Um ano após o golpe de Estado, o narcotráfico tornou-se ainda mais forte e mudou o quotidiano dos guineenses.
Várias vezes, Lucinda Barbosa Ahucarié usou o seu carro pessoal para
fazer o trabalho da polícia - e isso incluía apreensões de droga em
Bissau. A Polícia Judiciária (PJ) não tinha viaturas, algemas ou lanchas
rápidas para vigiar o mar e os muitos rios da Guiné-Bissau. "Não havia
nada."
Esse deserto de meios contrastava com a firmeza e o ritmo das
investigações iniciadas no seu gabinete de directora da PJ, quando ao
mesmo tempo, no Ministério da Justiça, outra mulher, a advogada
Carmelita Pires se entregava de igual forma à luta contra o tráfico de
droga.
Ambas estão em Portugal. O motivo que as levou a sair de Bissau, em
momentos distintos, não se alterou. Só se intensificou. As perseguições
militares a vozes dissonantes ou incómodas multiplicaram-se desde que os
golpistas liderados pelo general António Indjai tomaram o poder no dia
12 de Abril. Nesse dia, a governação passou para o controlo de um
comando militar de seis elementos. Foi há um ano. Dias depois, Manuel
Serifo Nhamadjo era nomeado presidente de transição e Rui de Barros
primeiro-ministro.
O 12 de Abril não foi apenas mais um golpe de Estado a juntar a outros
violentos episódios da conturbada história do país. O tráfico de droga,
livremente instalado no país desde 2004, ganhou asas. Antes e depois,
tornou mais forte quem se envolveu nele. E mudou irremediavelmente a
vida de muitos guineenses.
O medo instalou-se. Medo não só dos responsáveis do topo envolvidos no
narcotráfico, mas da pessoa do lado - amigos ou vizinhos - que possa ter
ligações ou ser cúmplice. "Pela forma como a droga se infiltrou no
nosso país, as pessoas passaram a ter medo não só dos que estão à frente
do negócio mas também dos que a ele, de alguma forma, estejam ligados",
diz Carmelita Pires. As pessoas evitam pronunciar a palavra
"narcotráfico". Mas vivem com ela.
Quando Lucinda Barbosa chegou à Judiciária, vinda da magistratura do
Ministério Público, uma das suas primeiras missões foi criar uma rede de
colaboradores e informadores para, com a devida protecção, preencherem o
vazio de agentes da Judiciária em muitos recantos da Guiné onde as
movimentações de aviões e barcos com droga se tinham tornado constantes.
"Era uma luta", conta Lucinda Barbosa. "Eu entendia que tinha de salvar
aquele país." Um país pequeno que a ausência de meios tornava imenso. E
vulnerável.
Entre o momento em que chegou a directora da PJ, em Julho de 2007, e
aquele em que saiu, em Maio de 2011 - pressionada pelas ameaças de morte
e a intimidação de chefes militares -, foram realizadas importantes
apreensões de droga e presos suspeitos de narcotráfico. Eram
colombianos, venezuelanos, nigerianos e alguns guineenses, incluindo
militares. Mas nenhum foi julgado ou condenado. Também foram feitas
pequenas apreensões de cidadãos africanos de vários países que tentavam
embarcar em voos comerciais para a Europa, via Lisboa.
O país já estava então no coração da rota do tráfico internacional que
liga a América do Sul à Europa e Estados Unidos com passagem pela África
Ocidental. Era habitual ouvir as avionetas a pousar e levantar voo e
ver barões da droga ou seus representantes a circular livremente pelas
ruas da capital - vivendo em hotéis e dispondo de instalações militares
para guardar a droga que traziam da Colômbia e da Venezuela.
Uma nova etapa?
Bubo Na Tchuto era então chefe do Estado-Maior da Marinha, e mesmo quando deixou de o ser, em 2008, manteve uma grande influência. "Ele foi o homem que, durante muitos anos, dominou os mares da Guiné", salienta Carmelita Pires. Foi o primeiro alto oficial guineense suspeito de ligações ao narcotráfico. Mais tarde, houve outros.
Bubo Na Tchuto era então chefe do Estado-Maior da Marinha, e mesmo quando deixou de o ser, em 2008, manteve uma grande influência. "Ele foi o homem que, durante muitos anos, dominou os mares da Guiné", salienta Carmelita Pires. Foi o primeiro alto oficial guineense suspeito de ligações ao narcotráfico. Mais tarde, houve outros.
