A
ética é uma área do saber que investiga sobre o que é bem no agir
do homem, na busca do comportamento que conduza à plena realização
da pessoa, no âmbito de uma solidariedade com os outros que seja
globalmente justa.
Os
problemas éticos são resolvidos tendo em consideração princípios
éticos, mas também os standards da profissão, as expectativas da
sociedade, os desejos individuais, os benefícios esperados, as
diversas opções abertas, a disponibilidade de recursos, os valores
do indivíduo e o contexto das relações.
Entre
os aspectos essenciais para resolver dilemas em Medicina,
encontram-se os princípios éticos básicos que sustentam a
dignidade da pessoa: autonomia e vulnerabilidade, beneficência,
não-maleficência, justiça e confidencialidade.
A
este propósito tenha-se ainda presente que a ciência e os seus
resultados não resolvem dilemas morais!
Autonomia
e vulnerabilidade
A
aplicação do conceito de autonomia a nível individual tem as suas
origens no iluminismo do século XVIII. Com Kant, a autonomia é a
competência da vontade humana para, com fundamento na razão
prática, escolher em liberdade as suas leis morais. É também a
base da responsabilidade individual.
A
autonomia tem a ver com o indivíduo em si e não com qualquer forma
de reconhecimento estranha a si. Pelo contrário, a competência ou
incompetência de um indivíduo para o exercício da autonomia tem a
ver com o reconhecimento para esse exercício, por terceira pessoa.
O
exercício da autonomia implica esclarecimento adequado e completo,
baseado na verdade e na fidelidade em referência ao estado da arte.
Diz respeito à liberdade de decidir, como um direito do indivíduo,
sem qualquer tipo de interferência ou coacção, seja de quem for.
Pressupõe que as decisões do indivíduo não colidem com a vida e
com o respeito que a esta é devido, nem com as finalidades da
Medicina.
No
âmbito da autonomia desenvolve-se o dilema assente no direito do
indivíduo a saber/não saber. O direito a não saber pode ser
contrariado, se os resultados de uma análise originarem um dever
moral em relação a terceiros. Assim, se houver familiares com risco
acrescido para uma doença e o seu tratamento ou prevenção depender
da utilização do resultado de uma análise realizada em indivíduo
que tenha decidido não querer saber, este resultado deve ser usado
para orientar intervenções nos familiares em risco, ainda que esta
utilização revele o que se passa com o indivíduo analisado.
Idêntico
raciocínio se poderá aplicar aos casos em que um indivíduo
conhecedor do resultado de uma análise que tenha realizado, não
queira que o seu estatuto seja conhecido, ainda que essa opção
prejudique terceiros.
Na
verdade, a autonomia pessoal deve ser encarada olhando o indivíduo
inserido numa família e na sociedade. O interesse do outro deve ser
ponderado quando este puder beneficiar, muito significativamente, da
informação recolhida num dos seus membros, evitando contudo, até
onde for possível (não-maleficência), o prejuízo de quem acabou
por contribuir com os resultados do seu estudo, nomeadamente se for
um estudo genético, para o conhecimento de alterações presentes na
família.
O
princípio da autonomia é frequentemente invocado de forma
desadequada. Como exemplo, refira-se a decisão de uma mãe que
interrompe uma gravidez face a um teste predizente indicador de
elevada probabilidade de o filho vir a ter uma doença grave em
adulto. Se a autonomia deve ser modelada no respeito pelo outro, a
decisão da mãe deve ponderar os interesses do outro que é o seu
filho e não decidir apenas em função de si.
Em
sentido contrário, não é infrequente caracterizar como
irresponsável a decisão de um casal que, sendo conhecedor do
resultado de um teste genético, decide implantar um embrião ou não
interromper uma gravidez, estando presente uma anomalia genética que
provoca doença grave do filho durante a gravidez, nos primeiros
tempos após o nascimento, ou mesmo em idade mais avançada. Contudo,
será esta decisão moralmente errada? Se o for para alguns, não o
será para todos. Não parece razoável que o conhecimento dado por
um teste predizente seja suficiente para transformar em irresponsável
uma decisão que pondere em primeiro lugar o valor da vida, e só
depois o sofrimento!
Por
outro lado, o princípio da autonomia também é valido para o
médico, também ele pessoa, cujos juízos, atitudes e comportamentos
serão igualmente ditados por valores próprios. Em função dessa
autonomia e face ao julgamento da capacidade do consulente para
decidir, o médico poderá tomar duas atitudes:
a)-
reconhecer a competência do consulente para decidir em liberdade
após completo esclarecimento (consentimento informado) e actuar no
respeito pleno por esse exercício de autonomia;
b)-
perceber que o consulente é incompetente para o exercício do
livre-arbítrio e assumir uma posição paternalista e decidir pelo
confluente em função do que é considerado bom para o indivíduo
(consentimento presumido). Esta ponderação poderá não coincidir
com o que o indivíduo consideraria bom se estivesse no pleno uso das
suas faculdades. Trata-se, neste caso, de uma atitude de natureza
moral, que deve ter como referente a beneficência e o que é
considerado socialmente como o bem comum. Sendo tomada sem o
consentimento do consulente, deve o consentimento ser procurado,
sempre que possível, junto do seu representante legal ou socialmente
reconhecido.
