«Faz falta voltar a sentir
que precisamos uns dos outros,
que somos responsáveis
pelos outros e pelo mundo»
Naquele 13 de Março de 2013, ao ouvir o
nome que o cardeal Bergoglio escolhera para si como Papa - Francisco -, fiquei
convencido de que, mais tarde ou mais cedo, apareceria uma intervenção forte
sobre a ecologia. Ela aí está, na encíclica "Laudato si", palavras
iniciais do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis: "Louvado
sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e
governa."
Impossível fazer aqui uma síntese
minimamente adequada da sua riqueza. Trata-se de um texto poderoso,
argumentado, contundente, também com belas passagens poéticas, articulando a
ecologia do meio ambiente e a ecologia humana, um marco histórico para o futuro
do planeta, que se impõe debater e meditar. Não é por acaso que aparece nesta
data, antes da viagem aos Estados Unidos e no contexto da preparação de um novo
tratado sobre o clima numa conferência das Nações Unidas, em Dezembro próximo,
em Paris. Por isso, já começaram as críticas por parte, nomeadamente, de
grandes poderes relacionados com a energia e a banca. O líder republicano Jeb
Bush, possível candidato à presidência dos Estados Unidos, por exemplo, que se
converteu ao catolicismo há 25 anos, arremeteu contra Francisco: "Não
deixarei que os meus bispos, os meus cardeais ou o meu Papa me ditem a política
económica"; a religião deveria ocupar-se mais de "tornar as pessoas
melhores e menos de questões que têm que ver com aspectos políticos".
Francisco, porém, pensa ser seu dever dirigir-se a crentes e a não crentes,
"a cada pessoa que habita este planeta", para a defesa da "casa
comum" ameaçada, tanto mais quanto as alterações climáticas afectam
sobretudo os mais vulneráveis, estão em causa a paz e as gerações futuras, e o
Deus criador entregou a Terra ao cuidado responsável de todos.
A própria encíclica descreve os seus
eixos: "A relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a
convicção de que no mundo tudo está ligado" - é uma afirmação constante:
tudo em conexão e interdependência -, "a crítica ao paradigma da tecnocracia
e às formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outros
modos de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o
sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a
grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte
e a proposta de um novo estilo de vida."
Poucos se lembram de que a formação de
base de Francisco é a Química, sabendo, portanto, o que significa a ciência, e
consultou vários cientistas de renome. Assim, escreve: "Há um consenso
científico muito consistente que indica que nos encontramos perante um
preocupante aquecimento do sistema climático. Se a actual tendência continuar,
este século poderia ser testemunha de alterações climáticas inauditas e de uma
destruição sem precedentes dos ecossistemas, com graves consequências para
todos." Aliás, com a produção de centenas de milhões de toneladas de
resíduos por ano, muitos deles não biodegradáveis, "a Terra, nossa casa,
parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo", adverte.
O clima é um bem comum e a alteração
climática "é um problema global com graves dimensões ambientais, sociais,
económicas, distributivas e políticas, e coloca um dos principais desafios
actuais para a humanidade", cujas consequências "recairão nas
próximas décadas sobre os países em desenvolvimento", com tragédias sem
fim a que já estamos a assistir, "lamentavelmente, com uma indiferença
geral". O texto sublinha o drama da água e da pobreza e denuncia: "Não
se costuma ter consciência clara dos problemas que afectam particularmente os
excluídos, mas eles são milhares de milhões de pessoas." E adverte: somos
"uma só família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou
sociais que nos permitam isolar-nos e, por isso, também não há espaço para a
globalização da indiferença". Afinal, habitamos a mesma casa.
É mentira "a disponibilidade
infinita dos bens do planeta", impondo-se, portanto, avançar com "uma
valente revolução cultural", para uma "ecologia integral":
"O gemido da irmã Terra une-se ao gemido dos abandonados do mundo, com um
clamor que nos obriga a outro rumo." Precisamos de um novo estilo de vida,
de consumo e produção e de outra política: "A salvação dos bancos a todo o
custo, fazendo o povo pagar o preço, sem a decisão firme de rever e reformar o
sistema todo, reafirma um domínio absoluto das finanças que não tem futuro e
que só pode gerar novas crises depois de uma longa, penosa e aparente
cura."
"Faz falta voltar a sentir que
precisamos uns dos outros, que somos responsáveis pelos outros e pelo mundo,
que vale a pena sermos bons e honestos. Já tivemos tempo demasiado de
degradação moral, escarnecendo da ética, da bondade, da fé, da honestidade, e
chegou a hora de tomar consciência de que essa alegre superficialidade nos
serviu de pouco."
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