sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

GUINÉ BISSAU CRISE POLÍTICA 2015-2016


Por, Fernando Casimiro (Didinho)

Não sei se esta minha análise será oportuna para o desfecho da actual crise guineense, mas deve ser registada, aliás, tudo o que escrevo desde 2003 a esta parte está registado, para quando for oportuno, ser publicado em livro através de colectâneas. Não sei quando será, face aos custos de publicação e perante tanto material escrito, mas o desafio está lançado!
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Também não havia praticamente documentação sobre a Constituição e as Leis da Guiné-Bissau na Internet e nós trabalhamos nesse sentido, digitalizando e disponibilizando online tudo o que conseguimos obter através de pessoas amigas que colaboraram connosco nesse sentido, aliás, as instituições do Estado nem sequer tinham espaços na Internet.

Era importante trabalharmos a digitalização e a disponibilização da Constituição e das Leis da República na Internet, porque era e continua a ser a Internet o nosso espaço privilegiado de trabalho, e como a Cidadania era e continua a ser o nosso propósito generalizado, tínhamos que fundamentar o nosso trabalho através da Constituição e das Leis da República, tendo em conta a Organização Política do nosso Estado, por um lado e, os Direitos Fundamentais por outro.

Os cidadãos, ainda que politizados, estavam partidarizados e em função dessa partidarização, mesmo que esclarecidos pela politização, estavam consciente ou inconscientemente (nalguns casos) manipulados pelo compromisso de servir sempre os interesses dos seus partidos políticos, em detrimento dos interesses do País, a Guiné-Bissau, e do Povo Guineense.

Havia uma cultura de subjugação, instalada desde o tempo do monopartidarismo, ou seja, em que havia um Partido político que assumia o papel, as funções, as tarefas e as actividades do Estado na sua plenitude.

A Sociedade Guineense foi barbaramente agredida no essencial dos seus Direitos Fundamentais, Liberdades e Garantias, ao longo de muitos anos de ditadura do Partido/Estado e do Estado dirigido pelo absolutismo de um poder egocêntrico!

Foram desvirtuados os princípios e os valores universais de relacionamento civilizacional baseado na harmonia, na fraternidade, no respeito e na solidariedade humana.

Foram plantadas "sementes" sustentadas por princípios assentes numa relação de poder, baseada no uso da força, através duma ditadura política e militar, dada a natureza da configuração e da relação política e militar dos máximos dirigentes do País.

Alguns filhos da terra que ousaram desafiar essa ditadura foram perseguidos, detidos, torturados e barbaramente assassinados.

O Poder que deveria servir o País e os Guineenses, transformou-se no poder de servir os interesses dos dirigentes, seus familiares e amigos, mas também de negar ou condicionar a Liberdade e os Direitos aos guineenses.

A estratégia da ditadura assentava na promoção do medo e no aliciamento de todos para a consolidação do Projecto ditatorial.

A relação de parentesco foi usada para expandir a conivência e cumplicidade com a ditadura, contribuindo para a propagação das sementes da ditadura, dos seus métodos e vícios.

Foi este o período que transformou completamente a Sociedade Guineense, pela negativa, tornando cada guineense vigilante/polícia do seu irmão guineense, sem que, aquele que sabia que estava a fazer um serviço para o poder ditatorial, soubesse ou desconfiasse que também ele estava a ser alvo de vigilância por parte de outro guineense...

Foram cultivadas e incentivadas práticas nefastas na Sociedade, tais como a violência, o medo, a corrupção, a intriga, o ódio, a vingança, a intolerância e a humilhação, que nos dias de hoje ajudam a compreender a cultura da bajulação na nossa sociedade.

Banalizou-se o conceito de Estado, que deixou de ser do Partido único, para ser de fulano, que também era dono do partido único e de todos os guineenses que lhe eram submissos. A disfuncionalidade do Estado nos dias de hoje é fruto dessa administração que se enraizou e fez "escola".

Não vou alongar mais nesta introdução, mas era importante revermos, ainda que sucintamente, como chegamos até aqui, enquanto Sociedade.

Diria que nos dias de hoje, a politização do cidadão consciente passa pelo conhecimento, independentemente do grau, da Constituição e das Leis da República; dos seus Direitos e dos seus Deveres, para que não seja absorvido pela manipulação da estratégia de partidarização das máquinas de propaganda dos partidos políticos.

A actual crise política, que também assume o contexto social, não merecia, a meu ver, nesta fase, um regresso a 12 de Agosto de 2015 ou seja, à data da demissão do então Primeiro-ministro Eng.º Domingos Simões Pereira, para ser analisada na sua particularidade, mas como tenho lido e ouvido várias abordagens de recuo no tempo sobre o assunto, não posso deixar de fazer uma análise pontual sobre esse período recente.