Na semana passada, Bubo Na Tchuto foi preso pelas autoridades
norte-americanas e conduzido para os Estados Unidos, onde é acusado de
ligações ao narcotráfico e conspiração para introduzir grandes
quantidades de cocaína nos EUA, onde será presente uma segunda vez ao
juiz na próxima segunda-feira. Carmelita Pires diz: "Hoje tenho a
convicção de que amanhã será diferente. Dantes não tinha essa certeza.
Não posso aceitar que, no meu país, antigos combatentes estejam
envolvidos em actividades criminosas, como o tráfico de armas e o
narcotráfico. E digo "Antigos Combatentes" com letra grande", frisa,
"pois foram os homens que nos deram a nação". Bubo Na Tchuto era um
deles.
"[A prisão de Bubo Na Tchuto] é uma chamada de atenção para a justiça
guineense assumir as suas responsabilidades e para que os militares
saibam que não estão acima da lei", acrescenta Lucinda Barbosa.
Outro dos indiciados pelos EUA por envolvimento no narcotráfico desde
2010 é Ibraima Papa Camará, actual chefe do Estado-Maior da Força Aérea.
Mas não será o único.
Bubo Na Tchuto foi preso em águas internacionais, ao largo de Cabo
Verde, por agentes encobertos da Drug Enforcement Agency (DEA)
norte-americana, envolvidos numa missão operacional desde Junho de 2012.
Os agentes faziam-se passar por representantes das FARC na Colômbia e
negociavam a passagem de pelo menos quatro toneladas de cocaína pela
Guiné-Bissau, em troca de benefícios para o poder guineense; a droga
seria vendida nos EUA e o dinheiro entregue à guerrilha colombiana, que
Washington inclui na lista de "organizações terroristas".
Bubo Na Tchuto era figura central desta operação, que envolvia ainda,
pelo menos, dois outros militares, e seria feita - segundo a Reuters,
que cita a acusação dos EUA - com o conhecimento do Presidente de
transição, Manuel Serifo Nhamadjo, nomeado pelos militares golpistas do
12 de Abril. O que farão agora os EUA? Lucinda Barbosa e Carmelita Pires
esperam que esta prisão seja um primeiro virar de página no seu país.
Lucinda Barbosa fala agora pela primeira vez desde o golpe de Abril,
quando as ameaças de morte se tornaram mais frequentes. Dois militares à
paisana foram a sua casa, com armas de assalto, à sua procura. Não
estava. Pouco depois, deixou o país.
Olha para trás, para o momento em que assumiu o cargo de directora da
PJ: "A situação do narcotráfico já era visível. Os militares
participavam e protegiam os narcotraficantes. O transporte da droga com o
uso dos aviões ou das viaturas para o interior era muito visível",
lembra.
Em Cufar, no Sul, perto de Catió, foi apreendida uma cisterna de
combustível. As movimentações para abastecer aviões e avionetas eram
constantes, bem como a regularidade dos voos em Cufar e Bubaque, no
arquipélago dos Bijagós.
Destino da droga: Europa
A droga saía do Sul, por estrada ou mar, e chegava a Bissau, onde era armazenada. O destino final era a Europa, por mar ou avião. Lucinda Barbosa recorda que foram feitas várias detenções de guineenses, cabo-verdianos, nigerianos ou senegaleses, que tentavam passar a droga para a Europa em voos comerciais para Lisboa, sendo esta a única ligação europeia directa com Bissau.
A droga saía do Sul, por estrada ou mar, e chegava a Bissau, onde era armazenada. O destino final era a Europa, por mar ou avião. Lucinda Barbosa recorda que foram feitas várias detenções de guineenses, cabo-verdianos, nigerianos ou senegaleses, que tentavam passar a droga para a Europa em voos comerciais para Lisboa, sendo esta a única ligação europeia directa com Bissau.
Quando era em grandes quantidades, a droga também saía por mar. Nas
zonas Norte e Leste, as antigas pistas de aviação e os portos de N"Hgoré
e de Fulacunda, utilizados no tempo da presença portuguesa, foram
especialmente reactivados para esse fim.
E, no imaginário colectivo, SOMEC deixou de representar uma antiga
empresa de construção portuguesa e passou a ser um dos lugares mais
emblemáticos de uma nova realidade que mergulha Bissau na desconfiança e
no desconhecido. As suas instalações foram ocupadas pelos
narcotraficantes.
O dia-a-dia de Lucinda Barbosa tornou-se numa luta constante. Bubo Na
Tchuto ameaçou-a publicamente, dizendo que sabia que era ela quem estava
a fornecer informações aos americanos. E quando, numa reunião no
Estado-Maior entre responsáveis políticos e Forças Armadas, os militares
deixaram claro que nenhum deles poderia ser responsabilizado se algo
viesse "a acontecer à Lucinda", ninguém, entre os responsáveis
políticos, da Presidência ao Governo, ainda no tempo de Malam Bacai
Sanhá e do primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior, se levantou e mostrou
firmeza face aos militares e em defesa da chefe da polícia.
