O que faz da Suécia um dos países menos
corruptos do mundo? Entenda como desde a década de 70 só houve dois casos de
corrupção política naquele país a nível nacional
Texto da jornalista Claudia Wallin, retirado do livro ‘Um País sem Excelências e Mordomias’. No trecho abaixo, a jornalista entrevista Gunnar Stetler, responsável pela corrupção na Suécia.
Gunnar Stetler franze a testa, pisca
duas vezes e contrai os músculos do rosto, como quem faz um cálculo
extraordinário. Percorre os labirintos da memória durante uma longa pausa, e
encontra enfim a resposta: nos últimos 30 anos, ele diz, foram registrados
apenas dois casos de corrupção entre parlamentares e integrantes do governo na
Suécia.
”Tenho apenas uma vaga lembrança”, diz Stetler. ”É muito raro ver deputados ou membros do Governo envolvidos em corrupção por aqui.”
Estamos no escritório abarrotado de
arquivos e papéis do promotor-chefe da Agência Nacional Anti-Corrupção
(Riksenheten mot Korruption), no bairro de Kungsholmen. A poucos passos dali,
na mesma rua Hantverkargartan, fica a sede da temida Ekobrottsmyndigheten, a
Autoridade Sueca para Crimes Financeiros. Com o sol de abril que enfim derreteu
o gelo de mais um inverno, do outro lado da rua mães passeiam com seus
carrinhos de bebê entre os túmulos do jardim da igreja Kungsholmskyrka, um
hábito comum que se estende a vários cemitérios-parque da cidade.
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Da sua pequena sala, Gunnar Stetler
chefia o trabalho de promotores especializados que investigam os principais
casos de suspeita de corrupção no país. Casos menos graves são processados a
nível regional, nas diversas promotorias distritais que compõem o cerco sueco
contra trapaças, tramóias e falcatruas em geral.
Com 1,93m de altura, expressão grave e
ar insubornável, Gunnar Stetler é descrito na mídia sueca como o maior caçador
de corruptos do país. Entre os casos sob a sua mira em 2013 estava a denúncia
de que a operadora de telefonia sueca TeliaSonera teria pago suborno no valor
de 337 milhões de dólares para estabelecer operações no Uzbequistão.
”Historicamente, 75 por cento das acusações formais contra crimes de suborno na Suécia terminam em condenações”, diz Stetler.
Nascido em 1949, Stetler ganhou fama
após conduzir casos como o de um ex-diretor da empresa sueca ABB, condenado a
três anos de prisão em 2005 por ter desviado 1,8 milhão de coroas suecas para
uma empresa registrada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.
"Chega um momento em que uma pessoa não se contenta mais com um Volvo V70, e quer trocá-lo por um Porsche. A ganância é parte do dilema humano”, reflete Stetler.
Para o promotor-chefe, são três os
fatores que mantêm a Suécia à margem das listas de países gravemente corruptos:
a transparência dos atos do poder, o alto grau de instrução da população e a
igualdade social.
O
que faz da Suécia um dos países menos corruptos do mundo?
GUNNAR STETLER: Em primeiro lugar, a lei
de acesso público aos documentos oficiais. Esta lei, criada na Suécia há mais
de duzentos anos, evita os abusos do poder. Se os cidadãos ou a mídia quiserem,
podem verificar meu salário, meus gastos e as despesas de minhas viagens a
trabalho. Meus arquivos são abertos ao público. E acreditamos que, ao colocar
os documentos e registros oficiais das autoridades ao alcance do público,
evitamos que os indivíduos que exercem posições de poder pratiquem atos
impróprios. Esta é a razão principal. Em segundo lugar, é preciso citar a lei
aprovada na Suécia há cerca de 200 anos [em 1842, nota do autor], que
introduziu o ensino compulsório no país e aumentou o nível geral de educação da
população.
Qual
é o impacto de uma população com maior grau de instrução na prevenção da
corrupção?
