«homens de "boa vontade" podem reunir-se à volta de valores de progresso, humanismo, liberdade.»
1. Foi um convite generoso e
insistentemente amável da venerável mestra da Loja África, da Grande Loja
Feminina de Portugal, que me levou recentemente a uma daquelas sessões brancas
da maçonaria nas quais podem participar "profanos". O tema era
reflectir sobre a percepção pública da maçonaria.
Comecei por dizer que não sou membro da
maçonaria. Tive contactos com maçons. Os primeiros foram com Raul Rêgo, com
quem participei em debates. Falei várias vezes com o cardeal Costa Nunes, mas
nunca sobre a maçonaria. A convite do então grão-mestre, António Reis,
participei num grande encontro sobre as religiões, o diálogo e a paz. Estive
uma segunda vez com ele, numa sessão branca, tendo discutido a distinção, que
ele aceitou, entre laicidade - o Estado laico, aconfessional, é decisivo para a
defesa e salvaguarda da liberdade religiosa de todos - e laicismo, que
pretenderia retirar a religião do espaço público, confinando-a ao espaço
privado.
Encontro muitas vezes um estimado amigo,
António Arnaut, que já foi grão-mestre, que se confessa "agnóstico
cristão", a quem se deve esse milagre chamado Serviço Nacional de Saúde e
que cita amavelmente "um filósofo - Anselmo Borges", que diz que o
problema dos católicos é nem sempre serem cristãos, e frei Bento Domingues, que
escreveu que "liberdade, igualdade, fraternidade são filhos laicos do
Evangelho". Foi António Arnaut que disse que, infelizmente, a maçonaria
precisa de uma limpeza, como o Papa Francisco está a fazer na Igreja, pois
muitos entraram, não por causa dos seus ideais autênticos - aperfeiçoamento
espiritual e promoção da tricolor: liberdade, igualdade e fraternidade -, mas
por interesses outros: pessoais, partidários, de lóbis.
Realmente, é essa a percepção frequente:
a maçonaria como plataforma de interesses outros, cumplicidades entre política
e negócios, tráfico de influências. Também chega à opinião pública a luta, por
vezes violenta, entre obediências. Perguntei por esses conflitos e pelo
secretismo, citando o famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que não
entendia como é que numa sociedade democrática e aberta ainda há sociedades e
grupos que se refugiam no segredo, e citava a maçonaria e o Opus Dei.
No quadro dos autênticos ideais
maçónicos - liberdade, democracia, companheirismo, fraternidade, humanismo,
espiritualidade, aperfeiçoamento interior -, não vejo porque é que há-de haver
conflito entre ser católico e maçon.
2. As relações entre maçonaria e Igreja
oficial não têm sido pacíficas. Pelo contrário, e vou seguir Henri Tincq (Le
Monde des Religions, Nov.-Dez., 2010). A maçonaria foi, desde a sua origem,
condenada pelo papado, acusada de imoralidade, heresia, segredo. Logo no século
XVIII, Bento XIV (1751) escreve: "Se estes homens não praticassem o mal,
teriam um tão grande horror à luz?" Todos os papas do século XIX
consagraram um documento à denúncia das sociedades secretas, associando a
maçonaria ao liberalismo, cientismo, positivismo, modernismo. O
anticlericalismo desencadeou uma "literatura delirante" à volta do
"complot judeo-maçónico". Neste clima, mesmo Leão XIII, considerado
liberal, escreveu a encíclica Humanum Genus, que descreve dois campos inimigos:
a Igreja, "reino de Deus sobre a Terra", e a maçonaria,
"sinagoga de Satã", atribuindo-lhe a pretensão de secularizar a
sociedade, através do divórcio e da escola. No princípio do século XX, o Código
de Direito Canónico pune com a excomunhão todos os que pertencem à
"seita" maçónica ou a associações que "maquinam" contra a
Igreja.
Foi com o Concílio Vaticano II
(1962-1965) que se passou a alguma vontade de diálogo. O novo código, de 1983,
já não cita expressamente a maçonaria. Mas o cardeal Ratzinger, futuro papa
Bento XVI, escreveu, nesse mesmo ano, que a posição da Igreja permanece
inalterada, que a inscrição numa loja continua proibida e que quem o fizer fica
num estado de "pecado grave", sem poder aceder aos sacramentos.
Continuam as diferenças entre católicos
e maçons, nomeadamente quanto ao aborto, o reconhecimento da eutanásia, o
casamento homossexual, a homoparentalidade. Mas "a tolerância vai
vencendo": já se não nega o funeral religioso a maçons, há "sessões
brancas fechadas", com a presença de bispos e até de cardeais, e católicos
que "vivem serenamente a dupla pertença": homens de "boa vontade"
podem reunir-se à volta de valores de progresso, humanismo, liberdade.
3.Todos os cidadãos têm, no quadro da
lei, direito ao segredo. Mas ainda se justifica hoje o segredo maçónico? De
qualquer modo, gostei de ler um bem conhecido maçon, Ricardo Sá Fernandes,
quando recentemente disse ao i: "Não tenho a mais pequena dúvida: se eu
detectasse situações de corrupção na maçonaria, obviamente que a denunciaria à
justiça profana. Sou, primeiro, cidadão, e só depois maçon. E se tivesse uma
varinha mágica, convenceria todos os meus irmãos a assumir que são maçons
quando estão em cargos públicos e políticos."
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