No SNPC
O papa considera que «as
pessoas parecem já não acreditar num futuro feliz nem confiam cegamente num
amanhã melhor a partir das condições atuais do mundo e das capacidades
técnicas», pelo que se impõe a «urgência de avançar numa corajosa revolução
cultural».
A convicção de Francisco
é manifestada na sua segunda encíclica "Laudato si'" [Louvado sejas]
- Sobre o cuidado da casa comum", apresentada no passado 18 de Junho no Vaticano, que também
alerta para a perda irreversível que constitui o desaparecimento de uma
cultura.
«A humanidade mudou
profundamente, e o avolumar-se de constantes novidades consagra uma fugacidade
que nos arrasta à superfície numa única direção. Torna-se difícil parar para
recuperarmos a profundidade da vida. Se a arquitetura reflete o espírito duma
época, as megaestruturas e as casas em série expressam o espírito da técnica
globalizada, onde a permanente novidade dos produtos se une a um tédio
enfadonho», escreve o papa.
A carta sustenta que se
tornou «anticultural a escolha dum estilo de vida cujos objetivos possam ser,
pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder
globalizante e massificador».
Perante este quadro,
Francisco apela a uma reação de inconformismo: «Não nos resignemos a isto nem
renunciemos a perguntar-nos pelos fins e o sentido de tudo. Caso contrário,
apenas legitimaremos o estado de facto e precisaremos de mais sucedâneos para
suportar o vazio».
«Ninguém quer o regresso
à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade
doutra forma, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo
recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento
megalómano», acentua.
Uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, pois não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à cultura atual
O texto cita a encíclica
"Caritas in veritate", de Bento XVI, para quem «a degradação da natureza
está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana».
«Se a política não é
capaz de romper uma lógica perversa e perde-se também em discursos
inconsistentes, continuaremos sem enfrentar os grandes problemas da humanidade.
Uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, pois
não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser
em discussão a lógica subjacente à cultura atual. Uma política sã deveria ser
capaz de assumir este desafio», assinala.
O documento dedica
quatro números à «ecologia cultural», que vinca a necessidade de proteger a
herança da cultura, não só em termos materiais, mas enquanto dinamismo atuante
nas sociedades, ao mesmo tempo que critica a homogeneização, veiculada pela
economia globalizada. São esses excertos que transcrevemos seguidamente.
Ecologia cultural
Papa Francisco
In "Laudato
si'"
A par do património
natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e
cultural. Faz parte da identidade comum de um lugar, servindo de base para
construir uma cidade habitável. Não se trata de destruir e criar novas cidades
hipoteticamente mais ecológicas, onde nem sempre resulta desejável viver. É
preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar,
salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o
cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais
diretamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando se analisam
questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar a linguagem
técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como
os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e
participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser
humano com o meio ambiente. (n. 143)
É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo
A visão consumista do
ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a
homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro
da humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades através de
normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a
complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação ativa dos
habitantes. Os novos processos em gestação nem sempre se podem integrar dentro
de modelos estabelecidos do exterior, mas hão de ser provenientes da própria
cultura local. Assim como a vida e o mundo são dinâmicos, assim também o
cuidado do mundo deve ser flexível e dinâmico. As soluções meramente técnicas
correm o risco de tomar em consideração sintomas que não correspondem às
problemáticas mais profundas. É preciso assumir a perspetiva dos direitos dos
povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento
dum grupo social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural e
requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir
da sua própria cultura. Nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode
impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de
cada grupo humano. (n. 144)
A visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade
Muitas formas de intensa
exploração e degradação do meio ambiente podem esgotar não só os meios locais
de subsistência, mas também os recursos sociais que consentiram um modo de viver
que sustentou, durante longo tempo, uma identidade cultural e um sentido da
existência e da convivência social. O desaparecimento duma cultura pode ser
tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A
imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser
tão nocivo como a alteração dos ecossistemas. (n. 145)
Neste sentido, é
indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as
suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem
tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com
grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não
é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam,
um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua
identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são
quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões
para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e
agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura.
(n. 146)
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