Abdulai Carmalá acordará nesse dia mais cedo que o
habitual e logo com uma longa chamada do seu patrão. Este ultimo encontrava-se
afilo por chegar ao serviço mais cedo que o costume. Abdulai abalara de casa a
correr sem ao menos tomar o seu mata-bicho. O patrão tinha passado a
noite em branco por um colega lhe ter confidenciado que haveriam, brevemente,
remodelações no Executivo. Isto é, iam rolar cabeças no Governo que eles
pertenciam. E ele tinha a plena consciência de que ocupava um cargo bastante
sensível, um cargo, que muito embora, ia conseguindo manter graças a sua imensa
capacidade de bari-padja, tinha sido algo instável antes da sua chegada.
Tão instável que não houve ninguém que o ocupara até ao fim de mandato de um
Governo. Mas ele ia conseguindo com o seu truque de camaleão manter-se no
cargo. Já passara por ele três Governos diferentes; saliente-se, os governos
passaram por ele, não ele pelos Governos. Todos sabiam como ele se mantinha no
cargo, mas mesmo assim atingia o seu objectivo. Mudava de lado com a mesma
facilidade com que muda de camisa.
Abdulai chegou a casa do seu patrão e nem precisou
tocar a campainha, como frequentemente fazia, pois o dito-cujo já se encontrava
à porta a sua espera.
- Vem atrasado Abdulai, sabe bem que
eu detesto atrasos.
- Sim senhor. Não ouvi a chamada e
não é costume acordar a estas horas. Diz Abdulai ainda com cara e voz ensonada.
- Vá, vamos lá embora que quero
chegar rápido ao serviço.
Dirigiram-se rapidamente para o palácio do
Governo. Ao chegarem, antes de irem para o escritório, para que Abdulai
recebesse as instruções do dia, entre os quais os recados para as amantes,
tiveram que passar primeiro pelo gabinete do chefe do Executivo. (Havia que
sondar o chefão).
- Bom dia Sr. Primeiro-Ministro.
- Bom dia, bom dia. Chegou cedo hoje
meu caro.
Respondeu-lhe o PM, sem nem levantar o rosto. O que não era de todo um bom
sinal.
- Sabe como é, há que fazer
sacrifícios por este povo. Essa é a minha função, a minha vida é isto...
De facto ele tinha razão, aquele cargo era a sua vida.
Todo em si girava em volta daquele posto. Tudo aquilo que conseguira na vida,
provinha dali. Fizera pouca coisa da vida desde que regressara de Portugal,
onde se tinha licenciado em economia. Foram tempos difíceis que ele detesta
relembrar, mas que também não podia esquecer. Um país famoso sem conteúdo que
sustente essa grandiosa fama. Quando deixará Bissau em 1986 rumo à capital
lusitana, carregava em si grandes sonhos, expectativas elevadíssimas. Que se
foram dissuadindo a medida que descortinava a verdadeira Lisboa, aquela com ghuettos
de latão e lixos amontoados, aquela com mendigos desafiando o frio nas calçadas
do Rossio nas rigorosas noites de inverno.
Na verdade, ele tinha deixado Bissau sem perspectivas
de volta. Tomará como exemplo os Cubanos e os Soviéticos, que
tiveram de fazer o caminho de volta para Europa logo após o regresso ao país. A
situação não estava fácil, anos passavam e os combatentes de Cabral nada
mostravam ao povo. Pior, não cediam espaço a mais ninguém. Os recém-formados,
por sua vez, não podiam hipotecar a juventude e os seus saberes num país com
futuro incerto e, tal como ele, o grande objectivo era ganhar dinheiro.
Mas que importava isso? Que importância tem a falta de
patriotismo? Não planeava regressar mas regressou; mas valia ser doutor na sua
terra que um zé-ninguém em terras alheias…
- Ainda bem que pensa assim, é
sempre bom lembra que estamos aqui para servir o povo. Disse em tom baixo o
Primeiro-Ministro.
- Sem dúvida chefe, sem dúvida…
Quase que expulso pelo silêncio do chefe, o nosso
economista pediu licença e saio da primatura. Dirigiu-se para o seu gabinete na
companhia do seu motorista e moço de recados. Dera a este indicações
pormenorizadas para o resto do dia. Onde tinha que ir, o que tinha de fazer e
dizer.
