sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

GUINÉ-BISSAU: NÃO SE DEVE SACRIFICAR A DEMOCRACIA, AINDA QUE OS FINS SEJAM NOBRES

Por, Dr. Timóteo Saba M’bunde

À luz do nosso sistema político, fundamentado no modelo da democracia representativa, há duas etapas fundamentais e imprescindíveis para a legitimação de um governo: sua eleição pelo voto popular e a aprovação parlamentar majoritária de seu orçamento e programa de governação. É justamente nesse segundo nível que se eclodiu o imbróglio político vigente na Guiné-Bissau. Ao ser advertida pela maioria dos parlamentares na primeira apresentação do programa de governação de que a dose se repetiria na segunda, a direção superior do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), contando com o apoio do presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP) e o deferimento da Comissão Permanente da mesma, lançou mão de um mecanismo político nada convencional, expulsando os 15 parlamentares dissidentes.

A minha leitura, aqui, pretende se ater mais nos aspectos políticos dessa matéria, fugindo um pouco de abordagem jurídica, embora nesse caso específico (e em muitos outros casos) a Política e o Direito tendem a ser muito difíceis de se dissociar. Na atual conjuntura, não é incomum ouvir os governistas e os seus apoiantes a dizer que o PAIGC ganhou as eleições e, portanto, terá que ser ele o governo a todo custo. Outros ainda apontam que os deputados expulsos do partido, por não votarem favoravelmente ao programa de governo, mereceram tal penalidade.

Não se fez nenhuma pesquisa empírica para apurar a percentagem dos guineenses que defendem a continuidade do governo em relação àqueles que se opõem. Pois bem, me atrevo a dizer que provavelmente a maioria prefere a continuidade do executivo. Entretanto, a preferência popular pelo status quo, seja ela majoritária ou não, é o que menos importa no atual cenário. Pela experiência política de destituições de governos na Guiné-Bissau, seja na ANP, seja por decretos presidenciais ou por golpes de Estado, torna-se razoavelmente compreensível discursos desse tipo. Uma boa parte dos cidadãos já está sensibilizada de que cíclicas rupturas de governabilidade tendem a comprometer a necessária estabilidade política e o desenvolvimento do país.

O chamado ato disciplinar exercido pelo PAIGC e prontamente acatado pela Comissão Política da ANP é amparado por um forte discurso político e que facilmente acolhe legitimidade e apoio da opinião pública guineense e, em alguma medida, apoio internacional. Pois o fim que teria levado ao uso de mecanismos de expulsão dos também chamados “15 traidores do partido” seria a salvaguarda de governabilidade, evitando o que alguns alcunham de golpe institucional. Portanto, à luz desse raciocínio político, se justificaria, para estes, em nome do “interesse nacional” e partidário, a substituição dos 15 para garantir a continuidade do governo – necessária para o país. De fato, a continuidade e conclusão de legislaturas democraticamente constituídas, isto é, fim da praxe política de interrupção de mandatos por conluios políticos e afins tenderia a ser meio caminho andado com vistas ao amadurecimento da nossa tenra democracia.

No entanto, penso que para lograr esse objetivo, teria que se pensar em criação e adoção de mecanismos democráticos capazes de imprimir reformas políticas sobre os estatutos do deputado. Essa reforma sobre o deputado decorreria de emendas constitucionais e regimentais da ANP, afetando a conformação estatutária de todas as agremiações políticas do país. Enquanto não houver reforma política e partidária nesse sentido, não será democrático e constitucional nenhum mecanismo partidário que restrinja a um deputado da nação, digo da nação, o direito de exercer plenamente a sua liberdade política constitucionalmente garantido e outorgado pelo voto popular.

Contudo, eu não sou defensor de uma reforma de natureza político-partidária direcionada à efetivação de princípios constitucionais que outorgassem primazia irrestrita do partido sobre o deputado no exercício de seu mandato. Penso que regulamentações desse cunho tendem, potencialmente, a inspirar configuração de partidos-Estado, verdadeiras máquinas de extermínio de liberdades e opiniões políticas críticas ao establishment. Ou seja, estaríamos a afrontar a democracia e seus pressupostos filosóficos histórica e universalmente adotados. Deferir o pedido de expulsão de um deputado por não expressar a opinião política defendida pela maioria partidária é renunciar e censurar a essência da praxe de política partidária.

Ainda que os fins políticos sejam os mais nobres e necessários pelo bem da coletividade, não se pode fazer uso de mecanismos pouco democráticos para a sua realização. Em democracia, nem sempre dispomos de ferramentas democráticas das quais podemos influenciar algumas conjunturas políticas, ainda que fosse para o bem do “demos”. O exercício da democracia não deve ser medido a partir de objetivos ou intenções do mesmo. A democracia é um meio; é um método, não obstante ser um fim também. Independentemente dos objetivos e fins serem intencionalmente bons, não muda o valor democrático ou antidemocrático dos meios aplicados.


A substituição dos deputados expulsos por supostamente traírem o partido pode ter sido necessária para viabilizar a governabilidade e governação do PAIGC enquanto partido eleito para governar; pode ter sido necessária para salvaguardar o apoio financeiro internacional garantido pelos parceiros em Bruxelas; mas é flagrantemente antidemocrática, ferindo os princípios que regem o nosso modelo político e constitucional, especialmente o direito dos deputados sustentado no artigo 82 da Constituição da República.

Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.

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