“Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito” são as últimas palavras de Jesus ditas na sua vida mortal; palavras
que revelam a sua relação filial e confiança total, condensam o sentido de tudo
quanto fez e ensinou e constituem a sua disposição final. Palavras que ficam
como luz que ilumina as horas decisivas e tormentosas da existência humana, que
alentam as forças debilitadas e frágeis em momentos decisivos, que deixam
captar a centelha de esperança por onde brilha o despontar do futuro num amanhã
aberto que parece definitivamente fechado.
Nas tuas mãos entrego a paixão que
sempre me animou: a de fazer a tua vontade e de mostrar às pessoas a fonte da
sua autêntica dignidade; a de revelar a tua face de Pai misericordioso e de
recriar novas solidariedades humanas; a de ser um Deus de amor benevolente e
criativo que se espelha nas relações sociais e no bem comum; a de alimentar um
sonho belo - que livremente cada um dos que amas consinta na grandeza da sua
vocação: sentar-se à tua mesa, dialogar amigavelmente contigo e com os outros
comensais, constituir uma só família alicerçada na aliança que selaste na minha
entrega constante à missão que me confiaste.
Nas tuas mãos entrego os sentimentos dos
que me rodeiam nesta hora trágica e sofrida: os da minha querida mãe que
confiei ao meu amigo João, que sempre me acompanhou com ternura e preocupação,
que parece desfeita por me ver sofrer tão intensamente. Ela habituou-se às tuas
surpresas. Talvez este hábito lhe dê alento e levante a ponta do véu que oculta
o que me espera. E entrego também a amizade do grupo das mulheres que estão com
ela. Vejo nelas a humanidade de todos os tempos, as suas lutas e canseiras, a
sua aspiração ao reconhecimento da sua dignidade feminina e do sonho tão
ardentemente construído de serem consideradas teu rosto maternal.
Entrego nas tuas mãos a boa vontade dos
homens justos como Simão que, para me ajudar, alterou o seu caminho no regresso
do trabalho e carregou também com a cruz em que me colocaram, como José meu pai
legal que por mim fez o melhor: na família, na vizinhança, na sinagoga, no
templo; como tantos outros aqui representados em Nicodemos e José de Arimateia.
A todos os que sabem viver o masculino como a outra face do teu rosto e assumem
generosamente a paternidade humana como colaboração contigo, fonte pujante de
vida criativa, aqui lhes deixo o apreço e faço a sua entrega.
Nas tuas mãos entrego os que intervieram
no processo que me leva à morte que se aproxima: os partidários do servilismo
legal, os funcionários do sagrado religioso, os detentores do poder político e
militar, os agitadores e manipuladores das multidões instáveis, os hipócritas
que sentem na sua consciência uma coisa e fazem outra. Entrego-os nas tuas
mãos, ó Pai, contando com a tua compaixão e misericórdia. Certamente não
mediram a gravidade do que fizeram. Por isso, perdoa-lhes sem reserva.
Entrego nas tuas mãos o meu espírito
apaixonado pelas crianças e seu futuro, pelos idosos como Simeão e Ana, memória
abençoada do nosso povo e profecia do mundo novo que desponta, pelos pecadores
de toda a espécie e excluídos de qualquer lugar social, pelos emigrantes a quem
negam a legalização, pelos jovens cheios de projectos e de capacidades, tantas
vezes amarrados ao que amacia as frustrações geradas pela vertigem do instante
que passa. Mas ávidos de novos horizontes e de situações duradouras.
Pai, que o silêncio da minha morte seja
palavra viva para todos os que amas e pelos quais entrego o meu espírito.
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