- Carta aberta do Presidente da “Fundação Fernando Leite Couto”,
- Mia Couto
- Contra o genocídio de moçambicanos na África do Sul
Lembramo-nos de si em Maputo, nos anos
oitenta, nesse tempo que passou como refugiado político em Moçambique.
Frequentes vezes nos cruzámos na Avenida Julius Nyerere e saudávamo-nos com
casual simpatia de vizinhos. Imaginei muitas vezes os temores que o senhor
deveria sentir, na sua condição de perseguido pelo regime do apartheid.
Imaginei os pesadelos que atravessaram as suas noites ao pensar nas emboscadas
que congeminavam contra si e contra os seus companheiros de luta. Não me
recordo, porém, de o ter visto com guarda costas. Na verdade, éramos nós, os
moçambicanos, que servíamos de seu guarda costas. Durante anos, demos-lhe mais
do que um refúgio. Oferecemos-lhe uma casa e demos-lhe segurança à custa da
nossa própria segurança. É impossível que se tenha esquecido desta
generosidade.
Nós não a esquecemos. Talvez mais do que
qualquer outra nação vizinha, Moçambique pagou caro esse apoio que demos à libertação da África do Sul. A frágil
economia moçambicana foi golpeada. O nosso território foi invadido e
bombardeado. Morreram moçambicanos em defesa dos seus irmãos do outro lado da
fronteira. É que para nós, senhor Presidente, não havia fronteira, não havia
nacionalidade. Éramos, uns e outros, irmãos de uma mesma causa e quando tombou
o apartheid a nossa festa foi a mesma, de um e de outro lado da fronteira.
Durante séculos, emigrantes
moçambicanos, mineiros e camponeses, trabalharam na vizinha África do Sul em
condições que pouco se distinguiam da escravatura. Esses trabalhadores ajudaram
a construir a economia sul-africana. Não há riqueza do seu país que não tenha o
contributo dos que hoje são martirizados.
Por todas estas razões, não é possível
imaginar o que se está a passar no seu país. Não é possível imaginar que esses
mesmos irmãos sul-africanos nos tenham escolhido como alvo de ódio e
perseguição. Não é possível que moçambicanos sejam perseguidos nas ruas da
África do Sul com a mesma crueldade que os polícias do apartheid perseguiram os
combatentes pela liberdade, dentro e fora de Moçambique. O pesadelo que vivemos
é mais grave do que aquele que o visitava a si quando era perseguido político.
Porque o senhor era vítima de uma escolha, de um ideal que abraçou. Mas os que
hoje são perseguidos no seu país são culpados apenas de serem de outra
nacionalidade. O seu único crime é serem moçambicanos. O seu único delito é não
serem sul-africanos.
Senhor Presidente
A xenofobia que se manifesta hoje na
África do Sul não é apenas um atentado bárbaro e cobarde contra os “outros”. É
uma agressão contra a própria África do Sul. É um atentado contra a “Rainbow
Nation” que os sul-africanos orgulhosamente proclamaram há uma dezena de anos.
Alguns sul-africanos estão a manchar o nome da sua pátria. Estão a atacar o
sentimento de gratidão e solidariedade entre as nações e os povos. É triste que
o seu país seja hoje notícia em todo o mundo por tão desumanas razões.
É certo que medidas estão a ser tomadas.
Mas elas mostram-se insuficientes e, sobretudo, pecam por serem tardias. Os governantes
sul-africanos podem argumentar tudo menos que estas manifestações os tomou se
surpresa. Deixou-se, mais uma vez, que tudo se repetisse. Assistiu-se com
impunidade a vozes que disseminavam o ódio. É por isso que nos juntamos à
indignação dos nossos compatriotas moçambicanos e lhe pedimos: ponha
imediatamente cobro a esta situação que é um fogo que se pode alastrar a toda a
região, com sentimentos de vingança a serem criados para além das suas
fronteiras. São precisas medidas duras, imediatas e totais que podem incluir a
mobilização de forças do exército. Afinal, é a própria África do Sul que está a
ser atacada. O Senhor Presidente sabe, melhor do que nós, que ações policiais
podem conter este crime mas, no contexto atual, é preciso tomar outras medidas
de prevenção. Para que nunca mais se repitam estes criminosos eventos.
Para isso urge tomar medidas numa outra
dimensão, medidas que funcionam a longo prazo. São urgentes medidas de educação
cívica, de exaltação de um passado recente em que estivemos tão próximos. É
preciso recriar os sentimentos solidários entre os nossos povos e resgatar a
memória de um tempo de lutas partilhadas. Como artistas e fazedores de cultura
e de valores sociais, estamos disponíveis
para de enfrentar juntos com artistas sul-africanos este novo desafio,
unindo-nos às inúmeras manifestações de repúdio que nascem na sociedade
sul-africana. Podemos ainda reverter esta dor e esta vergonha em algo que
traduza a nobreza e dignidade dos nossos povos e das nossas nações. Como artistas
e escritores queremos declarar a nossa disponibilidade para apoiar a construção
de uma vizinhança que não nasce da geografia mas de um parentesco que é da alma
comum e da história partilhada.
Maputo, 17 de Abril de 2015
Mia Couto
Presidente da Fundação Fernando Leite
Couto
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