«A
quaresma está em curso. A alegria da Páscoa já se pode saborear»
Recém-baptizado, Jesus encaminha-se para
o deserto, lugar tradicional de grandes desafios, de êxitos e fracassos. Já o
povo de Deus no regresso do Egipto o havia experimentado: percursos cansativos
e longos, sede e fome, sensação de abandono, perigos de morte e tantas outras
ameaças à vida e à confiança em Moisés, seu guia providencial. As provações da
travessia proporcionam um tempo de paciente espera, de atenção solícita e de
sentido dos pequenos passos na longa caminhada. Assumindo este “fio” histórico,
Jesus vive no deserto uma experiência original: a de provar que é verdade o que
declarou a Voz vinda do Céu, aquando do seu baptismo: “Tu és meu Filho amado,
em Ti pus as minhas complacências”. (Mt 3, 17).
O tentador insiste por três vezes neste
ponto crucial. Não o intima a deixar de ser Filho, mas a dar resposta a três
provas vitais que dizem respeito aos meios a usar para fazer aquela
demonstração. Seria tão fácil saciar a fome, transformando pedras em pão;
credenciar-se na sua filiação, fazendo uma acção espectacular na esplanada do
Templo; poder exercer o seu senhorio sobre o mundo, realizando um simples gesto
de adoração. Tudo tão fácil e sedutor. Tudo apoiado na força da palavra da
escritura. Tudo ao serviço da sua reconhecida missão. E a voz a segredar aos
ouvidos da liberdade: “se és filho de Deus, se és”.
Jesus, homem inquebrantavelmente livre e
libertador, assume o desafio diabólico e dá-lhe resposta convincente e
definitiva: “Só a Deus, adorarás”. “Não tentarás o Senhor, teu Deus”. O homem
vive não apenas de pão, “mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus”. A
liberdade brilha na verdade. Outra opção triunfa. Os meios da missão de Jesus
são diferentes: não ao milagrismo, sim à confiança filial; não ao espectáculo,
sim à simplicidade discreta; não à ganância, sim à sobriedade e à partilha, à
proximidade e ao serviço por amor.
O Papa Francisco alertou recentemente
milhares de pessoas reunidas na Praça de São Pedro, no Vaticano, para as
tentações do “dinheiro, prazer e poder” e apresentou Deus como Pai num “mundo
órfão”. E exortou os presentes a fazerem opções: “Ou o Senhor ou os ídolos
fascinantes, mas ilusórios: esta escolha que somos chamados a fazer
repercute-se depois em todos os nossos atos, programas e compromissos. É uma
escolha a fazer de forma nítida e a renovar continuamente, porque as tentações
de reduzir tudo a dinheiro, prazer e poder são prementes”.
Mateus, o autor da narrativa, faz um
relato genial do encontro de Jesus com o tentador e deixa a claro o valor da
liberdade de opção que evidencia quem a pessoa é e a responsabiliza por aquilo
que faz. Que maravilha e preciosidade, postas nas nossas mãos de barro, frágeis
e oscilantes. Dostoievski, no romance «Os Irmãos Karamazov», faz o grande
Inquisidor dizer a Jesus: “Porque vieste a transtornar-nos? Queres ir pelo
mundo com as mãos vazias, pregando uma liberdade que os homens… não podem
compreender; uma liberdade que os atemoriza, pois não há nem houve nunca nada
mais intolerável para o homem e a sociedade que ser livres”. Desafio crucial
que o Evangelho deixa em aberto a todas as gerações, sobretudo à nossa tão
marcada pelo “gosto” da liberdade de ocasião, de catavento, de encarte e
descarte conforme ass modas e as circunstâncias. Desafio a ser assumido por
cada um de nós, pelos meios de educação da sociedade e pelos serviços da
Igreja.
Jesus, na sua missão, é portador de uma
mensagem que enche corações, liberta espíritos amarrados e dá sentido pleno à
vida. Milhões e milhões acolhem esta mensagem e seguem o seu exemplo: preferem
a sobriedade à opulência, o desassossego à acomodação, a simplicidade à
ostentação, a cruz do amor de doação ao podium do aplauso exibicionista, o bem
comum ao interesse pessoal, o serviço ao poder. Algumas destas pessoas fazem-se
notícia pelo heroismo das suas atitudes e pelo valor simbólico da sua vida
realizada e feliz. Outras ficam no coração de quem beneficia da sua
generosidade exemplar e no registo do coração de Deus.
O medo à liberdade ocorre sempre que
faltam convicções firmes e opções claras, fruto de uma educação integral
enraizada na nossa comum humanidade, moldada por uma cultura de valores
intergeracionais, espelho da dignidade pessoal de cada um e de todos. Educação
aberta ao Trancendente que se faz humano em Jesus Cristo. É ele mesmo que,
hoje, é boa notícia para o mundo, pois tentado na sua liberdade e, apesar de
intimado três vezes, mantem firme a sua opção de ser livre nas suas escolhas e
de reafirmar a sua identidade de Filho de Deus. Que alegria ser discípulo de
tal Mestre!
Há dias, um amigo dizia em tom desabafo
psicológico e espiritual: “De vez em quando é bom fazer uma limpeza ao coração.
Há sentimentos que não valem o espaço que ocupam”. É mesmo assim. Experimenta.
A quaresma está em curso. A alegria da Páscoa já se pode saborear.
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