Para mim, esse acórdão do Supremo Tribunal da Justiça está completo, não carece de mais nada, não precisa de mais aditamentos. De maneira que, tentar arrastar mais ainda um processo judicial esgotado, parece-me ser algo exagerado e contraproducente, talvez mesmo politicamente perigoso. O Estado, do meu ponto de vista, precisa de se “renormalizar” no funcionamento das suas instituições, sem mais demoras, refutando, ao mesmo tempo, a tese das chamadas “eleições gerais”.
Como
comenta o desfecho judicial produzido pelo último acórdão do Supremo Tribunal
da Justiça?
Para quem – como eu – não é jurista nem
pretende sê-lo, e que nem sequer defendeu uma solução judicial para a crise
político-partidária que a expulsão de 15 deputados veio agravar – o paradigma
que o Supremo Tribunal da Justiça acaba de fixar, pelo seu acórdão n° 03/2016,
salvo melhor opinião, é este: não se pode decretar perda de mandato de qualquer
deputado por causa do voto ou da opinião que (o deputado) tiver expressado;
nenhum plenário o pode fazer – nem o da ANP, nem o plenário de qualquer outro
órgão, incluído o plenário do próprio Supremo Tribunal da Justiça – a menos que
(um tal plenário) resolvesse pontapear a Constituição da República da Guiné-Bissau.
Certo? Parece que sim. (Não se trata de a Comissão Permanente ter ou não ter
competência para isso. O certo – se bem entendi -, é que nenhum órgão tem uma
tal competência). Em face disso, todas as outras questões, ainda que legítimas
– prováveis questões legítimas que estão ainda em aberto -, não deixam de ser
laterais, secundárias, subordinadas diante do paradigma constitucional agora
reafirmado. É assim que eu vejo as coisas. Aliás, é caso para perguntar: que
seria de uma ordem politica em que o parlamento funcionasse com base não tanto
na (nossa) Constituição do Estado de Direito Democrático mas sob o comando de directivas
partidárias? Tal deriva – se vingasse – teria representado um regressar, à
força, ao velho artigo 4° que consagrava o “PAIGC como força política dirigente
da sociedade e do Estado” – um preceito constitucionalizado no passado e que, a
meu ver, fez todo o sentido historicamente (isto é, valeu ontem), mas que actualmente
(isto é, nos dias de hoje), mesmo na sua forma disfarçada, é completamente
inaceitável. É que a nossa Constituição já não é uma constituição
partidocrática. De tal maneira que entre uma determinação interna (estatutária)
sobre militantes (de um partido) e uma determinação externa (constitucional)
sobre Deputados (da Assembleia Nacional Popular) existe mais do que uma mera
linha ou mera relação de continuidade. Expulsar do PAIGC é uma coisa; expulsar
do parlamento é outra coisa muito diferente.
Ergue-se agora com elegância e com
gravidade um importante desafio ético e que é intelectualmente estimulante: de
saber se é justo que o PAIGC dê menos garantias de liberdade aos seus
militantes do que as garantias de liberdade que a Constituição dá aos
deputados? Este desafio ético pode ser reformulado da seguinte maneira: o PAIGC
como partido da libertação (nacional, colectiva) deve ou não deve assumir-se
como partido da liberdade (individual, de cada militante)? Eis a questão: vamos
ter de lutar pela liberdade (dos militantes do PAIGC) empunhando a bandeira da
Declaração Universal dos Direitos do Homem tal como lutamos ontem pela
libertação nacional empunhando a bandeira da Carta das Nações Unidas? A questão
está de pé.
Quer
dizer que a Comissão Permanente (CP) da Assembleia Nacional Popular (ANP) deu
um “tiro no próprio pé”?
