terça-feira, 2 de abril de 2013

Ética e Medicina

A ética é uma área do saber que investiga sobre o que é bem no agir do homem, na busca do comportamento que conduza à plena realização da pessoa, no âmbito de uma solidariedade com os outros que seja globalmente justa.
Os problemas éticos são resolvidos tendo em consideração princípios éticos, mas também os standards da profissão, as expectativas da sociedade, os desejos individuais, os benefícios esperados, as diversas opções abertas, a disponibilidade de recursos, os valores do indivíduo e o contexto das relações.
Entre os aspectos essenciais para resolver dilemas em Medicina, encontram-se os princípios éticos básicos que sustentam a dignidade da pessoa: autonomia e vulnerabilidade, beneficência, não-maleficência, justiça e confidencialidade.
A este propósito tenha-se ainda presente que a ciência e os seus resultados não resolvem dilemas morais!
Autonomia e vulnerabilidade
A aplicação do conceito de autonomia a nível individual tem as suas origens no iluminismo do século XVIII. Com Kant, a autonomia é a competência da vontade humana para, com fundamento na razão prática, escolher em liberdade as suas leis morais. É também a base da responsabilidade individual.
A autonomia tem a ver com o indivíduo em si e não com qualquer forma de reconhecimento estranha a si. Pelo contrário, a competência ou incompetência de um indivíduo para o exercício da autonomia tem a ver com o reconhecimento para esse exercício, por terceira pessoa.
O exercício da autonomia implica esclarecimento adequado e completo, baseado na verdade e na fidelidade em referência ao estado da arte. Diz respeito à liberdade de decidir, como um direito do indivíduo, sem qualquer tipo de interferência ou coacção, seja de quem for. Pressupõe que as decisões do indivíduo não colidem com a vida e com o respeito que a esta é devido, nem com as finalidades da Medicina.
No âmbito da autonomia desenvolve-se o dilema assente no direito do indivíduo a saber/não saber. O direito a não saber pode ser contrariado, se os resultados de uma análise originarem um dever moral em relação a terceiros. Assim, se houver familiares com risco acrescido para uma doença e o seu tratamento ou prevenção depender da utilização do resultado de uma análise realizada em indivíduo que tenha decidido não querer saber, este resultado deve ser usado para orientar intervenções nos familiares em risco, ainda que esta utilização revele o que se passa com o indivíduo analisado.
Idêntico raciocínio se poderá aplicar aos casos em que um indivíduo conhecedor do resultado de uma análise que tenha realizado, não queira que o seu estatuto seja conhecido, ainda que essa opção prejudique terceiros.
Na verdade, a autonomia pessoal deve ser encarada olhando o indivíduo inserido numa família e na sociedade. O interesse do outro deve ser ponderado quando este puder beneficiar, muito significativamente, da informação recolhida num dos seus membros, evitando contudo, até onde for possível (não-maleficência), o prejuízo de quem acabou por contribuir com os resultados do seu estudo, nomeadamente se for um estudo genético, para o conhecimento de alterações presentes na família.
O princípio da autonomia é frequentemente invocado de forma desadequada. Como exemplo, refira-se a decisão de uma mãe que interrompe uma gravidez face a um teste predizente indicador de elevada probabilidade de o filho vir a ter uma doença grave em adulto. Se a autonomia deve ser modelada no respeito pelo outro, a decisão da mãe deve ponderar os interesses do outro que é o seu filho e não decidir apenas em função de si.
Em sentido contrário, não é infrequente caracterizar como irresponsável a decisão de um casal que, sendo conhecedor do resultado de um teste genético, decide implantar um embrião ou não interromper uma gravidez, estando presente uma anomalia genética que provoca doença grave do filho durante a gravidez, nos primeiros tempos após o nascimento, ou mesmo em idade mais avançada. Contudo, será esta decisão moralmente errada? Se o for para alguns, não o será para todos. Não parece razoável que o conhecimento dado por um teste predizente seja suficiente para transformar em irresponsável uma decisão que pondere em primeiro lugar o valor da vida, e só depois o sofrimento!
Por outro lado, o princípio da autonomia também é valido para o médico, também ele pessoa, cujos juízos, atitudes e comportamentos serão igualmente ditados por valores próprios. Em função dessa autonomia e face ao julgamento da capacidade do consulente para decidir, o médico poderá tomar duas atitudes:
a)- reconhecer a competência do consulente para decidir em liberdade após completo esclarecimento (consentimento informado) e actuar no respeito pleno por esse exercício de autonomia;
