À luz do nosso sistema político,
fundamentado no modelo da democracia representativa, há duas etapas
fundamentais e imprescindíveis para a legitimação de um governo: sua eleição
pelo voto popular e a aprovação parlamentar majoritária de seu orçamento e
programa de governação. É justamente nesse segundo nível que se eclodiu o
imbróglio político vigente na Guiné-Bissau. Ao ser advertida pela maioria dos
parlamentares na primeira apresentação do programa de governação de que a dose
se repetiria na segunda, a direção superior do Partido Africano da Independência
da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), contando com o apoio do presidente da Assembleia
Nacional Popular (ANP) e o deferimento da Comissão Permanente da mesma, lançou
mão de um mecanismo político nada convencional, expulsando os 15 parlamentares
dissidentes.
A minha leitura, aqui, pretende se ater
mais nos aspectos políticos dessa matéria, fugindo um pouco de abordagem
jurídica, embora nesse caso específico (e em muitos outros casos) a Política e
o Direito tendem a ser muito difíceis de se dissociar. Na atual conjuntura, não
é incomum ouvir os governistas e os seus apoiantes a dizer que o PAIGC ganhou
as eleições e, portanto, terá que ser ele o governo a todo custo. Outros ainda
apontam que os deputados expulsos do partido, por não votarem favoravelmente ao
programa de governo, mereceram tal penalidade.
Não se fez nenhuma pesquisa empírica
para apurar a percentagem dos guineenses que defendem a continuidade do governo
em relação àqueles que se opõem. Pois bem, me atrevo a dizer que provavelmente
a maioria prefere a continuidade do executivo. Entretanto, a preferência
popular pelo status quo, seja ela majoritária ou não, é o que menos importa no
atual cenário. Pela experiência política de destituições de governos na
Guiné-Bissau, seja na ANP, seja por decretos presidenciais ou por golpes de
Estado, torna-se razoavelmente compreensível discursos desse tipo. Uma boa
parte dos cidadãos já está sensibilizada de que cíclicas rupturas de
governabilidade tendem a comprometer a necessária estabilidade política e o desenvolvimento
do país.
O chamado ato disciplinar exercido pelo
PAIGC e prontamente acatado pela Comissão Política da ANP é amparado por um
forte discurso político e que facilmente acolhe legitimidade e apoio da opinião
pública guineense e, em alguma medida, apoio internacional. Pois o fim que
teria levado ao uso de mecanismos de expulsão dos também chamados “15 traidores
do partido” seria a salvaguarda de governabilidade, evitando o que alguns
alcunham de golpe institucional. Portanto, à luz desse raciocínio político, se
justificaria, para estes, em nome do “interesse nacional” e partidário, a
substituição dos 15 para garantir a continuidade do governo – necessária para o
país. De fato, a continuidade e conclusão de legislaturas democraticamente
constituídas, isto é, fim da praxe política de interrupção de mandatos por
conluios políticos e afins tenderia a ser meio caminho andado com vistas ao
amadurecimento da nossa tenra democracia.
No entanto, penso que para lograr esse
objetivo, teria que se pensar em criação e adoção de mecanismos democráticos
capazes de imprimir reformas políticas sobre os estatutos do deputado. Essa
reforma sobre o deputado decorreria de emendas constitucionais e regimentais da
ANP, afetando a conformação estatutária de todas as agremiações políticas do
país. Enquanto não houver reforma política e partidária nesse sentido, não será
democrático e constitucional nenhum mecanismo partidário que restrinja a um
deputado da nação, digo da nação, o direito de exercer plenamente a sua
liberdade política constitucionalmente garantido e outorgado pelo voto popular.
Contudo, eu não sou defensor de uma
reforma de natureza político-partidária direcionada à efetivação de princípios
constitucionais que outorgassem primazia irrestrita do partido sobre o deputado
no exercício de seu mandato. Penso que regulamentações desse cunho tendem,
potencialmente, a inspirar configuração de partidos-Estado, verdadeiras máquinas
de extermínio de liberdades e opiniões políticas críticas ao establishment. Ou
seja, estaríamos a afrontar a democracia e seus pressupostos filosóficos
histórica e universalmente adotados. Deferir o pedido de expulsão de um
deputado por não expressar a opinião política defendida pela maioria partidária
é renunciar e censurar a essência da praxe de política partidária.
Ainda que os fins políticos sejam os
mais nobres e necessários pelo bem da coletividade, não se pode fazer uso de
mecanismos pouco democráticos para a sua realização. Em democracia, nem sempre
dispomos de ferramentas democráticas das quais podemos influenciar algumas
conjunturas políticas, ainda que fosse para o bem do “demos”. O exercício da
democracia não deve ser medido a partir de objetivos ou intenções do mesmo. A
democracia é um meio; é um método, não obstante ser um fim também.
Independentemente dos objetivos e fins serem intencionalmente bons, não muda o
valor democrático ou antidemocrático dos meios aplicados.
A substituição dos deputados expulsos por
supostamente traírem o partido pode ter sido necessária para viabilizar a
governabilidade e governação do PAIGC enquanto partido eleito para governar;
pode ter sido necessária para salvaguardar o apoio financeiro internacional
garantido pelos parceiros em Bruxelas; mas é flagrantemente antidemocrática,
ferindo os princípios que regem o nosso modelo político e constitucional,
especialmente o direito dos deputados sustentado no artigo 82 da Constituição
da República.
Nota: Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles expressas.
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