Sem dúvida, na medida em que, pela
deliberação que tomou, acabou por atingir a dignidade da ANP e dos deputados,
precisamente coisas que a CP deveria ter sabido defender com muita firmeza, e
não soube. A Nona Legislatura ficou manchada por causa disso. Enfim, são coisas
para esquecer, mas, primeiro, temos de aprender com os erros, temos de saber
tirar as lições dos erros que cometemos, sob pena de os voltar a cometer. Por
isso mesmo, quero chamar a atenção apenas para o lado político da atitude
errada da Comissão Permanente, de 25 de Janeiro, escusando-me de comentar a
avaliação judicial que já foi feita pelo acórdão, nomeadamente, no argumentário
(jurídico) a propósito das inconstitucionalidades material e formal (orgânica)
em que caiu aquele organismo parlamentar (a CP). A parte politica que aqui
trago é esta: a Comissão Permanente é um organismo inter- partidário uma vez
que o parlamento também o é. É assim: porque, havendo duas “grandes” bancadas
parlamentares (de dois grandes partidos parlamentares, o PAIGC e o PRS), a
Comissão Permanente tem necessariamente uma composição política não
monopartidária.
E ainda que, para funcionar, bastasse a
esse órgão da ANP (a CP) apenas reunir um determinado quórum (isto é, um número
mínimo/suficiente de seus membros), ainda assim, o bom senso politico – sem
precisar de muita ciência politica – exigia mais do que uma definição
aritmética de quórum. Era preciso juntar à definição formal de quórum (que se
faz pela contagem das cabeças presentes) uma, por assim dizer, outra definição
de quórum, que é informal – a sua definição política. “Sim, aritmeticamente,
temos quórum, mas atenção: porque estão a faltar aqui todos os representantes
do segundo maior partido, então, vamos adiar, é preferível não forçar as
coisas”. Era assim que se deveria proceder: não apenas aritmeticamente, mas
ponderando também as circunstâncias políticas. Isso faz parte daquelas coisas
que se aprendem na escola política da juventude, que, infelizmente, hoje já não
temos. E parece que, em adulto, é tarde de mais para tomar o “chá” de
crescimento político.
Mas
diz-se que o problema é outro, e que o último acórdão ainda não é suficiente
para fechar a questão? Quer comentar?
Eu não posso responder directamente à
questão alegadamente de “insuficiência” substantiva do último acórdão, até
porque não sou competente para falar em nome do Supremo Tribunal da Justiça. Da
minha parte, estou convencido que, com o referido acórdão (o n° 03/2016),
saímos finalmente do “túnel judicial” como, aliás, sempre pedi: que se saísse
do túnel judicial – que se se libertasse do “efeito redutor de túnel” – para
regressar à política, para voltar ao diálogo político dentro e fora do PAIGC.
Para causas políticas da presente crise, defendi sempre soluções também
politicas. Devo, no entanto, salientar que, por este último acórdão, o Supremo
Tribunal da Justiça deu um contributo imenso à dignificação da condição de
Deputado – de todos os eleitos do povo, não apenas os Deputados do PAIGC – no
contexto de um Estado Constitucional de Direito Democrático na medida em que
protegeu firmemente o primeiro de todos os valores políticos da república – o
valor da liberdade.
Para mim, esse acórdão do Supremo
Tribunal da Justiça está completo, não carece de mais nada, não precisa de mais
aditamentos. De maneira que, tentar arrastar mais ainda um processo judicial
esgotado, parece-me ser algo exagerado e contraproducente, talvez mesmo
politicamente perigoso. O Estado, do meu ponto de vista, precisa de se
“renormalizar” no funcionamento das suas instituições, sem mais demoras,
refutando, ao mesmo tempo, a tese das chamadas “eleições gerais”. Mas nada
impede que se façam hermenêuticas partidárias de textos judiciais e
hermenêuticas judiciais de estatutos partidários – como exercícios livres, como
suposições livres, não vinculativas. Enfim, esta batalha judicial – entre a
liberdade do Deputado e a partidocracia – deveria, a meu ver, considerar-se
encerrada nos precisos termos que foram fixados pelo acórdão n° 03/2016.