b)- perceber que o consulente é incompetente para o exercício do livre-arbítrio e assumir uma posição paternalista e decidir pelo confluente em função do que é considerado bom para o indivíduo (consentimento presumido). Esta ponderação poderá não coincidir com o que o indivíduo consideraria bom se estivesse no pleno uso das suas faculdades. Trata-se, neste caso, de uma atitude de natureza moral, que deve ter como referente a beneficência e o que é considerado socialmente como o bem comum. Sendo tomada sem o consentimento do consulente, deve o consentimento ser procurado, sempre que possível, junto do seu representante legal ou socialmente reconhecido.
Nos casos em que o médico assume uma posição paternalista, a reflexão ética deverá desenvolver-se no respeito pela vulnerabilidade, como princípio aplicável a pessoas incompetentes para decidirem de forma autónoma, como sejam as crianças, os portadores de atraso mental ou os doentes em coma.
Beneficência
Por este princípio, as intervenções médicas devem contribuir para o bem-estar e a dignidade pessoal, elegendo os actos entendidos como os melhores para o interesse do doente ou consulente.
No caso particular dos testes genéticos predizentes, a sua realização apenas deve ter lugar se for possível antecipar um benefício para o indivíduo em causa.
Não-maleficência
A não-maleficência retoma o princípio de Hipócrates primum non nocere. Tal significa que a intervenção médica não dê origem a dano no doente, de forma intencional ou por negligência.
Nos cuidados a ter para cumprir este princípio, inclui-se também o consentimento informado, no que respeita à garantia dos direitos individuais de não divulgação dos resultados, do direito a não saber e à explicação dos procedimentos, dos benefícios e dos eventuais malefícios pessoais.
Justiça
Considerando a saúde como um bem básico, todos os cidadãos devem estar no mesmo plano de igualdade, em termos de acesso aos benefícios proporcionados pelo sistema de saúde, para que se espelhe o princípio da justiça. Num Estado Social, a justiça implica discriminação positiva, com atribuição de custos de forma proporcional ao rendimento e não aos gastos pessoais com as necessidades em cuidados de saúde.
Noutra dimensão mais ampla, a justiça implicará que se combatam as assimetrias no acesso aos bens da saúde já disponíveis, quer se verifiquem dentro de um mesmo país ou entre países em estádios de desenvolvimento diversos.
O pensamento aristotélico ajudou a fundamentar o princípio da justiça ao defender que iguais devem ser tratados de forma igual e desiguais de forma desigual.
Confidencialidade
A confidencialidade sustenta a autonomia, a beneficência e a não-maleficência.
Quando a confidencialidade de determinadas análises médicas não é mantida, podem ocorrer problemas graves, como sejam o conhecimento da falsa paternidade de um filho do casal, até aí desconhecida, o conhecimento de alterações genéticas associadas a risco genético elevado para determinada doença pelo outro membro do casal ou por familiares contra a vontade expressa do portador da alteração, ou a divulgação e conhecimento de alterações de susceptibilidade para doenças do adulto por empregadores ou seguradoras.
Na opinião de alguns autores, o dever moral de avisar familiares de portadores de doenças graves ou de alterações genéticas associadas a doenças graves, e que daí podem tirar benefício, deve prevalecer sobre a confidencialidade, com base no paternalismo justificado. Algumas vantagens deste conhecimento podem passar, por exemplo, pelo diagnóstico precoce, tratamento e prevenção de doenças, pelo planeamento das opções reprodutivas tendentes a evitar a transmissão da forma alterada de um gene, ou pela escolha da ocupação profissional, de modo a evitar as consequências desfavoráveis da exposição a determinado poluente ambiental causador de doença na presença da susceptibilidade genética. Contudo, a divulgação dos resultados pode trazer algumas desvantagens para o indivíduo, como sejam a dificuldade de emprego ou a perda do emprego, a não aceitação de propostas de seguros ou o aumento do montante dos respectivos custos pelas seguradoras, bem como perturbações nas relações familiares, acasalamento não ao acaso, ou angústia a nível psicológico e na relação social.
A confidencialidade também pode acarretar penalizações para a sociedade. Assim, indivíduos que se saibam portadores de alterações genéticas que criam susceptibilidade para doenças graves ou mortais, poderão contratar elevadas indemnizações junto de companhias de seguros, a receber pelo próprio ou por familiares, a um custo calculado para a esperança média de vida da população a que pertence, e não para as suas condições particulares. A falta de honestidade de uns poucos, poder-se-á traduzir em aumento do custo dos seguros para todos, de forma a cobrir o excesso de perdas, ou na neutralização do direito à confidencialidade, pelo menos acima de determinados escalões de indemnização.
Por : Fernando J. Regateiro

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