A Guiné-Bissau é permeada por uma das mais
críticas crises políticas de sua tenra democracia, um dos mais profundos e prolongados
impasses políticos e institucionais do seu curto e tumultuado percurso de
experiência democrática. Mais uma vez, quase como sempre, o Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) é autor e actor dessas tacanhas e
vexaminosas disputas políticas que, primeiramente, castigam social e economicamente
o já martirizado povo guineense e em segundo plano reemitem ao mundo a
recorrente imagem de ausência de seriedade e organização política e institucional
do Estado guineense, cuja soberania nacional foi lograda pelo próprio PAIGC há
mais de quatro decênios.
A corrente crise política, a qual
conheceu o seu apogeu com a nomeação e posse do governo de Baciro Djá, se
caracteriza por congelamento de normal processo de institucionalidade estatal,
tendo o mesmo paralisado plenamente as relações entre os poderes executivo e
legislativo. Aliás, este último se nega ipsis litteris a cumprir com as
obrigações legislativas a ele delegadas pelo povo. A paralisia institucional em
causa é inequivocamente concebida e deliberada como um mecanismo estratégico de
constrangimento ao Presidente da República a pôr termo a esta legislatura ou ao
governo de Djá contestado pelo PAIGC, certo?
Disse que esse foi o momento auge da
crise política em análise porque há dois anos o imbróglio já tinha se revelado
a todos quando o primeiro magistrado da nação depós o primeiro governo desta
legislatura. Portanto, é irrefutável que a destituição daquele governo, algo
que defendi como não ideal naquela ocasião antes mesmo de sua concretização,
precipitou todo o processo de radicalização política que hoje inunda o cenário
político guineense. Do decreto presidencial que exonerou o referido governo criou-se
e consolidou-se a narrativa política de que o Presidente José Mário Vaz
(JOMAV) foi o único factor de hodierno
impasse político. Sim, o único, não o PAIGC.
Ao ter a sua imagem fortemente ligada ao
chamado grupo dos 15 deputados dissidentes e expulsos do partido
independentista – é incontestável que o Chefe de Estado sempre se associou a
esta ala – Vaz e os “parlamentares insubmissos” foram apontados pelo PAIGC como
causa da paralisia política e institucional a que o país foi propositadamente
submetido. De novo, estes sim, não o PAIGC.
Quando o Partido de Renovação Social
(PRS) – o qual foi aliado dos libertadores no primeiro governo da actual
legislatura – integrou o vigente governo patrocinado pelo Chefe de Estado, ao
lado de Mário Vaz os renovadores se revelavam no discurso político do PAIGC
como uma organização partidária usurpadora do poder que não lhe era legítimo.
Por conseguinte, mais uma vez, o partido de milho e arroz estava, conforme o
PAIGC, a colaborar pela fragilização democrática e consequente debilidade
governativa e institucional. Nesse caso, contudo, como os mais atentos às minhas
análises, devem ter ciência, argumentei desde o primeiro momento de que a
associação do PRS ao governo do PAIGC não faria bem aos libertadores em termos
da reconciliação e coesão que estes últimos necessitavam, e nem era
normativamente salutar à nossa delicada democracia que se desprovia de oposição
parlamentar naquele momento, além do próprio facto de que o eleitor havia
outorgado o partido vencedor para governar com a maioria.
Penso que não seria intelectualmente
honesto e neutro dissociar tanto o Presidente JOMAV quanto os deputados
dissidentes e afastados do partido da culpa pelas causas que contribuíram pela
vigente crise política. Em outras palavras, os mesmos têm a sua quota-parte de
responsabilidade para a efectivação desse quadro conflituante. E muito menos
seria procedente e tolerável isentar o PAIGC da culpa de um conflito do qual
ele mesmo é autor, não obstante constituir também vítima do mesmo – a despeito
do povo da Guiné-Bissau ser o principal lesado.
A narrativa política do PAIGC sobre esta
crise é construída a partir de uma estratégia que dissocia o Presidente da
República e os 15 deputados do partido, como se estes pertenciam no momento da
eclosão do conflito a uma outra agremiação e não ao PAIGC. Este tipo de
narrativa busca evitar tachar o PAIGC como instituição e partido fragilizado,
fragmentado e fonte histórica de produção de tensões políticas no país. Esse
discurso estratégico de pessoalização dos fracassos e conflitos políticos emanados
do PAIGC como forma de se resguardar de eventual estigmatização do partido
enquanto instituição, o qual sempre foi instrumentalizado em outros momentos críticos
do partido de Cabral, encontra com relativa facilidade a adesão popular. Entende?
O imaginário colectivo que confunde o
PAIGC com o Estado, o qual se propaga nacionalmente sem significativa
contrariedade, tende a ser uma boa explicação para esse facto. Política e
partidariamente essa estratégia, associada a outros factores, evidentemente,
tem sido eleitoralmente eficaz para os libertadores, entretanto tem contribuído
pelo não ou pouco enfrentamento dos problemas estruturais do partido e do
próprio Estado. Sim, do próprio Estado também. Excepto o período 20002003, o PAIGC
governou o país desde a independência e não prezou pela institucionalidade e organização
administrativa do Estado, tendo constituído o presente tragicómico imbróglio
politico um oportuno exemplo de fragilidade institucional e desacatos judiciais,
revelando uma sistemática violação dos preceitos básicos de convivência republicana
montesquiana de freios e contrapesos.
É incerto se viveremos tempos em que se
esgotará aos olhos populares a estratégia do PAIGC de transferir às pessoas os
seus fiascos políticos e partidários como forma de se legitimar como
instituição partidária.
Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.
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