Barreto. Houve, sim, a predominância
de um tom paternalista, considera, “no sentido de que ‘estes coitadinhos não
sabem pensar, não têm educação, não têm nada. Enquanto o colono francês e
inglês tinha uma percepção diferente: vamos dar condições, escolas e etc., mas
eles que fiquem confinados, sem haver interacção”.
Portugal tem uma visão superficial e
fragmentada da sua história colonial e é necessário perceber que teve
políticas, intervenções e vivências diferentes nas suas diferentes colónias. “A
tendência é para se pensar que foi igual porque se fica na superfície. A
colonização portuguesa não foi igual em todas as suas colónias. É isto que é
necessário que Portugal esteja disposto a compreender melhor.”
O racismo português foi violento,
conclui, por seu lado, Augusta Henriques, mas “medir intensidades de violência
é uma calculadora que não existe”, afirma. “Sou fruto disso: o meu avô era
português e um grande colono. Levei um tempo a fazer o trabalho comigo mesma.
Tenho poder suficiente para exercer essa opressão. Portanto, é um desafio para
cada um de nós. O que nos dá o direito de oprimir o outro?” Com o Publico
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