Não
vê o risco de absolutizar o princípio da liberdade do Deputado, que pode pôr em
perigo a ordem interna partidária, a disciplina das instituições?
Tem razão, esse risco existe, mas nem
teórica nem praticamente decorre da posição que tenho defendido. É, por assim
dizer, um risco inerente à própria liberdade, ao exercício da liberdade. E
estarei também na linha da frente sempre que a liberdade for exercida no mau
sentido, isto é, irresponsavelmente. Mas no caso em apreço, o problema não é
propriamente disciplinar; trata-se de um sério problema político, de construção
ou preservação da unidade do partido, que não se resolve fazendo expulsões. Se
fosse apenas um problema disciplinar, a escolha teria sido óbvia. Quando
tivermos (qualquer um de nós) de optar – utilizando aqui o esquema de Michael
Novak – entre “a tradição da licenciosidade (liberdade para se fazer o que se
quer) ou a tradição da Liberdade ordenada (liberdade para se fazer o que se
deve); entre a liberdade fora da lei ou a Liberdade dentro da lei; entre a
liberdade de “deixar andar” ou a liberdade de autocontrolo”, neste modelo, não
seria difícil escolher.
Lembro-me agora de uma conferência que
dei aos jovens no palácio do Governo, no dia 11 de Abril de 2015, tendo como
moderador o Dr. Vítor Mandinga. Distribui, naquela altura, a todos os
participantes uma brochura contendo, além de alguns pequenos artigos da minha
autoria, o excerto de um texto de Michael Novack sobre a dialéctica da
liberdade que citei no parágrafo anterior. Seria bom que os partidos – que
deveriam ser verdadeiras escolas de militância política e de cidadania activa e
responsável – trabalhassem muito mais nesse sentido.
Voltando ao meu ponto. Defendo a
liberdade, mas não defendo a irresponsabilidade. E sobretudo acho que devemos combater
o medo – o medo contra o qual Amílcar Cabral tanto lutou, em vão. Porque no dia
em que o Deputado começar a “ter medo” de se exprimir livre e responsavelmente,
então, nesse mesmo dia a democracia começa a morrer. Liberdade responsável,
sim; medo, não. Não alinho, por conseguinte, na ideia partidocrática de que o
titular do mandato não é o Deputado mas, sim, o partido; um partido-titular de
todos os mandatos que – por esse modelo -, daria e retiraria mandatos a
deputados que, por medo de serem arbitrariamente expulsos, deixariam de poder
exprimir-se livremente. Assim, não dá.
Insisto: hoje, no PAIGC, o problema é
mais de unidade do que de estabilidade; é um problema de diálogo construtivo e
não de imposição de castigos. Como, noutra ocasião já disse: invocando a
“estabilidade” para justificar o injustificável, cometeram-se as maiores
barbaridades, crimes, patifarias, enfim, um sem número de violações muito
graves dos Direitos Humanos na Guiné-Bissau tanto no passado mais remoto como
no passado mais recente. E isso não deve continuar.
Para quem – como eu – não é jurista nem
pretende sê-lo, e que nem sequer defendeu uma solução judicial para a crise
político-partidária que a expulsão de 15 deputados veio agravar – o paradigma
que o Supremo Tribunal da Justiça acaba de fixar, pelo seu acórdão n° 03/2016,
salvo melhor opinião, é este: não se pode decretar perda de mandato de qualquer
deputado por causa do voto ou da opinião que (o deputado) tiver expressado;
nenhum plenário o pode fazer – nem o da ANP, nem o plenário de qualquer outro
órgão, incluído o plenário do próprio Supremo Tribunal da Justiça – a menos que
(um tal plenário) resolvesse pontapear a Constituição da República da
Guiné-Bissau.
E
agora?
Agora é tempo da política, encerrado que
está, a meu ver, o tempo judicial. É tempo de derrubar muros, de lançar pontes,
depois de termos passado tempo demasiado caminhando dentro do “túnel judicial”.