Ficamos todos desiludidos com a decisão do Sr. Presidente da República de demitir o Governo chefiado pelo Eng.º Domingos Simões Pereira, pois a Guiné-Bissau estava a dar sinais encorajadores de querer procurar um novo rumo para a estabilidade governativa, quiçá, para o desenvolvimento, e por mais razões que tivesse para demitir o Governo, deveria promover um diálogo alargado sobre o assunto sem prejuízo e sem desrespeito pelos seus poderes e competências constitucionais.

Constatamos que a inclusão governativa tinha garantido a estabilidade política, que, por sua vez, permitiu que sinais claros de desenvolvimento fossem observados.

Escrevemos sobre as disputas que culminaram com a demissão do Governo do Eng.º Domingos Simões Pereira, posicionando-nos, não contra fulano ou a favor de beltrano, mas, em nome do Interesse Nacional, ou seja, da Guiné-Bissau e dos Guineenses, tendo por referência a Constituição e as Leis da República e na tentativa de ajudar os políticos a se entenderem a bem do país.

Alertamos na altura, para o que em nossa opinião eram decisões inconstitucionais por parte do Sr. Presidente da República.

O Supremo Tribunal de Justiça solicitado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade, não da demissão do antigo Primeiro-ministro Eng.º Domingos Simões Pereira, mas da nomeação de um novo Primeiro-ministro, o Dr. Baciro Djá, pelo Presidente da República (Decreto-Presidencial nº 6/2015 de 20.08.2015) sem observância do estabelecido na Constituição da República, declarou inconstitucional a decisão presidencial (acórdão nº1/2015 de 08.09.2015) que culminou na revogação do decreto presidencial que tinha nomeado o Dr. Baciro Djá como novo Primeiro-ministro.

A Guiné-Bissau continuava estagnada, bloqueada, por uma disputa institucional que já não conseguia disfarçar que era sustentada sobretudo, por uma disputa de egos.

O Presidente da República foi obrigado a recuar, aceitando o Acórdão do Supremo Tribunal e promovendo, de seguida, diligências para o cumprimento das formalidades constitucionais visando a nomeação de um novo Primeiro-ministro, que recaiu na pessoa do Eng.º Carlos Correia, designado pelo PAIGC enquanto partido vencedor das eleições legislativas com maioria absoluta e ouvidos todos os partidos políticos com assento parlamentar.

Foi a primeira vez que uma decisão delicada teve um pronunciamento que se pode considerar justo, baseado na estrita observância e interpretação jurídica e não política, da Constituição e das Leis da República, por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Também não é de ignorar que foi a primeira vez que uma decisão do género não provocou atitudes de força, de retaliação e perseguição por parte de um Presidente da República.

Porém a crise ainda que com o desfecho final produzido através do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, só foi desbloqueada através do diálogo político, com a mediação da CEDEAO através do ex-Presidente da Nigéria, General Olusegun Obasanjo que se deslocou a Bissau reunindo-se com todas as partes envolvidas na crise, obtendo o compromisso de todos para a viabilização da Governação, contudo, uma importante sugestão deixada por Obasanjo aos actores guineenses, não foi posta em prática. A assinatura de um Pacto de Estabilidade para o país.

Em nosso entender, pode ser a causa da continuação da crise, pois seria um instrumento regulador da convergência de todos face ao imperativo da viabilização do país.

Contrariamente ao que tenho lido e ouvido, penso que desde as eleições Presidenciais e Legislativas de 2014 os sintomas da ditadura na Guiné-Bissau, pela primeira vez não estão no dirigismo do Estado, mas sim, nalguns partidos políticos.

Ninguém foi perseguido, detido, torturado ou assassinado, desde então, por criticar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia Nacional Popular, o Primeiro-ministro ou o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Ninguém está privado dos seus Direitos Fundamentais, chegando-se a constatar que até há abusos de cidadãos relativamente aos seus Direitos Fundamentais.

Desde que o Primeiro-ministro Eng.º Carlos Correia foi empossado e mais tarde o seu governo, ainda que, sem a atribuição de 2 pastas governamentais, o que também mereceu o nosso reparo, pois deveria haver entendimento entre o Presidente da República e o Primeiro-ministro para que os ministros propostos fossem aceites e empossados, ou, uma nova sugestão mais consensual fosse viabilizada, a bem da estabilidade e da funcionalidade governativa, a tensão institucional diminui entre a Presidência da República e a Primatura, mas não entre o Presidente da República e o PAIGC.