Abdulai seguirá para os seus afazeres deixando o seu
patrão possuído pelas interrogações. A imagem e a reacção do Primeiro-Ministro
não lhe tinham deixado satisfeito, nada satisfeito mesmo. Mas o que fazer?
Ficar quieto a espera que este lhe ruasse? Ou sacudir o rabo do estufado
e tomar providências? Claro que o nosso economista não era homem de ficar a
espera de nada, havia de fazer algo. Mas o quê?
Ao cair do dia, com aquele cenário inigualável, sem
luzes artificias que desfiguram a beleza do crepúsculo, Abdulai apanhou o seu
patrão a porta do palácio do Governo, pensando que se dirigiriam para casa.
Ficou, um tanto quanto, admirado quando este lhe disse vamos para Gan Turé,
tenho que falar com o velho Satalá.
- Para Gan Turré, chefe? Mas o chefe
não me manda sempre buscar o velho Satalá quando precisa dele?
- Abdulai, faça o que lhe digo e não
me questiona.
- Peço desculpas chefe, mas é
que fiquei surpreso e ainda por mais lhe vejo com cara preocupada.
- O assunto é mesmo para preocupação.
Posso perder o meu cargo, logo também perdias o teu. Percebes agora?
Abdulai rapidamente assimilou a questão, percebeu o
porquê de terem ido para o serviço mais cedo que o habitual e percebeu o porquê
de terem passado de manhã pelo gabinete do Primeiro-Ministro.
- Percebo chefe. Isso seria muito
mau, tenho famílias para sustentar. Sabe como é, quatro mulheres e 9 filho. Por
mais desde que o meu pai faleceu todos os encargos das suas famílias caem sobre
os meus ombros.
- Esse é o problema de vocês, homens
muçulmanos. Acham que ter muitas mulheres é sinal de riqueza. Mas na verdade
são elas que vos sustentam e quando não o conseguem fazer, vocês caem na
miséria.
- Mas chefe, vocês, kristons, também
têm muitas mulheres, a diferença é que só uma é oficial.
A conversa ia decorrendo em tom informal. Por momentos
se quebraram as barreiras que separavam o patrão do empregado. O mais certo é o
patrono de Abdulai estar naquele momento a desprender-se das preocupações que
lhe assolaram o dia todo.
- Isso é uma outra questão. Elas é
que não me largam. Querem sempre aproveitar da minha situação. Eu aproveito
porque com a minha profissão posso sustentar todas as mulheres que quiser, o
que não quer dizer que vá deixar a minha esposa e os meus filhos. Dinheiro não
me faltará para dar a todas elas.
- Chefe, desculpa-me o atrevimento.
Mas qual é, de facto, a sua profissão?
- Ora Abdulai, não faça perguntas
tolas. Eu sou ministro!!!
- Mas chefe…
Talvez o experiente Abdulai fosse cometer a gafe de
dizer ao seu patrão que, na verdade, ministro não é profissão. Felizmente, não
foi a tempo, o chefe foi mais rápido e se deu conta do tamanho enxovalho, que é
estar a discutir assuntos pessoas com o motorista, onde é que já se viu?!
- Mas nada Abdulai... conduza que é
para isso que lhe pago. Não para fazer perguntas parvas.
Chegados a casa do velho Satalá, os búzios não
pareciam estar muito a favor do nosso ministro. O velho Satalá não poupou nas
palavras para explicar ao mesmo que desta vez, alguém lhe tinha passado a frete
e lhe fizera uma boa cama de gato. Uma cama que não seria nem fácil, nem barato
de desmontar: havia que tirar simolas generosas, matar umas quantas
cabras e caso tudo isso não resultasse, a luta entre murus e mistérios
haviam de continuar.
E
a luta continuou mesmo… só o ministro sabe a falta que todo aquele dinheiro lhe
fez depois para conseguir comprar aliados, subornar militares, criar confusão e
derrubar o Governo. Que ele chegou a pertencer. Ao menos num Governo de unidade
Nacional poderia voltar a roubar algum e fingir não ver os outros a fazerem o
mesmo. Voltar a ter carros novos, viagens à Europa e todas as mulheres que, no
entanto, lhe deram com os pés.
Edson Incopté
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