Durante muito tempo, ela resiste. Mas, em Maio de 2011, dirige um
pedido de demissão, escrito pelas suas próprias mãos, ao então ministro
da Justiça (já depois de Carmelita Pires sair), que o aceita. A
magistrada formada no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa é nomeada
directora-geral da Viação e Transportes Terrestres, onde continua a ser
perseguida. "Infelizmente, onde eu estiver, eles vão sempre
procurar-me", diz agora. Pouco menos de um ano depois, o seu gabinete
foi arrombado e invadido pelo actual chefe de Estado-Maior da Marinha,
ligado ao golpe de 12 de Abril. Antes, telefonaram-lhe a pedir a chave, o
que ela recusou. Em Julho, saiu do país. O chefe do Estado-Maior
General das Forças Armadas (CEMGFA), general António Indjai, ainda hoje
diz estar "à espera da Lucinda" para um ajuste de contas.
Ameaças e telefonemas
"Eram ameaças de morte em telefonemas nocturnos." É Carmelita Pires quem agora fala. Mas podia ser Lucinda Barbosa. A vida de ambas estava, nesses anos, virada para o combate ao tráfico. As duas estiveram sob ameaças semelhantes. "Quando me ameaçavam, também diziam que eu tinha sorte em ser mulher. Se não fosse, já estaria morta, diziam."
"Eram ameaças de morte em telefonemas nocturnos." É Carmelita Pires quem agora fala. Mas podia ser Lucinda Barbosa. A vida de ambas estava, nesses anos, virada para o combate ao tráfico. As duas estiveram sob ameaças semelhantes. "Quando me ameaçavam, também diziam que eu tinha sorte em ser mulher. Se não fosse, já estaria morta, diziam."
Mas não foi por isso que, numa noite, em 2008, fez as malas e
encaixotou livros e tudo o que tinha para deixar Bissau. Nesse dia,
ficou retida o dia todo, em que ficou incomunicável, numa reunião de
conselho de ministros, chefiada pelo Presidente da República. Quando
saiu da reunião, os dois narcotraficantes venezuelanos, presos dias
antes pela PJ, tinham sido libertados. Entre eles, estava Antonio
Carmelo Vasquez Guerra, procurado internacionalmente por narcotráfico.
"Nesse dia, perdi a cabeça", diz a advogada e mestre em Direito pela
Universidade de Lisboa.
Mas, depois de fazer as malas, Carmelita Pires mudou de ideias e passou
o resto da noite a desfazê-las. Decidiu ficar. E pensou: "Eu não vou a
parte nenhuma. Se eles quiserem, que me tirem daqui. Eu não vou
desiludir a comunidade internacional, nem me vou desiludir a mim
própria."
Acabou por sair do país em Abril de 2009, por iniciativa da embaixada
dos EUA, que considerou que a sua vida estava em risco. Foi colocada em
Abuja, na Nigéria, como conselheira especial do presidente da comissão
da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) para as
questões do narcotráfico - tinha contribuído para a criação do Plano
Regional de Combate ao Narcotráfico, discutido em Cabo Verde. A missão
em Abuja poderia ter sido prolongada, mas, no ano passado, Carmelita
Pires, planeou regressar a Bissau. E continua à espera de poder voltar.
Ainda em Bissau, Carmelita Pires chegou a receber, no seu gabinete,
pessoas que traziam da parte dos militares um conselho: "Diziam para eu
parar e me lembrar que quem tinha as armas eram eles. Eu respondi que
quem tinha a caneta nas mãos era eu."
Carmelita Pires tinha sido reconduzida para o Governo de iniciativa
presidencial liderado por Nino Vieira, em 2008, por exigência da
comunidade internacional, que valorizava o papel da governante no
combate ao narcotráfico. Um ano antes, na sua chegada ao Ministério da
Justiça, fora contactada por agentes da DEA que lhe perguntaram se sabia
que "os militares estavam envolvidos no narcotráfico". Seguiram-se
"vários embates". Carmelita Pires lembra-se de estarem as duas - ela e
Lucinda Barbosa - a trabalhar nas instalações da PJ, quando um homem
apareceu dizendo que os dois colombianos presos por narcotráfico eram
hóspedes da Presidência, dando a entender que deviam ser libertados - o
que ambas recusaram.
