Organização das Nações Unidas já incitou
governos e empresas a agirem contra a violência de género que assume facetas
muito diversas na Net.
POR, ANA CRISTINA PEREIRA no publico
O que pode levar alguém a divulgar imagens
com conteúdos íntimos ou sexuais, sem o consentimento dos envolvidos? Que
efeito poderá isso ter na vida das vítimas? Chamam-lhe “pornografia não
consentida” ou “pornografia de vingança”. É uma das novas formas de violência que
se propagam pela Internet.
Dois casos trouxeram o assunto para a
ordem do dia. Um envolve uma estudante do Porto filmada enquanto um rapaz a
tocava nas partes íntimas, dentro de um autocarro, no decurso da Queima das
Fitas. O outro envolve uma estudante de Braga filmada seminua durante o Enterro
da Gata.
O que está em causa não é o acto
captado. É a divulgação. “Eu até posso enviar uma fotografia nua ou seminua a
uma pessoa, mas isso não a autoriza a disseminá-la”, esclarece Isabel Ventura, investigadora
da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres e da Universidade do Minho.
“As pessoas têm direito à imagem, à intimidade na vida privada”, sublinha
Manuel Lopes Rocha, advogado especializado em Direito tecnológico. E ao bom
nome, à reputação.
Os casos repetem-se um pouco por todo o
mundo. Há notícias de suicídios em vários países. Em Março, a Organização das
Nações Unidas incitou governos e empresas a agirem contra as várias facetas da
violência de género na Net.
Em estudos feitos no estrangeiro os
homens figuram como maiores produtores e as mulheres como maiores vítimas de
“pornografia não consentida”. “São, sobretudo, homens que procuram chantagear,
controlar ou humilhar mulheres com quem têm ou tiveram uma relação”, aponta Isabel
Ventura.
Mesmo que a captação e divulgação de
imagens seja feita por desconhecidos, as consequências serão diferentes para
homens e mulheres que nelas aparecerem. “Há uma dupla moral sexual”, diz a
investigadora. “A exposição pública de nudez, actos sexuais ou sexualizados
provoca um downgrade na reputação
das mulheres e um upgrade na
reputação dos homens.”
Das mulheres espera-se recato, corrobora
Sofia Neves, docente do Instituto Universitário da Maia e investigadora do
Centro Interdisciplinar de Estudos de Género do Instituto Superior de Ciências Sociais
e Políticas da Universidade de Lisboa. “O seu comportamento sexual está
associado a uma auto-imposição de limites.” Quando os extravasa, torna-se alvo
de julgamento moral.
Não é que os homens estejam livres de
ser vítimas de divulgação de imagens humilhantes, torna Isabel Ventura. É que
“nesse caso não são imagens de foro sexual, a não ser que estejam relacionadas
com homossexualidade ou com outros comportamentos não normativos”.
Antes do advento da Net, já havia
difusão não consentida de imagens de cariz íntimo ou sexual. Nos anos 1980, as
revistas pornográficas já tinham secções de fotografias enviadas por leitores.
A evolução das novas tecnologias veio ampliar as consequências. Através das
redes sociais, os círculos desdobram-se até ao inimaginável.
“O digital não é um mundo à parte, é uma
extensão”, lembra Inês Amaral, Investigadora no Centro de Estudos de
Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. “Tem algumas condicionantes –
como o anonimato, o acesso, que se faz a qualquer hora, em qualquer lugar, o tipo
de comunicação, que não é cara a cara – que podem dar uma sensação de
irrealidade às coisas.” Olhando para o que aconteceu com as estudantes do Porto
e de Braga, a autora da tese. “Redes Sociais na Internet: Sociabilidades
Emergentes” descortina alguma maldade, mas também irreflexão. “Há
inconsequência, em particular entre os mais jovens. Esquecem-se de que enviam
as imagens e perdem o controlo. A pegada digital não se apaga, quando muito
propaga-se.”
Isabel Ventura tem pensado muito na
rapariga filmada no autocarro. “E agora? Como é que vai para as aulas? Como é
que olha para os colegas, para os professores?” Sofia Neves também. “A exposição
pública pode ter um efeito muito desestabilizador”, adverte aquela psicóloga, presidente
da Associação Plano I. “Pode dar origem a isolamento social. As relações
sociais ou familiares podem ficar comprometidas.”
Quem sabe por que não apresentou aquela
rapariga queixa contra quem captou e divulgou as imagens, como fez a de Braga?
Entram em linha de conta vários factores, que têm que ver com personalidade,
relações familiares, crença no sistema de justiça, nota Sofia Neves. “O sistema
não está preparado para responder da melhor maneira e não deixa de ser uma
segunda exposição”, diz ainda. A rapariga até poderá estar a ser aconselhada a
não reagir para evitar que o seu rosto e o seu nome sejam revelados, admite
Manuel Lopes Rocha. As imagens podem persegui-la anos. “Hoje em dia, envia-se um
currículo e a primeira coisa que fazem é ir à Net”, achega Inês Amaral.
Diversos Estados criaram legislação
específica. É, por exemplo, o caso de França, Inglaterra, País de Gales, parte
dos Estados Unidos. “Que eu tenha conhecimento, em Portugal, as situações têm sido
tratadas como devassa da vida privada e outros ilícitos, como gravações
ilícitas”, remata Isabel Ventura. Alguns casos têm sido investigados no âmbito
de processos de violência doméstica. Com o Publico
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