Crónica
de Anselmo Borges
Como Francisco de Assis, o que o Papa Francisco encontrou foi uma Igreja em ruínas. Daí, o seu empenho, sem hesitações, na sua transformação e conversão.
O teólogo Agenor Brighenti acaba de apresentar preocupações e modelos fundamentais, em ordem a uma mudança radical, citando Francisco.
1. "De uma Igreja autorreferencial
a uma Igreja nas periferias". É essencial pôr termo a uma Igreja
autocentrada e, por isso, da exclusão, para passar a uma Igreja que acolhe os
que se encontram marginalizados nas periferias: os considerados perdidos, os
que pensam de outro modo, longe das certezas eclesiásticas, os das periferias
da dor, das injustiças, da miséria, os pobres e analfabetos, os sem--abrigo, os
presos, os drogados, os homossexuais, as famílias monoparentais, os recasados
que não podem comungar, os padres casados, e tantos, tantos outros...
2. "De uma Igreja-alfândega a uma
Igreja samaritana". Francisco insiste numa Igreja da "revolução da
ternura". "Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma
batalha. É preciso curar as feridas; depois, falaremos do resto." Daí, a
urgência de uma Igreja-mãe, samaritana, "capaz de redescobrir as entranhas
maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, pouco pode fazer para inserir-se
num mundo de "feridos", que precisam de compreensão, perdão e
amor".
3. "De uma Igreja de prestígio e
poder a uma Igreja pobre e para os pobres". "Ah, como quereria uma
Igreja pobre e para os pobres!", disse na inauguração do seu pontificado.
E dá o exemplo. Numa entrevista: "Os chefes da Igreja, em geral, foram
narcisistas, adulados e exaltados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do
papado." Conhece bem a admoestação célebre de São Bernardo ao papa Eugénio
III: "Não te esqueças de que és sucessor de um pescador e não do imperador
Constantino." Por isso, repete constantemente que a Igreja "não pode
afastar-se da simplicidade". "Nalguns há um cuidado ostensivo da
liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, sem se preocuparem com que o
Evangelho tenha uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades
concretas da história. Desse modo, a vida da Igreja converte-se numa peça de
museu ou numa posse de poucos." Não ignorando a advertência do bispo
Casaldáliga, "só há dois absolutos: Deus e a fome", a sua preocupação
primeira não é a doutrina e a imagem pública da Igreja, mas o sofrimento e a
causa dos pobres no mundo. Afinal, "a realidade entende-se melhor a partir
da periferia do que a partir do centro", avisa.
4. "De uma Igreja milagreira e
providencialista a uma Igreja profética". Denuncia "a cultura do
descarte. Não se pode descartar ninguém" nem cair na "globalização da
indiferença". Concretiza: "Hoje temos de dizer "não" a uma
economia da exclusão e da iniquidade. Essa economia mata. É inaceitável que não
seja notícia um ancião que morre de frio na rua, mas que o seja uma queda de
dois pontos na Bolsa." "Enquanto os lucros de alguns crescem
exponencialmente, os da maioria ficam cada vez mais longe do bem-estar dessa
minoria feliz. Este desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia
absoluta dos mercados e a especulação financeira. Daí que neguem o direito de
controlo dos Estados de velar pelo bem comum. Instaura-se uma nova tirania
invisível." Assim, "o futuro exige hoje a tarefa de reabilitar a
política, que é uma das formas mais altas da caridade".
5. "De uma Igreja encerrada na
sacristia a uma Igreja acidentada por sair à rua". Claro que a uma Igreja
que sai à rua pode acontecer o que acontece a qualquer um: um acidente.
"Mas quero dizer francamente: prefiro mil vezes uma Igreja acidentada a
uma Igreja doente. A doença maior da Igreja fechada é a doença
autorreferencial: ver-se a si mesma, curvada sobre si própria." Daí, a
tarefa constitutiva da "missionariedade", do ecumenismo e do diálogo
inter-religioso.
6. "De uma Igreja centralista a uma
Igreja de Igrejas locais". É necessário superar o modelo centralizado de
Igreja, a começar pela Cúria, que urge reformar radicalmente, para ser
organismo de ajuda e não de censura - "impressiona ver as denúncias de
falta de ortodoxia que chegam a Roma", adverte.
7. "De uma Igreja clerical a uma
Igreja toda ela ministerial". A descentralização deve estar presente em
todas as instâncias da Igreja e opõe-se ao clericalismo: este "não tem
nada a ver com o cristianismo. Quando tenho diante de mim um clerical,
instintivamente transformo-me num anticlerical". Se a Igreja é o Povo de
Deus, todos têm de participar. Que lugar para os leigos e para as mulheres?
8. "De uma Igreja governada por
bispos-príncipes a uma Igreja de pastores", que caminham "com e no
seu rebanho". Evitai, diz aos bispos, "o escândalo de ser bispos de
aeroporto".
O que mais impressiona, digo eu, é que o
que Francisco sonha, quer e faz seja considerado extraordinário, quando deveria
ser pura e simplesmente o normal.
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