Foi depois de uma importante operação em 2007, em que foram presos
esses dois colombianos suspeitos de narcotráfico em Bissau. Viviam na
capital guineense e a sua base era o armazém da SOMEC. Com a sua
detenção, foi apreendida uma soma de quase 100 mil euros, armas,
munições e gás paralisante, telemóveis, que foram enviados à Interpol,
para investigação, e um quadro que listava nomes de responsáveis
militares e políticos no país, com setas a indicar eventuais ligações.
Esse quadro, diz Lucinda, mostrava "a dimensão e a promiscuidade" entre
narcotraficantes e figuras do topo da Guiné. E parecia revelar "uma
tentativa de controlar tudo" no país.
Cooperação com Portugal
A apreensão de material e a detenção de narcotraficantes, nessa operação de 2007, deram ímpeto à investigação a que se juntaram polícias internacionais - Interpol, Polícia Judiciária e GNR portuguesas -, bem como o FBI e a Drug Enforcement Agency (DEA).
A apreensão de material e a detenção de narcotraficantes, nessa operação de 2007, deram ímpeto à investigação a que se juntaram polícias internacionais - Interpol, Polícia Judiciária e GNR portuguesas -, bem como o FBI e a Drug Enforcement Agency (DEA).
Apesar das resistências, a PJ confiscou o dinheiro apreendido e a então
ministra Carmelita Pires solicitou junto do primeiro-ministro a
abertura de uma conta consignada junto ao Tesouro Público denominada
"Combate ao Narcotráfico". Esse dinheiro foi utilizado para comprar
algemas e duas viaturas para a PJ e melhorar as condições nas celas nas
suas instalações. Mas os suspeitos, que tinham como defensor o
bastonário da Ordem dos Advogados na altura, foram libertados com a
conivência do Ministério Público.
Pouco depois, em Janeiro de 2008, dois membros da Al-Qaeda eram detidos
em Bissau. Mohamed Chabarnou e Sidy Ould Sidne eram procurados pelo
assassínio de quatro turistas franceses na Mauritânia e foram entregues à
Mauritânia, por decisão administrativa no âmbito da cooperação
internacional. A sua passagem por Bissau reforçou a convicção de que o
terrorismo na África Ocidental estava a ser financiado pelo
narcotráfico. "A presença destes dois homens em Bissau demonstra-nos que
há uma fragilidade do país" e que este pode estar a ser utilizado não
só pelos narcotraficantes mas também por grupos terroristas, diz Lucinda
Barbosa.
Pirataria e crime organizado
Kofi Annan, secretário-geral da ONU entre 1997 e 2007, lamenta hoje que a comunidade internacional tenha, nos últimos 10 anos, ignorado a ameaça colocada por "Estados corruptos como a Guiné-Bissau" e recomenda "cuidado quando se lida com Estados falhados". Se, na Somália, a indiferença levou à pirataria, sugere Annan, na Guiné-Bissau facilitou o narcotráfico.
Kofi Annan, secretário-geral da ONU entre 1997 e 2007, lamenta hoje que a comunidade internacional tenha, nos últimos 10 anos, ignorado a ameaça colocada por "Estados corruptos como a Guiné-Bissau" e recomenda "cuidado quando se lida com Estados falhados". Se, na Somália, a indiferença levou à pirataria, sugere Annan, na Guiné-Bissau facilitou o narcotráfico.
"Ignorámos a Somália durante 20 anos e quando [essa inacção] nos foi
devolvida com a pirataria, toda a gente acordou", disse Annan, em
Janeiro deste ano. "De certa forma, estamos a fazer o mesmo com a
Guiné-Bissau. Foi onde [o narcotráfico] começou e nós permitimos que ele
aumentasse."
Dias antes, o seu sucessor, Ban Ki-moon, tocara num ponto sensível da
situação na Guiné-Bissau. Num relatório apresentado ao Conselho de
Segurança da ONU, denunciava o aumento da criminalidade organizada no
país com "o apoio de membros das forças de defesa e segurança e das
elites políticas" desde o golpe de Estado de 12 de Abril de 2012.
Um ano passou. Continuaram a ouvir-se as avionetas a entrar e a sair do
país. E com maior frequência. "Centenas de quilos de cocaína estarão a
entrar clandestinamente em cada operação" e cada operação terá lugar
"uma ou duas vezes por semana sem nenhuma intervenção dos poderes
públicos", notava Ban Ki-moon nesse relatório.
Este golpe segue-se a outros num país marcado pela violência. Ainda
presente na memória de muitos, estão os assassínios do ex-chefe do
Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) general Tagmé Na Waie e
do Presidente Nino Vieira em Março de 2009.
Mas este golpe não é como os outros. As perseguições continuam a
alimentar o medo e o novo poder, reconhecido pelos países da região,
ainda não marcou uma data para as eleições.FONTE AQUI
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