"A balança da
razão não é completamente imparcial: o braço que aponta "esperança do
futuro" tem uma vantagem mecânica que faz com que mesmo razões leves que
caem no seu respectivo prato levantem o outro braço que contém especulações em
si de maior peso. Esta é a única inexactidão que eu não poderia e na realidade
também não quero corrigir."
O pior do nosso tempo é a entrega desvairada ao
consumismo, ao ruído e à satisfação imediata e saltitante de prazeres velozes
e, conse-quentemente, à vozearia da insensatez que não pensa. Fica então o
esquecimento do enigma da vida e da busca de respostas para as imensas e
prementes perguntas que erguem o ser humano à sua estatura de homem: porque há
algo e não nada, a questão do mal e do sofrimento, da felicidade e da morte, de
Deus e do sentido último da existência.
Já G. Scholem avisou: "Se o sentimento de que o
mundo esconde um mistério desaparecer, tudo terá acabado. Em qualquer caso, não
creio que cheguemos tão longe." Mas talvez não andemos mesmo muito longe.
De qualquer modo, quem não andar completamente distraído e conservar ainda um
sentido mínimo pelo perguntar e de compaixão pela humanidade será
frequentemente esmagado pela pergunta que o ateu E. Bloch formulou nestes
termos: "Por que é que nós, que somos limitados em tudo, sofremos
ilimitadamente?" E morremos. Sobre este tema escreveu G. Steiner este
texto poderoso e intenso: "Sabemos que a Sexta-Feira Santa do cristianismo
é a da Cruz. Mas o não cristão, o ateu, também a conhece. Significa que ele
conhece a injustiça, o sofrimento interminável, a devastação, o brutal enigma
do fim, que em grande medida constituem não só a dimensão histórica da condição
humana, mas também o tecido quotidiano das nossas vidas provadas. Conhecemos,
inevitavelmente, a dor, a falência do amor e a solidão que são a nossa história
e o nosso destino pessoal. Também conhecemos o Domingo. Para o cristão, esse
dia é um sinal, simultaneamente garantido e precário, de uma justiça e de um
amor que venceram a morte. Se não somos cristãos ou se somos descrentes,
conhecemos esse domingo precisamente nos mesmos termos. Para nós, é o dia da
libertação da inumanidade e servidão. Esperamos soluções, sejam elas
terapêuticas ou políticas, sociais ou messiânicas. Os contornos desse Domingo
carregam o nome da esperança (não há palavra menos susceptível de
desconstrução). Mas a nossa longa jornada é a de Sábado. Entre o sofrimento, a
solidão e o indizível desperdício, por um lado, e o sonho da libertação e do
renascimento por outro. Em face da tortura de uma criança ou da morte do amor
que é Sexta-Feira, até a arte e a poesia mais sublimes se revelam vãs."
Sim. É no Sábado Santo que os cristãos e, de certo modo, todos os seres humanos
vivem: entre o horror de Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo pascal.
As razões da fé em Deus são essencialmente razões da
esperança. Há um clamor que grita no mundo e vem das vítimas inocentes. Um
número incontável de crianças, de mulheres, de homens, que sucumbiram à
violência bruta, à crueldade inominável, para quem a vida nada foi senão
horror, reclamam justiça. Há uma dívida inapagável para com elas, mas, sem Deus
e a ressurreição dos mortos, quem paga essa dívida? Ou será que tudo - bem e
mal, dignidade e indignidade, justiça e injustiça - se afunda no nada?
"O cristianismo tem a seu favor o imenso acerto
de se apresentar como a tradição de um ser humano que enfrentou o mal com
enorme dor, mas com a prevalência da esperança", reflectia o filósofo J.
Gómez Caffarena. Na linha de Kant, que escreveu: "A balança da razão não é
completamente imparcial: o braço que aponta "esperança do futuro" tem
uma vantagem mecânica que faz com que mesmo razões leves que caem no seu
respectivo prato levantem o outro braço que contém especulações em si de maior
peso. Esta é a única inexactidão que eu não poderia e na realidade também não
quero corrigir."
"Não é nenhuma estupidez nem loucura
esperar": "O enigma que somos pode ter no Mistério para o qual abrem
as religiões uma chave para uma esperança fundada", acrescentava
Caffarena. Não só não é ilegítimo como é até razoável esperar. Mas a esperança
não é resignada, quieta, passiva. Ela é constitutivamente activa, praxística na
transformação para a bondade do mundo. Para que se cumpra o que escreveu Santo
Agostinho: "Vive de tal modo que, quando morreres, não morras."
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