
E por que apenas reconhecemos a beleza negra numa perspectiva
miscigenatória?
“Tem mulher negra mais bonita que ela”, disseram muitos sobre Lupita
Nyong’o quando eleita pela revista People como a maior beleza feminina do mundo
(Ver aqui»). E neste texto pretendo situar esse discurso em duas perspectivas: a
primeira, histórica e cultural; a segunda, midiática. No filme pelo qual foi
indicada para o Oscar de melhor atriz coadjuvante, Lupita interpreta a escrava
Patsey – um “objeto de desejo” para seu feitor Epps, fanático religioso que
entende o escravagismo como um dever divino e a castiga brutalmente por não
saber controlar o que sente por ela. Numa das cenas, Patsey tem as suas costas
nuas destroçadas com um chicote, enquanto os demais escravos prosseguem em sua
rotina de trabalho. Afinal, é um dia como qualquer outro.
Todos os episódios do filme são narrados na perspectiva autobiográfica de
Solomon Northup, trazendo para o público a história de um homem negro nascido
em “ventre livre” no século 19 que acaba numa armadilha, sendo comprado como
escravo para trabalhar no sistema de plantation, no sul estadunidense. A
narrativa é desesperadora não só pela sucessão das opressões e violências
vividas pelo negro e pela negra enquanto mercadorias, mas especialmente por
toda a apatia dos que se diziam contrários a essa vida restrita pelos grilhões
e pela forma como o filme trabalha esses silêncios em sua dimensão técnica e
estética.
Mas preciso retornar ao ponto inicial do texto: Lupita é uma atriz de
naturalidade queniana nascida na Cidade do México. Foi não só laureada pelo
Oscar de melhor atriz, mas também aplaudida por milhões de telespectadores em
todo o mundo – muitos deles negros da África Oriental. Há alguns dias, quando
foi designada como a maior beleza do mundo pela revista People, houve uma
torrente de comentários na rede de microbloges do Twitter, por exemplo, sendo
feitos a respeito de Lupita. E vários deles foram escritos por mulheres
quenianas. Na realidade do país, onde certamente existem padrões e ideais de
beleza, Lupita é vista como uma das mais bonitas porque a simetria nos seus
traços é assombrosa – com uma estrutura proporcional, maçãs saltadas e
supercílios delicados. E sua pele tem sido objeto de admiração no mundo não
apenas pela cor, mas porque, para quem entende um mínimo de maquiagem, é sabido
que sua rotina é quase zero. A pele é lisa. Não tem manchas. E além de tudo
isso Lupita é magra, tendo quadris e seios lindos como elementos fundamentais
para uma beleza feminina. É por isso que na realidade do Quênia ela é
considerada uma das negras mais bonitas que existem, mais além do próprio fato
de ser, também, uma mulher queniana.
Lógica
ocidental
Pensando esses dados em uma perspectiva de gênero, por exemplo, parece
justo que a mulher do Quênia tenha que reunir esse tanto de aspectos para ser
considerada um referencial? Não parece um tanto difícil e excludente? Mas
gostaria de ir um pouco mais adiante: mesmo no México, que é um lugar de
referência na cultura latino-americana em função de seus processos
miscigenatórios e suas epistemologias milenares, Lupita ainda assim é lida como
WOC – no inglês, woman of color. E seria assim entendida, também, no Brasil ou
nos EUA, se tivesse nascido em nosso continente. Mas entre tantas negras
brasileiras, por exemplo, existem aquelas que tendemos a considerar mais
bonitas que a própria Lupita.
Em discussão recente, um colega disse que a sua namorada negra é mais bela
que a atriz. Já não entro tanto no aspecto de gênero extremamente problemático
do discurso, que é o de fazer acepções entre belezas femininas, porque de outro
lado penso que é saudável haver homens que amem suas namoradas e olhem para
elas com ternura, sem objetificá-las como tantos outros fazem no país. E nem é
preciso ser brasileiro para que se perceba a exotificação sexual dessas
mulheres (ver aqui»), tanto nos meios de comunicação brasileiros quanto no
próprio dia-a-dia da opressão.
Para mim está claro: não se entende que o título da People, se só fosse
dado para mulheres como Halle Berry, estaria reconhecendo uma beleza negra – o
que já seria um passo muito grande no âmbito das relações étnico-raciais – com
base em uma realidade miscigenada. E os homens não entendem que as suas
namoradas, mesmo sendo bonitas, pertencem ainda a uma realidade cultural
miscigenada. Não é por acaso que penso nessa problemática pela sua
contextualização cultural e histórica. Ela vai muito além da cor de Lupita
enquanto mulher negra. É seu rosto o que mais incomoda. Nesse sentido, atribuir
o título para negras de nossa realidade cultural exclui do cenário todo o
âmbito oriental africano, por exemplo, porque lá não vamos encontrar mulheres
negras como as que são consideradas as mais bonitas do mundo na lógica
ocidental: o que se tem é uma enorme quantidade de mulheres como Lupita, ainda
que em uma diversidade estética, histórica e profissional.
Conhecer o
outro
É possível entendermos nessa perspectiva que proponho no texto o quanto a
comparação de Nyong’o com mulheres negras tão distintas implica uma
problemática ética? É possível entendermos como o prêmio da People vai bem mais
longe, no campo da beleza, apresentando mulheres negras como Lupita e tantas
outras que, normalmente, só veríamos em editoriais de moda nos quais surgem
associadas a savanas, jungle styles, maquiagens excêntricas e elementos do
tipo? É possível vermos como a revista People, dando esse título, está propondo
uma nova beleza – em vez de simplesmente reconhecer uma beleza negra na
perspectiva daquilo que convencionamos como bonito?