Nos
casos em que o médico assume uma posição paternalista, a reflexão
ética deverá desenvolver-se no respeito pela vulnerabilidade, como
princípio aplicável a pessoas incompetentes para decidirem de forma
autónoma, como sejam as crianças, os portadores de atraso mental ou
os doentes em coma.
Beneficência
Por
este princípio, as intervenções médicas devem contribuir para o
bem-estar e a dignidade pessoal, elegendo os actos entendidos como os
melhores para o interesse do doente ou consulente.
No
caso particular dos testes genéticos predizentes, a sua realização
apenas deve ter lugar se for possível antecipar um benefício para o
indivíduo em causa.
Não-maleficência
A
não-maleficência retoma o princípio de Hipócrates primum non
nocere. Tal significa que a intervenção médica não dê origem a
dano no doente, de forma intencional ou por negligência.
Nos
cuidados a ter para cumprir este princípio, inclui-se também o
consentimento informado, no que respeita à garantia dos direitos
individuais de não divulgação dos resultados, do direito a não
saber e à explicação dos procedimentos, dos benefícios e dos
eventuais malefícios pessoais.
Justiça
Considerando
a saúde como um bem básico, todos os cidadãos devem estar no mesmo
plano de igualdade, em termos de acesso aos benefícios
proporcionados pelo sistema de saúde, para que se espelhe o
princípio da justiça. Num Estado Social, a justiça implica
discriminação positiva, com atribuição de custos de forma
proporcional ao rendimento e não aos gastos pessoais com as
necessidades em cuidados de saúde.
Noutra
dimensão mais ampla, a justiça implicará que se combatam as
assimetrias no acesso aos bens da saúde já disponíveis, quer se
verifiquem dentro de um mesmo país ou entre países em estádios de
desenvolvimento diversos.
O
pensamento aristotélico ajudou a fundamentar o princípio da justiça
ao defender que iguais devem ser tratados de forma igual e desiguais
de forma desigual.
Confidencialidade
A
confidencialidade sustenta a autonomia, a beneficência e a
não-maleficência.
Quando
a confidencialidade de determinadas análises médicas não é
mantida, podem ocorrer problemas graves, como sejam o conhecimento da
falsa paternidade de um filho do casal, até aí desconhecida, o
conhecimento de alterações genéticas associadas a risco genético
elevado para determinada doença pelo outro membro do casal ou por
familiares contra a vontade expressa do portador da alteração, ou a
divulgação e conhecimento de alterações de susceptibilidade para
doenças do adulto por empregadores ou seguradoras.
Na
opinião de alguns autores, o dever moral de avisar familiares de
portadores de doenças graves ou de alterações genéticas
associadas a doenças graves, e que daí podem tirar benefício, deve
prevalecer sobre a confidencialidade, com base no paternalismo
justificado. Algumas vantagens deste conhecimento podem passar, por
exemplo, pelo diagnóstico precoce, tratamento e prevenção de
doenças, pelo planeamento das opções reprodutivas tendentes a
evitar a transmissão da forma alterada de um gene, ou pela escolha
da ocupação profissional, de modo a evitar as consequências
desfavoráveis da exposição a determinado poluente ambiental
causador de doença na presença da susceptibilidade genética.
Contudo, a divulgação dos resultados pode trazer algumas
desvantagens para o indivíduo, como sejam a dificuldade de emprego
ou a perda do emprego, a não aceitação de propostas de seguros ou
o aumento do montante dos respectivos custos pelas seguradoras, bem
como perturbações nas relações familiares, acasalamento não ao
acaso, ou angústia a nível psicológico e na relação social.
A
confidencialidade também pode acarretar penalizações para a
sociedade. Assim, indivíduos que se saibam portadores de alterações
genéticas que criam susceptibilidade para doenças graves ou
mortais, poderão contratar elevadas indemnizações junto de
companhias de seguros, a receber pelo próprio ou por familiares, a
um custo calculado para a esperança média de vida da população a
que pertence, e não para as suas condições particulares. A falta
de honestidade de uns poucos, poder-se-á traduzir em aumento do
custo dos seguros para todos, de forma a cobrir o excesso de perdas,
ou na neutralização do direito à confidencialidade, pelo menos
acima de determinados escalões de indemnização.
Por
: Fernando J. Regateiro
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