Crónica de Anselmo Borges, no Diário de Notícias
1 - Para o Papa Francisco, a definição
de Deus é misericórdia, mas sem uma concepção delicodoce, pois a misericórdia é
exigente. Avisa que é preciso ser coerente; não se pode ter uma vida dupla:
"Sou muito católico, vou sempre à missa, mas não pago o justo aos meus
funcionários, exploro as pessoas, faço jogo sujo nos negócios... É daí que vem
ouvirmos tantas vezes: "ser católico como aquele?, é melhor ser
ateu"."
Na frente do seu combate está a
idolatria do dinheiro, como aconteceu com Jesus: o dinheiro transformado em
ídolo absoluto é incompatível com a fé no Deus da Vida: "Não podeis servir
a Deus e ao dinheiro." Por isso, diz "não" a uma economia da
exclusão e da iniquidade. "Essa economia mata"; vivemos "na
ditadura de uma economia sem rosto e sem objectivos verdadeiramente
humanos"; "a cultura do bem-estar anestesia--nos"; acusado de
comunista, responde: "esta mensagem não é marxismo, mas Evangelho
puro."
2 - Foi assim que, continuando com a
entrevista ao El País, respondeu: "Eu não estou a fazer nenhuma revolução.
Estou apenas a tentar que o Evangelho prossiga, vá por diante. Eu procuro, não
sei se consigo, fazer o que o Evangelho manda. Sou pecador e nem sempre
consigo, mas é isso que procuro. É curioso: a história da Igreja não a levaram
por diante os teólogos, os padres, os bispos... sim, em parte sim, mas os
verdadeiros protagonistas da história da Igreja são os santos, isto é, aqueles
que se sacrificaram para que o Evangelho se tornasse concreto: as pessoas que
vivem do seu trabalho com dignidade, que criam os filhos, enterram os seus mortos,
cuidam dos avós, essa é a nossa classe média, os enfermeiros, os cuidadores. O
ponto fixo é o concreto. Do ponto de vista económico, hoje a classe média tende
a desaparecer, cada vez mais, e pode-se correr o risco de refugiar-se nas
cavernas ideológicas. Mas esta é a "classe média de santidade": o
pai, a mãe, que celebram a sua família, com os seus pecados e as suas virtudes,
o avô, a avó. A família."
Como deve ser a Igreja? "Que não
deixe de ser próxima. Que procure ser continuamente próxima das pessoas. Uma
Igreja que não é próxima pode ser uma boa ONG, mas não é Igreja."
Preocupações? "A minha preocupação
é a guerra. Estamos na Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E, ultimamente,
já se fala de uma possível guerra nuclear, como se fosse um jogo de cartas. É
isso que mais me preocupa. E preocupa-me a desproporção económica: que um
pequeno grupo tenha mais de 80% da riqueza, que no centro do sistema económico
esteja o deus dinheiro e não o homem e a mulher, o humano. Então cria-se a
cultura do descarte."
Sobre a corrupção. "É um grande
pecado. Mas julgo que não devemos atribuir-nos o exclusivo. A corrupção existiu
sempre. Sempre. Aqui. Se se ler a história dos papas, deparamos com cada
escândalo!... Tenho vários exemplos de países próximos onde houve corrupção na
história, mas fico-me pelos meus. Basta pensar no papa Alexandre VI, e dona
Lucrécia..." "Na Cúria, há gente corrupta. Mas muitos santos
também."
Quanto aos refugiados, os governos estão
à altura? "Cada um faz o que pode e o que quer. É muito difícil fazer um
juízo. Mas, claro, que o Mediterrâneo se tenha tornado um cemitério tem de nos
fazer pensar."
É um Papa incómodo? "Não, não. Eu
julgo que, atendendo aos meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O
mártir da incompreensão foi Paulo VI. Eu não me sinto incompreendido. Sinto-me
acompanhado, e acompanhado por todo o tipo de gente, jovens, velhos... Sim,
alguns por aí não estão de acordo, e têm esse direito, porque, se eu me
sentisse mal por alguém não estar de acordo, haveria na minha atitude um gérmen
de ditador. Têm direito a não estar de acordo, direito a pensar que o caminho é
perigoso, que pode dar maus resultados, que... têm direito. Mas que dialoguem
sempre, que não atirem a pedra e escondam a mão. Isso não. A isso ninguém tem direito.
Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência."
Sobre a diplomacia do Vaticano. "Eu
peço ao Senhor a graça de não tomar nenhuma medida por causa da imagem. Que
seja por honestidade, por serviço, esses são os critérios. A diplomacia
vaticana tem que ser mediadora, não intermediária. Sim, ao longo da história, a
diplomacia vaticana fez manobras ou encontros e encheu o bolso: aí cometeu um
pecado gravíssimo. O mediador faz pontes que não são para ele, mas para que os
outros caminhem. E não cobra portagem. Fez a ponte e vai-se. Para mim, essa
deve ser a imagem da diplomacia vaticana: mediadores e não intermediários.
Construtores de pontes."
Que se pede e exige na política?
"Diálogo. É o conselho que dou a qualquer país. Por favor, diálogo. Hoje,
com o desenvolvimento que há, não se pode conceber uma política sem
diálogo."
Sobre o tráfico de mulheres. "Há em
toda a parte. Na Europa... A situação dessas mulheres é de terror. Na casa que
visitei, havia uma a quem tinham cortado uma orelha..." Na Igreja, é
preciso ir mais longe quanto ao papel das mulheres.
"A teologia da libertação foi uma
coisa positiva na América Latina. Foi condenada a parte que optou pela análise
marxista da realidade." E advertiu para os perigos dos movimentos populistas.
Vai à China? "Quando me convidarem.
São eles que sabem."
Nos seus consistórios, criou cardeais
dos cinco continentes. "Como gostaria que fosse o conclave que elegerá o
seu sucessor?" Resposta: "Que seja católico. Um conclave católico que
escolha o meu sucessor." Vai vê-lo? "Isso não sei. Que Deus decida.
Quando sentir que não posso mais, foi o meu mestre, o papa Bento XVI, que me
ensinou como devo fazer. E se Deus me levar antes, vê-lo-ei do outro lado.
Espero que não seja a partir do inferno... Mas que seja um conclave
católico."
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