Faço essas perguntas por entender que os nossos padrões e ideais de beleza
estão excluindo da cena quase todo o continente africano – e não me levem a
falar da mulher aborígene na Oceania! – e ainda nos fazem acreditar que não se
discute o gosto. Não se discute de fato? Porque mesmo havendo mulheres negras
bonitas dentro desses gostos, a partir do ponto em que apagam mulheres
quenianas porque não conseguem englobá-las, esses gostos são ainda excludentes,
mesmo que um pouco menos em termos étnicos. Por isso escrevi o texto tentando
pensar a proposta de beleza da revista: porque não achamos muitas quenianas
mais bonitas que Lupita com esse padrão de beleza fundamentado no
paradigma miscigenatório como único caminho paraabeleza negra. Enquanto acharmos
que racismo se dá apenas pelo discurso e pela imagem em ofensiva direta é
evidente que não entenderemos muito sobre o que se vive em nossa cultura.
Racismo é prática social pervasiva. Está diluído por entre os sentidos. Não
implica apenas em expressões verbais e físicas de preconceitos – como diz uma
colega de debate, Jussara Santos. Os reflexos vão muito além, fazendo-se
presentes inclusive em nossos ideais estéticos.
Muitas críticas foram feitas sobre o fato de se ter usado a beleza de
Lupita como plataforma de entrada para a discussão. Mas numa cultura em que já
não discutimos as questões políticas se não for através de imagens, é essencial
propor pela própria imagem essa nova beleza e, mais que isso, uma discussão
sobre a problemática ética e política da beleza negra nas sociedades
contemporâneas. É tão sensível a necessidade das imagens que muitos já apostam
na ideia de uma cultura política pós-discursiva, por exemplo, em que já não se
faz a política se não houver também a performance, especialmente dentro do
campo midiático. E se isso for o necessário para que conheçamos o outro, que se
faça dessa forma. A própria atriz queniana entendeu o significado disso e
correu pro abraço: confesso que para mim isso foi muito bonito, pois ela é
linda, talentosa e merecedora do título, além de ser muito representativa em
termos políticos.
O negro
tokenizado
Estou escrevendo o presente texto em primeira pessoa, mas, apesar disso,
ele não reflete exatamente a minha opinião. Na verdade é uma visualização de
como o processo de exclusão pelos gostos tem se dado na nossa cara ao longo de
toda a história. Isso está nos livros. Está nas ciências sociais e na
literatura. Desde feministas como Audre Lorde tem sido explicado como operam as
construções sociais sobre a beleza da mulher negra na sociedade ocidental.
Fechar-se para o entendimento urgente dessa realidade histórica significa negar
que as opiniões públicas contrárias a Lupita Nyong’o em todo o ocidente existem
porque, em muita medida, o paradigma miscigenatório nos trouxe isso. E nessa
perspectiva, admitir a formação histórico-cultural dos nossos ideais e padrões
de beleza sem, no entanto, pensar em Lupita como uma mulher negra atraente não
é pecado, afinal de contas o gosto já foi construído. Mas admitir essa sua
beleza é um passo importante, especialmente porque também devemos desassociar
esse reconhecimento daquilo que só pode ser considerado bonito se houver uma
perspectiva sexual envolvida, ou seja, de um processo no qual a beleza negra só
pode ser percebida se estiver prioritariamente ligada à possibilidade do seu
consumo. Já me fiz entender nesse aspecto?
Admitir isso tudo não significa negar o direito ao gosto que cada um tem e
pode exercer livremente, mas saber que esse paradigma miscigenatório ainda está
por aí e que deixar a discussão de lado significa, também, sustentar um sistema
de exclusão étnico-racial através dos gostos midiatizados. Por isso, criticar o
gosto pelo gosto não é trajeto para lugar algum: precisamos entender, em
verdade, quais agendas atendem e o que eles podem esconder. Lançando agora um
olhar sobre a foto que encabeça o presente texto, a discussão que eu gostaria
de propor aos leitores – para terminar – é um vídeo publicado pelo vlogueiro
Felipe Neto na rede de canais do YouTube. Todas as considerações que faço no
texto são válidas para entendermos o vídeo, mas preciso atentar para o momento
memorável em que Neto chama uma trabalhadora doméstica negra para dar sua
opinião contrária sobre Lupita. Essa liberdade de expressão deve ser garantida
a todo custo, mas o cenário no qual isso se dá parece muito mais sério do que o
vídeo em si faz pensarmos a partir do ponto em que um homem branco convoca a
palavra de uma pessoa negra pra confirmar o seu discurso. Isso significa tratar
o sujeito como token ou, melhor dizendo, uma pecinha estratégica do jogo em seu
todo. Esse é o papel do negro tokenizado pelos brancos: carimbar tudo que eles
já disseram sem entrar na roda e discutir também. É um exemplo concreto de como
contextualizamos pessoas despolitizadas no cenário político brasileiro e as
desautorizamos do seu estatuto de personagens concretas daquilo que elas mesmas
estão vivendo desde o nascimento. Nada que não tenhamos vivido na trajetória histórica
do país desde a tal abolição da escravatura.
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