quarta-feira, 1 de abril de 2015

ENTREGO-ME NAS MÃOS DE DEUS

Reflexão de Georgino Rocha

“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” são as últimas palavras de Jesus ditas na sua vida mortal; palavras que revelam a sua relação filial e confiança total, condensam o sentido de tudo quanto fez e ensinou e constituem a sua disposição final. Palavras que ficam como luz que ilumina as horas decisivas e tormentosas da existência humana, que alentam as forças debilitadas e frágeis em momentos decisivos, que deixam captar a centelha de esperança por onde brilha o despontar do futuro num amanhã aberto que parece definitivamente fechado.

Nas tuas mãos entrego a paixão que sempre me animou: a de fazer a tua vontade e de mostrar às pessoas a fonte da sua autêntica dignidade; a de revelar a tua face de Pai misericordioso e de recriar novas solidariedades humanas; a de ser um Deus de amor benevolente e criativo que se espelha nas relações sociais e no bem comum; a de alimentar um sonho belo - que livremente cada um dos que amas consinta na grandeza da sua vocação: sentar-se à tua mesa, dialogar amigavelmente contigo e com os outros comensais, constituir uma só família alicerçada na aliança que selaste na minha entrega constante à missão que me confiaste.

Nas tuas mãos entrego os sentimentos dos que me rodeiam nesta hora trágica e sofrida: os da minha querida mãe que confiei ao meu amigo João, que sempre me acompanhou com ternura e preocupação, que parece desfeita por me ver sofrer tão intensamente. Ela habituou-se às tuas surpresas. Talvez este hábito lhe dê alento e levante a ponta do véu que oculta o que me espera. E entrego também a amizade do grupo das mulheres que estão com ela. Vejo nelas a humanidade de todos os tempos, as suas lutas e canseiras, a sua aspiração ao reconhecimento da sua dignidade feminina e do sonho tão ardentemente construído de serem consideradas teu rosto maternal.

Entrego nas tuas mãos a boa vontade dos homens justos como Simão que, para me ajudar, alterou o seu caminho no regresso do trabalho e carregou também com a cruz em que me colocaram, como José meu pai legal que por mim fez o melhor: na família, na vizinhança, na sinagoga, no templo; como tantos outros aqui representados em Nicodemos e José de Arimateia. A todos os que sabem viver o masculino como a outra face do teu rosto e assumem generosamente a paternidade humana como colaboração contigo, fonte pujante de vida criativa, aqui lhes deixo o apreço e faço a sua entrega.

Nas tuas mãos entrego os que intervieram no processo que me leva à morte que se aproxima: os partidários do servilismo legal, os funcionários do sagrado religioso, os detentores do poder político e militar, os agitadores e manipuladores das multidões instáveis, os hipócritas que sentem na sua consciência uma coisa e fazem outra. Entrego-os nas tuas mãos, ó Pai, contando com a tua compaixão e misericórdia. Certamente não mediram a gravidade do que fizeram. Por isso, perdoa-lhes sem reserva.

Entrego nas tuas mãos o meu espírito apaixonado pelas crianças e seu futuro, pelos idosos como Simeão e Ana, memória abençoada do nosso povo e profecia do mundo novo que desponta, pelos pecadores de toda a espécie e excluídos de qualquer lugar social, pelos emigrantes a quem negam a legalização, pelos jovens cheios de projectos e de capacidades, tantas vezes amarrados ao que amacia as frustrações geradas pela vertigem do instante que passa. Mas ávidos de novos horizontes e de situações duradouras.


Pai, que o silêncio da minha morte seja palavra viva para todos os que amas e pelos quais entrego o meu espírito.

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