O novo Governo constituído e empossado deixou de contar com a participação/inclusão do Partido da Renovação Social ainda que tenha sido convidado pelo PAIGC, por falhanços nas negociações sobre atribuições de pastas, mas também, porque o PRS decidiu fazer uma oposição digna do termo, que não passava por viabilizar tudo, apenas por estar no Governo.

O novo governo sabia que tinha que apresentar o seu Programa no Parlamento em tempo útil.

O PRS questionou o facto de o Programa do Governo não ter sido submetido ao parlamento em tempo oportuno, mas houve entendimento e foi agendada a plenária do parlamento para a apresentação e discussão do Programa do Governo.

Até aqui, ninguém ouviu nada sobre o Presidente da República. Tudo passava pelo parlamento, pelos partidos políticos com assento parlamentar e pelo governo, o que dava a entender uma nova postura do Presidente da República perante a necessidade de respeitar o princípio estruturante da separação de poderes dos órgãos de soberania.

Entretanto, à margem das estruturas do Estado, os partidos políticos estavam confrontados com problemas internos, com particular destaque para o PAIGC, que tinha alas divergentes provocadas pela confrontação consequente do processo de liderança partidária do Congresso de Cacheu que não foi gerido de forma a harmonizar o partido, garantindo a sua unidade, coesão e reforço da confiança na liderança eleita.

A liderança eleita do PAIGC, em nosso entender não soube avaliar os resultados eleitorais do Congresso de Cacheu a fim de considerar e traduzir em união, coesão, quiçá, em Ganho e Força do próprio partido, os números e a percentagem quer do candidato vencedor, quer do candidato derrotado.

A nova liderança do PAIGC devia considerar e promover a aproximação ao candidato derrotado no Congresso, ciente de que, ficou demonstrado que também esse candidato tinha muitos apoios no partido, evitando a sua desconsideração, evitando uma consequente divisão no seio do partido, evitando o enfraquecimento do partido.

O Presidente da República apesar de ser militante do PAIGC e de ter sido apoiado pelo mesmo partido nas eleições legislativas, não teve nenhum papel directo quer na eleição do Presidente do PAIGC e muito menos na divisão e confrontação interna no PAIGC pós Congresso de Cacheu. Porém, perante as crises políticas e institucionais, é referenciado por algumas pessoas como sendo o instigador das divergências internas do PAIGC. Será?

E qual deve ser o papel do Presidente de um partido político perante divergências no seio do partido que dirige, senão promover o diálogo, a concertação, aproximação, entendimento, para salvaguardar a unidade, a coesão, em suma, a força do próprio partido?

Não se consegue promover nenhum entendimento sem haver diálogo e optando por medidas radicais.

A crise interna no PAIGC extravasou para a esfera social, dividindo os guineenses e criando um clima de preocupação generalizada.

A crescente divisão social em alas de apoios às partes em conflito no PAIGC por sua vez, ajudou a incentivar ainda mais a sua crise interna, com algumas vozes a associar o Presidente da República a essa crise partidária, numa alegada estratégia para dividir e enfraquecer o partido, visando uma jogada política no Parlamento na altura da apresentação e discussão do Programa do Governo.

Chegado o dia da apresentação do Programa do Governo na Assembleia Nacional Popular, houve de tudo, menos debate do referido Programa.

O Parlamento serviu, nesse dia, de sede partidária para lavagem de roupa suja entre as partes desavindas no seio do Grupo Parlamentar do PAIGC.

Quando o Presidente da Assembleia Nacional Popular deu por findo o período de debate, nenhuma bancada parlamentar apresentou uma moção de rejeição ao Programa do Governo, tendo sido o Sr. Primeiro-ministro Eng.º Carlos Correia a fechar o debate, o mesmo, solicitou uma moção de confiança ao seu Programa, o que, em nosso entender, era desnecessário, pois não havendo uma solicitação de uma moção de rejeição, por parte de qualquer Grupo Parlamentar, o Programa passava automaticamente sem ter que ser votado.

Foi aqui, em nosso entender, que a crise ganhou novas dimensões, projectando toda a sensibilidade política e social para uma base assente na emotividade e não na racionalidade.

Tal como na crise que culminou com a demissão do Governo liderado pelo Eng.º Domingos Simões Pereira, a nossa missão consiste em analisar os fundamentos da actual crise, tendo em conta a Constituição e as Leis da República e suas violações por parte dos actores envolvidos e tentar ajudar na busca de soluções.


Em nosso entender o epicentro da actual crise é a Assembleia Nacional Popular, daí nos centrarmos na análise dos acontecimentos aí registados.



Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.

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