É tempo político, em especial, é tempo do Presidente da República na sua
qualidade de Chefe de Estado que, sendo presidente de todos os guineenses, pode
falar com todos. É a última instância com que podemos contar no reatamento de
uma lógica de diálogo abrangente com vista a construir compromissos políticos
equilibrados e duráveis entre atores políticos relevantes.
É tempo maduro para a ANP, através do
seu plenário, procurar refazer-se do golpe que lhe foi desferido por uma CP
(agora judicialmente desautorizado), que se tinha reunido em forma “mini” (isto
é, na ausência dos representantes do outro grande partido parlamentar) para
tomar uma decisão unilateral, ilegítima e errada.
Mas também é tempo político de outros
atores interagirem, entre eles, na busca conjunta, comunicativa, de boas
soluções politicas. Para o PAIGC, em particular, é tempo de tentar voltar ao
seu primeiro princípio, que não deve continuar a ser adiado nem, menos ainda,
esquecido. É tempo de levantar as expulsões também no PAIGC, tentar “reunir” o
PAIGC, reformatar o governo e concluir a bom porto a nona legislatura de
inclusão.
O
que entende por regressar ao “primeiro princípio”?
O primeiro princípio do PAIGC é,
operativamente, “unidade e luta”. Unir para lutar, lutar para unir. Quem
desistiu de “lutar para unir”, por assim dizer, não é propriamente o melhor
exemplo de militante do PAIGC. Relativamente a isso, pode formular-se a
seguinte máxima partidária: quanto maior é a responsabilidade que se tem na
hierarquia do PAIGC maior deve ser o empenhamento discursivo e prático na
“unidade e luta”.
Tudo
isso parece muito teórico. Como passar destas ideias para a prática?
Através, por exemplo, de um congresso.
Acho que está na hora de se pensar na realização de um congresso, antecedido de
um grande debate interno. Justificação: um partido que – tendo saído do seu
VIII congresso há uns escassos dois anos (Fevereiro de 2014 a esta data) já
“perdeu” um secretario-nacional que é um deputado; já “perdeu” dois
vice-presidentes que são deputados; e já “perdeu” mais outros treze deputados –
todos expulsos -, é um partido que precisa de abrir um debate interno, que a
meu ver deveria culminar em congresso para (o PAIGC) tentar recompor-se,
reconciliar-se, restaurar a sua unidade interna. Isto constitui um desafio
enorme e complexo, mas que me parece ser um desafio pertinente, inadiável.
Acalenta
alguma esperança num PAIGC “recomposto” pelo seu próximo congresso, do tipo de
“Congresso de Cassacá”?
Eu tenho esperança no PAIGC, também no
PRS e na classe política em geral. Porque nenhum partido, tomado individualmente,
pode retirar o país do fundo em que se encontra encravado. Nenhum partido
isoladamente pode recuperar o Estado guineense do naufrágio que sofreu. Mas não
sou um doido para ser optimista. Os passivos são muito maiores do que os activos,
o que quer dizer que há um défice enorme, muito profundo no seio do conjunto da
classe politica: défice de pensamento político, défice de pensamento económico,
enfim, um grande défice de ideias geradoras de um pensamento realmente
estratégico para a nossa terra. E é preciso muita vontade política para
conseguirmos superar tantos défices ideológicos e políticos estruturais. E não
tenho a certeza de que tal vontade politica já existe.
Mas temos de reconhecer que, dentre
todos os partidos políticos guineenses, o PAIGC é, tanto para o bem como para o
mal – ontem, hoje e no futuro próximo – aquele partido que tem muito maiores
responsabilidades. Quanto a isso, creio eu que ninguém tem dúvidas. Mas,
atenção: um congresso do PAIGC pode não ser uma panaceia (pode não ser uma solução
para os nossos males), como, aliás, já aconteceu com vários outros congressos
que, de facto, pioraram muito a situação ideológica e política interna do
PAIGC. Quer dizer que fazer congressos não basta para resolver os problemas, se
bem que sem congresso também não é possível reabilitar ideológica, política e
organicamente o PAIGC.