GUNNAR STETLER: Se uma pessoa não tem
acesso à educação, ela não tem condições nem de compreender e muito menos de
fiscalizar o sistema. Na Suécia, acreditamos que uma sociedade se constrói não
a partir do topo, mas a partir da base da população. Portanto, é preciso
oferecer uma boa educação a todas as camadas da sociedade. A China tem um alto
grau de corrupção, mas vem investindo na melhoria do nível de instrução da
população. Creio que isto irá, de certa forma, reduzir a corrupção no país.
Com
que frequência o seu telefone toca com denúncias de corrupção?
GUNNAR STETLER: Recebo cerca de quatro
ligações do público todos os dias. Mas de cada 15 denúncias, em geral apenas
uma tem base para caracterizar um caso. A maior parte dos casos se refere a
questões de menor dimensão, como quando um funcionário público aceita viajar
para um resort a convite de uma empreiteira a fim de facilitar um contrato. Se
você é um funcionário público na Suécia, não está absolutamente autorizado a
aceitar este tipo de convite. Lidamos também com casos de maior envergadura.
Acabo de acusar formalmente um dos chefes do Kriminalvården (sistema prisional
sueco), que recebeu subornos da ordem de milhões de coroas suecas de uma
empresa contratada para construir penitenciárias. Trabalhamos com denúncias do
público, da mídia e também de sistemas nacionais de auditoria, como o
Riksrevisionen (órgão independente que controla as finanças das autoridades
públicas na Suécia).
Qual
é o nível de incidência de casos de corrupção política a nível nacional na
Suécia, entre parlamentares e membros do Governo?
GUNNAR STETLER: É muito raro ver
deputados ou membros do Governo envolvidos em corrupção por aqui.
Qual
foi a última vez que isso ocorreu na Suécia?
GUNNAR STETLER: Se me lembro bem
(pausa)…talvez tenham sido uns dois casos (pausa)…nos últimos (pausa)…trinta
anos.
O
senhor quer dizer que desde a década de 70 só houve dois casos de corrupção
política a nível nacional?
GUNNAR STETLER: Sim.
Que
casos foram esses?
GUNNAR STETLER: Se não me engano (pausa)…há cerca de dez anos (pausa)…um deputado
do Parlamento, representante da costa oeste, cometeu um erro (pausa)…tenho
apenas uma vaga lembrança.
Se
o senhor tem apenas uma vaga lembrança sobre o que seriam os dois únicos casos
de corrupção política a nível nacional nos últimos 30 anos, pode-se presumir
que não tenham sido grandes escândalos?
GUNNAR STETLER: Sim. Em termos de
corrupção política, casos mais sérios ocorrem principalmente nas
municipalidades.
Mas
a última vez que um político sueco foi condenado à prisão por corrupção foi
aparentemente em 1995. Isso significa que o grau de corrupção política na
Suécia não é em geral grave o suficiente para exigir pena de prisão, ou é um
sinal de que o sistema é leniente com políticos corruptos?
GUNNAR STETLER: Na Suécia, em geral,
toda punição é leniente.
Como
assim?
GUNNAR STETLER: No sistema penal sueco,
o princípio básico não é a punição, e sim a reintegração do indivíduo à
sociedade. Esta é a nossa tradição. O código penal não prevê punição
especialmente dura para casos de corrupção política.
Punições
mais severas não são então a resposta para combater a corrupção política?
GUNNAR STETLER: Quem pune políticos
corruptos é a opinião pública. Se um deputado ou um funcionário da
administração estatal pratica um ato de corrupção, ele será punido severamente
pela sociedade, principalmente por ter cometido um erro a partir de uma posição
de poder. Um deputado, por exemplo, pode ser forçado a renunciar através da
pressão da opinião pública e da mídia, mesmo quando não é indiciado
formalmente.
Há
alguma regra especial para investigar e processar políticos por crimes de
corrupção, como a necessidade de obter aprovação do Parlamento ou de algum
comitê?
GUNNAR STETLER: Não.
Cabe
principalmente à mídia e aos cidadãos fiscalizar o poder, ou a instituições como
a que o senhor dirige?
