«A convivência na sociedade e, ainda mais, na
comunidade cristã (familiar, paroquial, diocesana) conta sempre com as atitudes
mais nobres e sadias das pessoas. Os caminhos, antes de chegar às autoridades,
passam pela aproximação e confiança, pelo relacionamento e diálogo, pelo
reconhecimento e aceitação incondicional do outro.»
O agir humano é o nosso espelho mais polido,
reflectindo capacidades e limitações. Sobretudo na relação com os outros, fora
da qual perde vigor e acaba por se esvaziar a humanidade que nos qualifica.
Surge então a desconsideração do outro como pessoa, em gestos e palavras, que
traduzem sentimentos negativos, de distanciamento, de crítica amarga e ostensiva,
de ofensa infundada.
Como refazer a relação de modo integral? Só a
resposta positiva, ainda que penosa, nos repõe a dignidade ferida, supera o
fosso aberto, vence as distâncias criadas. Outras atitudes mantêm e podem
agudizar o sentimento negativo e ser tolerante passivo, agravar a emoção
sentida e alimentada, pagar na mesma “moeda”, retaliar com vingança, excluir o
indesejado do círculo de relações, deixar “cair os braços” e esperar que uma
crosta se imponha e gere a indiferença. Ou pura e simplesmente, recorrer ao
tribunal civil que, apesar da sua nobre função, não resolve questões de
consciência.
A tolerância activa é uma atitude de profundo
respeito que revela lucidez e coragem, ponderação e sentido de oportunidade.
Não é sinónimo de imposição incriminatória, nem de reacção moralista e
uniformizadora. Pelo contrário, traduz o reconhecimento da dignidade ferida, da
convivência desfeita, da relação cortada naqueles que estão chamados, por
natureza e pela bênção de Deus, à harmonia das diferenças legítimas no todo da
humanidade. Quando degenera, dá origem ao tolerantismo que, indiferente ao bem
comum, deixa andar as “coisas” ao sabor da corrente, tenha ela o colorido que
tiver.
A convivência na sociedade e, ainda mais, na
comunidade cristã (familiar, paroquial, diocesana) conta sempre com as atitudes
mais nobres e sadias das pessoas. Os caminhos, antes de chegar às autoridades,
passam pela aproximação e confiança, pelo relacionamento e diálogo, pelo
reconhecimento e aceitação incondicional do outro. Neles se encontra Deus a dar
suporte ao esforço e a alimentar a persistência e ousadia. Embora profundamente
unidas, a acção é um fruto da pessoa e, como tal, diferente. A dignidade diz
respeito à pessoa; a “maldade” ofensiva atinge a acção. Considera-se e ama-se
aquela e, por isso mesmo, detesta-se esta e oferece-se ajuda para ser superada
ou, mesmo, sanada a “lesão” provocada na consciência. ( Mt 18, 15-20)
O perdão surge como a atitude mais nobre no processo
histórico de refazer os laços quebrados por ofensas humanas. Antes da pena de
Talião – olho por olho e dente por dente – a medida da vingança era
desproporcional à ofensa. Depois, ganha raízes a solidariedade que une os
irmãos entre si e entre os judeus, membros da mesma raça. Finalmente, a
mensagem cristã apresenta o exemplo admirável de Jesus de Nazaré e do movimento
por ele iniciado – a Igreja.
O perdão de Jesus é para todos, até para os seus
inimigos e algozes. A súplica do Calvário fica como testemunho da sua vida e
lema emblemático do comportamento dos seus discípulos. Estêvão, Paulo de Tarso,
e tantos outros, sem esquecer João Paulo II que vai à prisão em gesto de
misericórdia, constituem exemplos luminares desta atitude sanante que muitos
realizam na maior simplicidade e discrição.
A consciência humana foi evoluindo e atingiu uma
fase de humanização jurídica no que diz respeito às pessoas que praticam actos
ilícitos. A justiça tem leis que a legitimam. E ainda bem! Oxalá a sua prática
as honre. Não se pode ignorar o crime em todas as suas formas, a desfaçatez e a
arrogância em todos os seus modos que espezinham a dignidade dos outros e o
valor dos seus bens, a corrupção, a fraude e tantas outras “ofensas” à
dignidade humana, ao bem comum da sociedade e ao Estado de direito.
A atitude cristã acolhe e promove a justiça, como
passo fundamental do processo de reconciliação. No entanto, o horizonte humano
permanece aberto a novas dimensões, das quais se destaca o perdão
incondicional, proporcionado por quem é ofendido, ao seu ofensor.
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