segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Uma nova revolução cultural

Crónica de Frei Bento Domingues, no PÚBLICO

1. O Ano litúrgico terminou com a carta apostólica Misericórdia et Misera [1], do Papa Francisco, que marca o encerramento do Ano Jubilar da Misericórdia, mas não da misericórdia. Aproveitou para afirmar: “Quero reiterar, com todas as minhas forças, que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente, mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe nenhum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai. (...) Para que não exista qualquer obstáculo entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora, a todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver todas as pessoas que tenham incorrido no pecado do aborto.”

É normal que os grandes meios de comunicação tenham realçado esta coroa da misericórdia. Mas Bergoglio procura integrá-la numa perspectiva mais envolvente, destacando acontecimentos, mensagens e figuras que são a própria respiração dos Evangelhos. Se ficasse por aí, continuávamos a olhar para a beleza de há dois mil anos: uma galeria da misericórdia do passado. Se ficássemos, apenas, com as expressões devocionais e sacramentais do Ano Jubilar, não saíamos dos espaços e dos ritmos do culto católico. A misericórdia não se exerce apenas, nem sobretudo nas missas, em resposta à carinhosa exortação saudai-vos na paz de Cristo!

2. Nesta carta, Bergoglio assume todas as dimensões do que tem sido a sua intervenção desde que foi eleito Papa, a começar pelo salto que é preciso dar desde a prática de Jesus até aos nossos dias: “Ainda hoje, populações inteiras padecem de fome e sede. Imagens de crianças que não têm nada para se alimentar percorrem o mundo. Multidões de pessoas continuam a emigrar à procura de alimento, trabalho, casa e paz. As doenças são um permanente motivo de dor e aflição que requerem ajuda, consolação e apoio. Muitas vezes, os estabelecimentos prisionais, além da pena de privação da liberdade, devido às suas condições, são fonte de desumanidade. O analfabetismo ainda é enorme. Impede as crianças de se formarem, expondo-as a novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana. Por isso, as obras de misericórdia constituem um evidente valor social. Impelem a arregaçar as mangas para restituir a dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs.”

Somos, por isso, chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos. As obras de misericórdia são “artesanais”: nenhuma delas é cópia da outra, são a possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural.

Pelos vistos, o Papa continua fiel às exigências dos seus três tês: terra, trabalho e tecto. São as condições mínimas de respeito pela dignidade das pessoas, mas não só. A sua criatividade simbólica encontra sempre gestos realistas para abrir o futuro. Como ele próprio diz, à luz do “Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente”, celebrado quando já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e santuários do mundo, intuiu que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve celebrar, em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres.

3. Tudo isso e muito mais, que não cabe nesta crónica, foi escrito na Solenidade de um Rei, coroado de espinhos e cruxificado, imagem do mundo, no Ano do Senhor de 2016, quarto do seu pontificado.

O profeta Isaías, a grande figura profética do Advento, lançou um novo desafio ao Papa Francisco: convocar a Igreja, as Igrejas, as outras religiões, os sem religião, os agnósticos e os ateus para acabar com as indústrias da guerra. Diz o profeta: converterão as espadas em relhas de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se há-de preparar para a guerra [2].

Nada disto acontecerá só porque se sonhou, nem por qualquer decreto das Nações Unidas. Mas quando se deixar de sonhar, quando se deixar de responsabilizar as Nações Unidas e cada um dos países do mundo, quando se deixar de apelar à conversão das pessoas, de cada um de nós, por se julgar que tudo isto são utopias, é porque já desistimos da humanidade, dos seus pequenos e grandes passos e os cristãos ter-se-ão perdido de Cristo, nossa Paz, esperança do mundo.

Começou hoje o Advento, recomeçaram os trabalhos do futuro.

[1] As citações e as paráfrases deste documento são da minha escolha e responsabilidade

[2] Is 2, 1-5

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