É por isso que, tem todo o sentido, a
meu ver, fazer-se o congresso ainda este ano – em 2016 ou logo no primeiro
trimestre de 2017, para não ter de o fazer nas vésperas das próximas eleições
legislativas, em 2018, quando todos já andam a sonhar com as cadeiras do poder.
Mas não está garantido que “tipo” de PAIGC sairá do próximo congresso em termos
ideológicos, políticos e orgânicos. Não sendo otimista, e sem querer ser um pessimista,
diria o seguinte: infelizmente é muito mais fácil o PAIGC “continuar na mesma”,
por força da inércia, numa situação em que, o que anda mal, vai ficando cada
vez pior (é mais fácil isso continuar a acontecer), do que, ao contrário:
conseguir reformar o partido no bom sentido. E sem uma boa reforma do PAIGC –
considerando o peso que tem o PAIGC no aparelho do Estado guineense -, torna-se
altamente improvável levar a cabo qualquer boa reforma do Estado.
“Ergue-se agora com elegância e com
gravidade um importante desafio ético, e que é intelectualmente estimulante: de
saber se é justo que o PAIGC dê menos garantias de liberdade aos seus
militantes do que as garantias de liberdade que a Constituição dá aos
deputados? Este desafio ético pode ser reformulado da seguinte maneira: o PAIGC
como partido da libertação (nacional, coletiva) deve ou não deve assumir-se
como partido da liberdade (individual, de cada militante)? Eis a questão: vamos
ter de lutar pela liberdade (dos militantes do PAIGC) empunhando a bandeira da
Declaração Universal dos Direitos do Homem tal como lutamos ontem pela
libertação nacional empunhando a bandeira da Carta das Nações Unidas? A questão
está de pé.”
Quer
dizer que o futuro da Guiné-Bissau depende muito do PAIGC?
Exactamente. É preciso recordar que o
PAIGC tem conseguido combinar coisas que pareciam inconciliáveis – a capacidade
de ganhar eleições. Note-se que em cinco eleições legislativas
multipartidárias, o PAIGC ganhou quatro vezes; e dessas quatro vitórias
eleitorais, o PAIGC conquistou três maiorias absolutas – e (combinado com isso,
o PAIGC tem revelado) uma grande incapacidade de cumprir suas promessas, de
catalisar o desenvolvimento económico ou, ao menos, de reduzir a pobreza que
grassa no país. E, apesar disso, vai ganhando as eleições. Os militantes do
PAIGC deveriam perguntar: por quê essa persistente frustração, esse fracasso
continuado? Por quê esse ciclo vicioso sem fim, de confiança do povo no PAIGC e
persistente fracasso do PAIGC? Começar um ciclo virtuoso, para quando? Esta é a
pergunta que merece ser posta, a pergunta realmente estratégica neste momento,
muito mais importante do que andar a pedir eleições gerais e correr para o
poder. A resposta inicial a esta pergunta-chave, que ainda não é propriamente
uma resposta operativa, deveria talvez ser esta: o povo guineense que
repetidamente renova sua confiança no PAIGC precisa de um PAIGC de sucesso, não
apenas de um PAIGC de poder, não apenas de um PAIGC ganhador de eleições mas um
PAIGC de desenvolvimento económico e justiça social. Como fazer isso – eis a
questão.
Está
a reconhecer muitas incertezas no horizonte – sem um congresso à vista do tipo
de Congresso de Cassacá, e com uma democracia que anda coxa?