GUNNAR STETLER: Cabe, em primeiro lugar,
à imprensa livre. Se a mídia tem acesso aos documentos oficiais, ela poderá
agir, juntamente com os cidadãos, para garantir uma sociedade mais limpa. É
claro que agentes oficiais, como a Agência Anti-Corrupção, também cumprem um
papel importante. Presumo que talvez, no Brasil, os cidadãos não confiem em
servidores públicos como eu. Mas na Suécia a maior parte das pessoas confia nas
agências do poder público, e uma das razões disso é o fato de que os cidadãos
podem supervisionar o que as agências fazem.
Como
é o trabalho da Agência Nacional Anti-Corrupção?
GUNNAR STETLER: Nosso foco principal é o
suborno. Pode-se dizer que o suborno, tanto na esfera pública como no setor
privado, é um câncer para qualquer sistema. Mesmo quando o valor do suborno é
muito baixo, ele pode influenciar uma licitação no valor de um bilhão de coroas
suecas. No setor público, é importante que as compras de bens e serviços sejam
realizadas de modo correto. A construção de um novo hospital, por exemplo, pode
custar cerca de 1,7 bilhão de coroas suecas (cerca de 260 milhões de dólares).
Quando uma agência do setor público lida com um contrato deste porte, é
importante que haja uma distância entre a empresa que vai construir o hospital
e os funcionários públicos que vão aprovar tal contrato. No meu ponto de vista,
e penso que a maioria das pessoas na Suécia concorda, é essencial que
funcionários públicos não aceitem ofertas ou presentes de nenhum tipo, mesmo os
de baixo valor.
Os
suecos em geral parecem realmente ter receio da regra que proíbe aceitar
qualquer brinde ou presente com valor acima de aproximadamente 400 coroas
suecas.
GUNNAR STETLER: Em geral, nenhum
funcionário público ou privado na Suécia é autorizado a aceitar brindes ou
presentes acima de 300 ou no máximo 400 coroas (entre cerca de 46 e 60
dólares). Na minha posição, não posso aceitar nada.
Nada?
GUNNAR STETLER: Não. Nem mesmo um café
com wienerbröd (tipo de pão doce sueco). E não acho que políticos ou
funcionários públicos na Suécia aceitam, em geral, o que é considerado como
suborno real, ou seja, grandes subornos.
Não
acontece?
GUNNAR STETLER: Pode acontecer, mas não
é normal. A questão é definir o que é considerado como um suborno. Para alguns,
aceitar um convite para jantar ou passar o fim-de-semana em um resort não
configura um suborno. Mas na Suécia, convites deste tipo caracterizam de fato
um suborno. Principalmente para aqueles que trabalham no setor público.
Aceitar
um convite para jantar pode então ser considerado um crime?
GUNNAR STETLER: Na minha opinião, uma
pessoa ou empresa privada não pode convidar um funcionário público para jantar,
se há um negócio envolvido entre as duas partes.
Qual
é o seu melhor conselho para um país como o Brasil se tornar uma sociedade mais
limpa?
GUNNAR STETLER: É preciso compreender
que esta é uma tarefa que não pode ser cumprida em 24 horas. Para combater a
corrupção, é necessário implementar um sistema de ampla transparência dos
poderes estatais, aumentar o nível de educação da população em geral, e
promover a igualdade social. A educação é o princípio básico do que chamamos na
Suécia de jämlikheten (a igualdade social). E este é também um fator importante
na prevenção da corrupção. Parece-me que o Brasil é um país com enormes
desigualdades sociais.
Qual
a importância da igualdade social neste processo?
GUNNAR STETLER: Se uma pessoa tem que
lutar diariamente por sua sobrevivência, para ter acesso a alimentação, escolas
e hospitais, a questão do combate à corrupção na sociedade certamente não
estará entre seus principais interesses. Mas quando uma pessoa se sente parte
da sociedade à qual pertence, passa a não aceitar os abusos do poder.
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