Sem dúvida. Para haver Cassacá falta-nos
um Cabral e falta-nos gente de calibre dos extraordinários “rapazes da China”:
Domingos Ramos, Francisco Mendes, Nino Vieira, Osvaldo Vieira, Constantino
Teixeira… Esses é que “fizeram” Cassacá – os três “mais velhos” (Amílcar
Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral) apoiados por essa plêiade de jovens
combatentes que tinham chegado da China (da Escola Político/militar de Nanquim)
– os melhores quadros naquela altura. Foram eles – mais o Rui Djassi – que
constituíram a primeira direcção do PAIGC que saiu do primeiro congresso
(realizado no local de Cassacá, região de Tombali, sul da nossa terra). Foi uma
direcção do PAIGC unida e estável durante dez anos de sucessos, de vitórias,
apesar dos sofrimentos e muitos sacrifícios próprios de uma Luta armada.
Extraordinário! Dois desses quadros morreram cedo – o Domingos Ramos e o Rui
Djassi. Mas para esse núcleo duro, para essa equipa de ouro da “unidade e luta”
do PAIGC – subiu o extraordinário Pedro Pires, fechando, assim, o conjunto dos
membros do Conselho de Guerra. Veja-se – em contraponto disso – o que está a
acontecer no PAIGC menos de dois anos depois do Congresso de Cacheu (o oitavo
congresso)! Pode dizer-se que do congresso de Cacheu até hoje o PAIGC ainda não
encontrou “um dia” de sossego.
Pode
especificar melhor este ponto?
Vou tentar. O problema é que tornou-se
muito difícil conseguir reunir “meia dúzia” de quadros estratégicos,
disponíveis para pensar o seu próprio país (a Guiné-Bissau) sem fazerem
cálculos de poder pessoal, sem fazerem cálculos à volta de cargos
governamentais que, custe o que custar, querem ocupar. Numa palavra: vendo como
estão as coisas, não será nada fácil reformar o PAIGC. Mas é preciso voltar a
tentar, e essa tentativa passa por um debate interno que deve culminar em
congresso. Cabral e os seus camaradas conseguiram reformar o PAIGC a partir de
Cassacá; hoje não sei, mas é preciso tentar…
Agora vamos à questão da democracia
guineense. Baseada numa suposição idealista ou optimista, a democracia chegou
com uma pretensão legítima: de desenvolver economicamente o país, de criar uma
sociedade mais justa, de construir uma ordem politica mais equilibrada e
inclusiva. E é assim, porque não faria muito o sentido ter “democracia apenas
para ter democracia”, isto é, implantar a democracia como quem adopta uma moda
política, para apenas se entrar na moda política “moderna”.
A verdade é que a nossa democracia – que
tem vinte anos de idade – falhou em toda a linha: não promoveu o
desenvolvimento económico, não foi eficaz no combate à pobreza, criou muitas
injustiças sociais e políticas, não geriu bem as tensões políticas de modo a
evitar golpes militares, enfim, a democracia guineense resumiu-se, até hoje, a
uma serie de carnavais eleitorais que a comunidade internacional vai pagando talvez
para ficar de “boa consciência”. Pode dizer-se que, quase tudo o que no passado
andou mal, ficou ainda pior com a chegada da democracia. É caso para dizer que
esta democracia foi uma desilusão. E uma democracia que piora quase tudo, é uma
democracia que perde legitimidade, o que não quer dizer que ditadura seja
melhor, nada disso.
O problema é que devíamos tentar
repensar o nosso modelo económico e o nosso Sistema político. E fazer isso –
olhando para a nossa classe política em geral – é muito difícil.
Está
a concluir esta entrevista num tom muito pessimista?
Pelo tom, sim. Como já disse, não sou um
doido para ser otimista. Face à dimensão dos desafios técnicos, políticos e
económicos da Guiné-Bissau, penso ser muito difícil alguém declararse um
otimista. Mas eu não sou propiamente um pessimista. Se fosse um pessimista não
estaria sempre a lutar, sempre dentro da “arena” politica nacional há mais de
quarenta anos. Porque como dizia o “simples africano” (Amílcar Cabral); “o
arroz coze-se dentro da panela” – a primeira máxima que resulta da ética
cabralista.

Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.